Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
747/07.0TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Data do Acordão: 11/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COVILHÃ – 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Legislação Nacional: ARTºS 1º, 4º, Nº 1, AL. F), E 5ºDO ETAF (LEI Nº 13/02,DE 19/02)
Sumário: I – A competência material afere-se pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos precisos termos afirmados pelo autor.

II - Em consonância com o disposto no artº 5º do ETAF (Lei nº 13/02, de 19/02), a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento em que a acção se propõe.

III – Conforme decorre do disposto nos artºs 1º e 4º, nº 1, al. f), do ETAF, a lei fez assentar num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, o âmbito da competência dos tribunais administrativos, alargando-o a todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito privado ou por um regime de direito público.

IV – Entende-se por relação jurídica de direito administrativo, a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.

IV – Por contrato administrativo entende-se o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com a Administração a colaborar temporariamente no desempenho de atribuição administrativa, sujeitando-se às exigências de interesse público, definidas por actos do poder mediante remuneração a perceber nas bases estipuladas.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

         I- RELATÓRIO

         I.1- «A...», instaurou em 10.5.07 contra B... e C..., acção sob a forma ordinária, pedindo que as rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de 432.351,90 €, acrescida de juros de mora desde 16.2.07, ou o que vier a ser liquidado em execução de sentença.

Para tanto, e em síntese, alega que nos termos do protocolo/anexo que celebrou com as rés, estas assumiram a obrigação de construir o lote 12 num prazo não superior a 2 anos, e volvidos mais de 6 anos sobre a data da assinatura do protocolo, os trabalhos de construção do referido lote ainda não haviam tido início; as rés foram interpeladas para cumprirem voluntariamente a obrigação assumida, mas em vão; em virtude da não satisfação da sua pretensão e do facto de o imóvel em causa se destinar à instalação da sede da Junta de Freguesia de Canhoso, necessidade já sentida à data de celebração do protocolo, a A. decidiu instalar a referida Junta noutro local, tendo perdido o interesse na realização daquela prestação; as rés constituíram-se na obrigação de indemnizar a A. pelo prejuízo sofrido em virtude do não cumprimento da obrigação de construção, prejuízo que equivale ao valor que a A. terá de despender na aquisição de um lote de terreno e na construção de um edifício idêntico àquele que foi objecto do protocolo, ou seja, 432.351,90 €.

         Contestaram as Rés, invocando, além do mais, a excepção da incompetência do tribunal comum, alegando que a acção se reporta a uma causa que, de acordo com as regras de repartição de competência, deveria ser julgada pela jurisdição administrativa, pois, face aos termos em que o A. formulou o seu pedido e a respectiva causa de pedir, conclui-se que o litígio se funda directamente no âmbito de uma relação jurídica administrativa.  

         Houve réplica.

         No despacho saneador, datado de 24.3.08, o tribunal conheceu da invocada excepção dilatória, declarando materialmente incompetente o Tribunal da Covilhã, absolvendo as Rés da instância.

         I.2- Inconformado, agravou o autor.

         Nas alegações de recurso, concluiu, assim, em resumo nosso:

         1ª- O objecto do contrato em questão tem natureza privada, pois que se trata de uma cedência gratuita;

         2ª- O legislador não regulou tal contrato em termos específicos pelo facto de a Administração ser parte (como é o caso típico dos contratos nominados do art.178º72, CPA);

         3ª- Acresce que apesar da referência ao disposto no art.16º do DL nº448/91, 29.11, não se encontra no contrato qualquer marca de administratividade, pois que o Município não goza de quaisquer poderes de autoridade, nem o contrato investe o ente público dos poderes previstos no art.180º do CPA;

         4ª- Com efeito, não é possível encontrar no protocolo qualquer cláusula que confira poder ao Município para modificar unilateralmente as obrigações do contratante particular;

         5ª- Além do mais, apesar de serem estipulados prazos para cumprimento de obrigações de particular, este não fica sujeito a um poder de direcção do Município;

         6ª- Também não se encontra qualquer marca de administratividade quanto à possibilidade de rescisão do contrato pelo Município;

         7º- Dúvidas não restam quanto à impossibilidade do Município exercer os poderes previstos no art.180º do CPA, não existindo quaisquer condições especiais de sujeição dos contraentes privados ao interesse público;

         8ª- O protocolo foi negociado entre ambas as partes numa posição de paridade e tendo em conta os interesses recíprocos dos contraentes;

         9ª- Não existindo qualquer elemento que permita qualificar como público a relação contratual entre as partes, não pode ter aplicação o disposto na al.f) do nº1 do art.4º do ETAF, pelo que a competência material para apreciação da presente acção cabe aos tribunais judiciais.

