Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/04.0GBAND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: SUSPENSÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – ANADIA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 40º, 55º, 56º DO CP, 495º, 2 CPP
Sumário: 1. Para a revogação não basta concluir que as finalidades que determinaram a suspensão da pena de prisão se mostram frustradas, é necessário que o arguido “culposamente” deixe de cumprir os deveres ou condições impostos .
2. Previamente à revogação, ou imposição de novos deveres ou regras de conduta deverá o tribunal efectuar diligências (saber qual a razão da falta de cumprimento da condição) e em função do apurado concluir pela revogação da suspensão (no caso de infracção grosseira e repetida), ou pela substituição da medida (caso tenha havido incumprimento culposo).
Decisão Texto Integral: No processo supra identificado, no qual é arguido:
P..., foi proferido despacho que determinou a prorrogação do prazo da suspensão da execução da pena, bem como impôs obrigações acrescidas às anteriores.
É do seguinte teor, o referido despacho:

Quanto à eventual revogação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido P...:
Por acórdão cumulatório proferido nos presentes autos, transitado em julgado em 18/07/2007, foi o arguido condenado pela prática, como autor material e em concurso efectivo, de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22, 23, 73, 203, n.ºs 1 e 2, e 204, n.° 1, al. f), do Cód. Penal, de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22, 23, 72, 73, e 204, n.° 2, al. e), do Cód. Penal, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art.° 203, n.º 1, do Cod. Penal, na pena única de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com regime de prova, acompanhada dos deveres de o arguido se submeter ao plano individual de readaptação social a elaborar pelo IRS e responder às convocatórias do técnico de reinserção social, colocando à sua disposição as informações necessárias, designadamente alterações de residência.
De acordo como o relatório de acompanhamento, elaborado pelos serviços de reinserção social, o arguido foi comparecendo a algumas entrevistas com os srs. técnicos de reinserção social; abandonou comunidade terapêutica para a qual havia sido encaminhado; deixou de comparecer às entrevistas com os srs. técnicos de reinserção social, para as quais havia sido convocado.
O Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Procurou-se a audição do arguido, nos termos do art. 495, n.º 2, do Cód. de Processo Penal, não tendo o mesmo, injustificadamente, comparecido.
Apreciando e decidindo.
Sob a epígrafe "revogação da suspensão", prescreve o art. 56.°, n.º 1, do Cód. Penal: "A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas".
Nos termos do n.º 2 do mesmo art., "a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado".
Conforme vem sendo entendido de forma generalizada pela jurisprudência, a revogação da suspensão não opera de forma automática, mas dependente da análise do caso concreto no que concerne ao preenchimento dos pressupostos enunciados nas duas alíneas daquele artigo (Cfr. Ac. da RE de 03/03/1998 - BMJ 475, p. 803: " ... a suspensão da execução da pena não tem de ser automaticamente revogada em consequência da comissão de novo crime e condenação em pena de prisão efectiva.").
Nas palavras de Figueiredo Dias, só deve decidir-se pela revogação da suspensão se dali nascer "a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade" (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Ed. Notícias, Lisboa, 1993, p. 356).
As finalidades perseguidas pelo instituto da suspensão traduzem-se na ressocialização do delinquente e na prevenção da prática de novos crimes (cfr. Arts. 50, n.º 1, in fine, e 40, n.º 1, do Cód. Penal).
Ora, é certo, por um lado, que o arguido infringiu os deveres impostos e o plano de reinserção social, não respondendo a todas as convocatórias e incumprindo as condições impostas.
Todavia, ressalvado o respeito devido por entendimento contrário, não pode considerar-se infirmado, em definitivo, o juízo de prognose subjacente à suspensão, pois que não consta que o arguido tenha delinquido ou que venha adoptando comportamentos que demonstrem encontrar-se socialmente desinserido - pese embora o abandono da comunidade terapêutica para a qual havia sido encaminhado pelos serviços de reinserção social - sendo que a condenação remonta há já cerca de 2 anos.
Mas também não pode deixar de considerar-se culposa a fala de cumprimento das obrigações, bem como merecedor de censura o desrespeito traduzido no seu alheamento às imposições do Tribunal.
Com o que somos remetidos para o texto do art.º 55 do Cód. Penal: "Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal:
g) Fazer uma solene advertência;
h) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50”.
Assim, tudo isto leva a crer que, para cabal êxito da suspensão, além da necessária prorrogação do período, pelo máximo, têm que se impor outras condições - além das já fixadas - como forma de procurar garantir a socialização do condenado - mostrando-se ajustadas as seguintes:
a) Responder a todas as convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, justificando devidamente eventuais ausências;
b) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
c) Frequentar programa de desabituação/desintoxicação de produtos estupefacientes, sob indicação dos serviços de Reinserção Social.