 

         I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.

         Foi mantido o despacho agravado.

         Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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         II – FUNDAMENTOS

         É questão a decidir no recurso, se, tal como entendeu a 1ª instância, a presente acção deve ser julgada na jurisdição administrativa.

         Adiantando a nossa posição, julgamos, com o devido respeito, que o tribunal recorrido não tem razão.

         De harmonia com os arts.66º/C.P.C. e art.18º/1 da Lei nº3/99, de 13.1, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.  

         É consabido que a competência se determina pela ponderação do pedido e da causa de pedir. Resolve-se com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respectivos fundamentos, embora sem avaliar o seu mérito.

         O Tribunal de Conflitos tem sido inúmeras vezes chamado a resolver conflitos de competência entre o foro civil e o administrativo, entendendo que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discutir na acção, mas à luz da estruturação concreta apresentada pelo autor e, logicamente, dando especial atenção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão aduzida, e bem assim à concreta delimitação entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.

         Em consonância com o disposto no art.5º do ETAF (Lei nº13/02, de 19.2 – de que serão as normas a citar sem menção expressa), a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento em que a acção se propõe.

         É, pois, à luz deste diploma (em vigor desde 1.1.04), que a questão decidenda deve ser apreciada.

         Na causa de pedir em que baseia o seu pedido de condenação das rés ao pagamento de uma indemnização, o A. «A...», pessoa colectiva de direito público, alega ter com aquelas celebrado um contrato (protocolo) anexo a um alvará de loteamento, nos termos do qual as rés se obrigaram a ceder à A., a título gratuito, toda a área correspondente ao r/c do lote 12, e ainda a obrigação de construir o lote 12 num prazo não superior a 2 anos, prazo que não cumpriram tendo o A. perdido o interesse no seu cumprimento.

         Atentando na materialidade de que integra a causa de pedir, e outrossim, no pedido formulado sem entrar na apreciação do seu mérito, extrai-se que o A. visa através desta acção efectivar responsabilidade contratual, nos termos dos arts.798º e segs. do C.C..

         Conforme decorre do disposto nos arts.1º e 4º/1-f), a lei fez assentar num critério substantivo, centrado no conceito de «relações jurídicas administrativas e fiscais», o âmbito da competência dos tribunais administrativos, alargando-o a todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito privado ou por um regime de direito público.

         Importa então saber se o presente litígio emerge de relações jurídicas administrativas, ou seja, se o ajuizado contrato (“protocolo/anexo ao alvará de loteamento nº22/99, celebrado ao abrigo do art.16º do DL nº448/91, de 29.11”) tem natureza administrativa como se entendeu na sentença.

         Para efeitos de competência contenciosa, e segundo o art.178º/1 do Cód. Proc. Adm., considera-se contrato administrativo o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.

         Entende-se por relação jurídica de direito administrativo, a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.[1]

         Por contrato administrativo considera-se “o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com a Administração a colaborar temporariamente no desempenho de atribuição administrativa, sujeitando-se ás exigências de interesse público, definidas por actos do poder mediante remuneração a perceber nas bases estipuladas”.[2]

         O referido protocolo de cedência gratuita de fracção ao abrigo da mencionada disposição legal, foi celebrado em 22.12.99 entre a A. (1ª outorgante) e as rés (2ª outorgantes). Dele decorre serem as rés promotoras de uma operação de loteamento que incide sobre um prédio e que se caracterizou pela constituição de 17 lotes, sito em Canhoso, aprovada por deliberação camarária de 15.1.99 que aceitou a atribuição à Câmara do lote 12 do referido loteamento. Pelas cláusulas 4ª a 6ª, as rés obrigaram-se a ceder a título gratuito à A., toda a área útil do r/c do lote 12, comprometendo-se, ainda, a construir, primeiramente, o referido lote 12 num prazo nunca superior a 2 anos. A fracção cedida tem como objectivo a instalação da sede da Junta de Freguesia de Canhoso, e/ou outras instituições de interesse público.