Pelo exposto:
1. Determino a prorrogação da suspensão da execução da pena de prisão, pelo prazo adicional de 1 (um) ano e 6 (seis) meses.
2. Determino a imposição ao arguido das seguintes obrigações acrescidas às anteriores:
a) Responder a todas as convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social, justificando devidamente eventuais ausências;
b) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
c) Frequentar programa de desabituação/desintoxicação de produtos

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Comunique aos serviços de reinserção social.
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Inconformado, deste despacho interpôs recurso o Magistrado do Mº Pº.
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação e que delimitam o âmbito do mesmo:
1. O arguido Paulo Saraiva foi condenado, por acórdão de cúmulo de 03.07.2007, logo transitado, sem recurso, por 2 crimes de furto qualificado e de furto simples, na pena única de 1 ano e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, até Julho de 2010, acompanhada de regime de prova, mediante a condição de se submeter ao PRS elaborado pela DGRS, bem como responder às convocatórias do técnico de reinserção social.
2. No despacho ora recorrido de 26.02.2009, o Tribunal a quo, considerando não estar infirmado, em definitivo, o juízo de prognose subjacente à suspensão, decidiu prorrogar-lhe por mais 1 ano e 6 meses a suspensão daquela pena de prisão, ainda em curso, em lugar de ordenar a sua pronta revogação, como se impunha.
3. Ora, tal prorrogação da suspensão da pena, além de ilegal é inócua/irrelevante/inútil, pois que, o condenado alheou-se de forma grosseira e repetida, ao cumprimento das condições da suspensão, revelando ex abundanti que as finalidades que estiveram na base da suspensão não foram alcançadas.
4. Na verdade, no quadro processual emergente dos autos não se pode concluir senão pelo total, irreversível e culposo fracasso/naufrágio do juízo de prognose de que foi credor o arguido, não havendo, pois, qualquer fundamento para prorrogar a suspensão por mais 1 ano e 6 meses.
5. Decorridos que se mostram quase dois anos desde a condenação, nada mudou, pois o condenado infringiu de forma grosseira, reiterada e culposa as condicionantes da suspensão que lhe foram fixadas, como o despacho reconhece.
6. Persistir na suspensão da execução da pena geraria um sentimento de impunidade/inutilidade/inoperância do direito penal, que urge combater e do qual a conduta do arguido é claramente tributária.
7. Donde, apesar do seu carácter subsidiário e residual, apenas com a revogação da suspensão da execução da pena aplicada ficam satisfeitas as finalidades de prevenção geral e especial reclamadas no caso em apreço.
8. A decisão recorrida violou, entre outros, os artigos 40, 55 e 56 do Código Penal.
Deve revogar-se o despacho ora recorrido, mandando-o substituir por outro mais lúcido que decida pela revogação da suspensão da pena de 1 ano e 9 meses de prisão aplicada ao arguido, com as legais consequências, cfr. artigo 56, n.º 2 do Código Penal.
Não foi apresentada resposta.
Nesta Instância, a Ex.mª Procuradora Geral Adjunta emite parecer fundamentado, no sentido da revogação do despacho recorrido, mas por fundamentos diferentes dos invocados no recurso, fundamentos esses que também tem como insubsistentes.
Foi cumprido o art. 417 nº 2 do CPP.
Não foi apresentada reposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Conhecendo:
A questão única a analisar no presente recurso prende-se com a existência de fundamentos, ou não, para a revogação da suspensão da execução da pena aplicada ao arguido.
No que ao caso em apreço interessa, refere o art. 56 nº 1, al. a), do Cód. Penal, que, “a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social”.
Como salienta o Ac. da Rel. Lx. de 19-02-1997, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 166, “a violação grosseira dos deveres ou regras de conduta expostas, de que se fala no art. 56 nº 1 al. a) do CP, há-de constituir uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada”.
Também nesta Relação se entende que “a apreciação sobre a falta de cumprimento dos deveres impostos na sentença como condicionantes da suspensão da pena deve ser cuidada e criteriosa…”, Ac. de 13-03-1985, in Col. Jurisp. tomo II, pág. 72 e, “não se mostrando que o réu cumpriu a obrigação de que dependia a suspensão da execução da pena, há que saber qual a razão da falta de cumprimento dessa obrigação, e só com esse conhecimento se decidirá sobre a revogação da suspensão”, Ac. de 2-05-1985, in Col. Jurisp. tomo III, pág. 105.
“É necessário que fique demonstrado que o condenado não cumpriu, falhou, por vontade própria, é necessário apreciar a sua culpa” – Ac. desta rel. De 7-05-2003, Rec. 612/03.
Certo é que o arguido não cumpriu os deveres e regras impostos como condição da suspensão da execução da pena de prisão.
Mas antes da revogação ou da imposição de novos deveres ou regras, há que apurar se o não cumprimento resulta de violação grosseira ou culposa dos deveres ou condição imposta, se é indesculpável, ou se pelo contrário merece ser tolerada e desculpada.
"A suspensão da execução da pena de prisão, por o condenado no decurso do respectivo período não haver cumprido os deveres ou regras de conduta a que a suspensão ficou subordinada, não pode ser revogada sem a prévia audição dele." Ac. desta relação, de 27/10/2004; Col. Jur. tomo IV, pág. 48.
Que é uma das formas de se apurar se é grosseira ou culposa a infracção do não cumprimento dos deveres impostos.
Também o Ac. do STJ, refere: "III- Por outro lado, como resulta do art. 50 da versão originária do CP, o mero incumprimento dos deveres impostos com a suspensão, não conduz logo e irremediavelmente à revogação da suspensão, que surge antes como a última das hipóteses que exige, aliás, a culpa do condenado.

IV - Os deveres impostos para suspensão da execução da pena não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, o que postula a exigibilidade de que, em concreto, devam revestir-se os deveres que terão de encontrar-se numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos visados". (Acórdão do STJ de 31/01/2002, Proc. n. 4006/01).
Assim que improcedem os fundamentos do recurso.
Mas, o recorrente também entende não se verificarem fundamentos que sustentem a decisão do despacho recorrido.
O Tribunal recorrido, sem efectuar qualquer averiguação, por si ou através do IRS, concluiu que o arguido, de forma culposa deixou de cumprir os deveres e regras impostos.
Apenas refere que se procurou a audição do arguido, “não tendo o mesmo, injustificadamente, comparecido”.
Mas aqui se concluiu pela falta injustificadamente, como se concluiu pelo não cumprimento culposo dos deveres e regras impostos (apenas se pode entender o “injustificadamente”, no sentido de que não foi apresentado qualquer requerimento a tentar justificar a falta e não no sentido de que não havia fundamento para faltar).
E, não basta concluir que as finalidades que determinaram a suspensão da pena de prisão se mostram frustradas, é necessário que o arguido “culposamente” deixe de cumprir os deveres ou condições impostos.
Escreve Maia Gonçalves em anotação ao art. 55 do seu CP anotado e comentado, 12ª edição, que “só mediante a ponderação das particularidades de cada caso concreto o juiz poderá decidir se alguma sanção deve ser aplicada e, caso positivo, qual a que melhor se molda à situação. Assim, se o condenado deixou de cumprir uma condição devido a caso fortuito ou de força maior que definitivamente o inibe de lhe dar cumprimento, não deve ser aplicada qualquer sanção.”
Acresce do que vimos dizendo, a necessidade de audição do arguido, ou presencialmente no Tribunal, ou através do IRS, para se poder concluir se o não cumprimento dos deveres ou regras é culposo, ou se há infracção grosseira e repetida, sem o que não haverá fundamento para a decisão.
No caso concreto entendemos que não ficou postergado o direito de defesa do arguido consubstanciando violação constitucional do art. 32 nº 5.
Como refere a Exmª PGA no seu parecer e citando Jurisprudência do Tribunal Constitucional, «Porém, sobre a extensão do princípio do contraditório, considera o Tribunal Constitucional que "… o contraditório surge como regra orientadora da produção pelo tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais, assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente afectados (…) como emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática. É, assim, o princípio do contraditório expressão do Estado de direito democrático e, nessa medida, igualmente das garantias de defesa".
A observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32° n" 5, da CRP, consubstancia-se "no direito/dever do juiz de ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os actos susceptíveis de afectarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica"».
Pois que, como já se referiu e consta do despacho recorrido, “procurou-se a audição do arguido, nos termos do art. 495, nº 2 do CPP, não tendo o mesmo, injustificadamente, comparecido”, ou seja, foi dada oportunidade de ser exercido o contraditório.
Porém, e conforme já supra exposto, entendemos que, previamente à revogação (pretendida pelo recorrente), ou imposição de novos deveres ou regras de conduta (posição do despacho recorrido) deverá o tribunal efectuar diligências (saber qual a razão da falta de cumprimento da condição) e em função do apurado concluir pela revogação da suspensão (no caso de infracção grosseira e repetida), ou pela substituição da medida (caso tenha havido incumprimento culposo).
Decisão:
Face ao exposto acordam em, com fundamentos diferentes, conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, devendo o tribunal previamente proceder às diligências supra referidas e só depois decidir, em função do que se apurar.
Sem custas.
Coimbra,
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