         Na sentença concluiu-se que este acordo que serve de causa de pedir tem um objecto passível de acto administrativo, essencialmente por estar ligado a uma licença de loteamento e por ter sido celebrado ao abrigo do art.16º do DL 448/91 de 29.11 (diploma que rege as operações de loteamento); a obrigação assumida pelas rés foi-no no âmbito da operação de loteamento, e por via disso, considerou-se que a apreciação do incumprimento é matéria que se enquadra num contrato de objecto passível de acto administrativo. Vale isto por dizer que, do ponto de vista da sentença, o facto de o contrato/protocolo em causa ter sido celebrado ao abrigo do aludido diploma, e portanto, de um licenciamento de operação de loteamento, é o bastante para configurá-lo como um acto administrativo, competindo assim à jurisdição administrativa a apreciação do litígio dele decorrente.

         Ressalvado o respeito devido, este entendimento não merece o nosso acolhimento.

         Conforme se salientou, a competência material afere-se pela relação litigiosa submetida à apreciação do tribunal nos precisos termos afirmados pelo autor. No caso vertente, o cerne da questão a decidir é o invocado incumprimento do protocolo por parte das rés. Estas não teriam cumprido a obrigação que assumiram de construir o lote 12, e a A. perdera o interesse na realização dessa prestação. Daí o pedido de indemnização pelo interesse contratual positivo correspondente aos prejuízos provenientes da inexecução do contrato. 

         Ora, à luz das disposições legais acima citadas, mesmo que a obrigação que as rés assumiram tenha a sua proveniência numa operação de loteamento em que foram promotoras, regulada pelo apontado DL 448/91, e que a cedência gratuita do r/c do lote12 feita ao abrigo do art.16º deste diploma visou a prossecução de um interesse público, isso não basta para que se tenha por constituída uma relação de carácter administrativo. Em todos os contratos celebrados pela Administração, mesmo nos privados, está presente o interesse público. Era preciso que, na relação concreta, fossem conferidos poderes de autoridade ao município perante as rés.

         No protocolo em causa, o acto de autoridade está omisso. As partes contrataram em pé de igualdade, não se verifica dependência ou subordinação das recorridas à prática de actos unilaterais por parte da recorrente, e não se surpreende qualquer associação duradoura e especial do contraente particular (as rés), à pessoa colectiva de direito público (o A.) para levar a cabo a construção do lote 12, característica do contrato administrativo. Para tal, as recorridas não ficaram sujeitas à direcção e fiscalização do município. Cabia-lhes apenas construir o lote num prazo nunca superior a 2 anos.

         Em suma, ainda que subjacente ao protocolo trazido a juízo e com ele relacionado, esteja uma operação de loteamento, esse acordo constitui um negócio jurídico de natureza civil e privado realizado entre particulares e uma autarquia. Não tendo aqui aplicação o estatuído no art.4º/1-f) acima citado, a questão a dirimir reconduz-se, assim, a uma relação jurídica de direito privado, como tal regulada pelos princípios do direito civil comum. Logo, arredada da jurisdição dos tribunais administrativos.

         Haverá assim de concluir-se, em contrário do decidido, que a competência material para apreciação do litígio objecto da presente acção cabe aos tribunais judiciais. No caso, o da comarca da Covilhã

         Isto posto, procede o recurso.

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         III - DECISÃO

         Acorda-se, pelo exposto, em conceder provimento ao agravo, e em consequência, revoga-se o despacho saneador agravado, julgando-se competente em razão da matéria o Tribunal da Covilhã para conhecer desta acção.

         Sem custas.

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                                                                  COIMBRA,


[1]  Cons. Fernando Cadilha, citado no Ac.STJ de 8.5.07 (CJstjII/07-53)
[2]  Cfr. Ac.STJ de 18.1.94, BMJ433-539