Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2158/08.1 TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 369º,Nº3 E 348º, Nº1 DO CP E 500º,Nº2 3 E 4 DO CPP
Sumário: 1.Os preceitos – artigo 69º,nº3, do CP e 500º, nº2,3 e 4 do CPP - que regulam a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sancionam com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.
2.Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão.
3.A cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. F… com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento porquanto alegadamente incurso, segundo acusação deduzida pelo Ministério Público, na prática de factualidade consubstanciadora da autoria material consumada de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

Findo tal contraditório, acabou condenado enquanto agente do ilícito assacado, na pena de 80 dias de multa, á taxa diária de € 4,00, ou seja, na multa global de € 320,00.

1.2. Não conformado com o sancionamento assim decretado, recorre o arguido, extraindo da motivação apresentada as conclusões seguintes:

1.2.1. Na sentença proferida, o M.mo Juiz a quo, por entender que os factos aí considerados provados sob os pontos 1 a 5, preenchem os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime de desobediência [dito artigo 348.º, n.º 1, alínea b)], e, porque não ocorria qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, sancionou penalmente o recorrente.

1.2.2. De acordo com a matéria fáctica considerada assente, o arguido consciente e intencionalmente, tendo sido notificado, na sua própria pessoa, para, no, prazo de dez dias, após trânsito em julgado da sentença, entregar a carta de condução na secretaria do Tribunal sindicado, na DGV ou em qualquer posto policial, sob pena de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência, não a entregou nesse prazo, nem posteriormente, pelo que o título de condução veio a ser-lhe apreendido no dia 14.10.2008.

1.2.3. Assim, seja qual for a interpretação que possa fazer-se do mencionado normativo, a conduta do arguido não preenche indubitavelmente quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo legal de crime de desobediência.

1.2.4. Não é controverso que estamos perante uma norma “norma penal em branco”, ou, de uma norma penal com “espaços em branco”, que no caso concreto, compete à autoridade judicial preencher esse espaço.

1.2.5. Contudo, a “cominação só é válida se for, de entre o mais, materialmente legítima”, o que “remete por força para a consideração da proporcionalidade dela e para o paradigma de um modelo político-criminal constitucionalmente sancionado como um modelo de intervenção mínima (art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), de acordo com o qual ao direito penal é reservada uma função residual, de última linha da politica social.

1.2.6. Inquestionável resulta também o carácter subsidiário desta incriminação, considerado no sentido de que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ela de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra[1], e, sempre, tendo por horizonte o paradigma da intervenção mínima constitucionalmente consagrado no citado artigo 18.º, n.º 2.

1.2.7. Tendo a incriminação prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 348.º do Código Penal carácter subsidiário, a autoridade ou funcionário só podem fazer a cominação aí prevista quando o legislador não tenha estabelecido expressamente que o comportamento deve ser sancionado diversamente, seja por outra incriminação, seja como um ilícito de diferente natureza[2].

1.2.8. Assim, seja qual for a interpretação que possa fazer-se desse preceito, a conduta do arguido não preenche quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo legal de crime de desobediência.

1.2.9. No caso concreto, embora o arguido não tenha entregue a carta de condução no tempo cominado, certo é que o Tribunal, fazendo apelo ao regime constante do artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ordenou a apreensão desse título, assim cumprindo o recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir que fora decretada.

1.2.10. Acrescendo que esta entrega se destina meramente a exercer um melhor controlo acerca da execução da sanção de inibição de conduzir.

1.2.11. Aquele artigo 500.º, n.º 3 prevê a entrega coerciva da carta de condução e, tendo a mesma produzido o efeito pretendido, não se esgotaram os meios legais, pelo que a condição essencial à cominação mais gravosa: a legitimidade.

1.2.12. Acresce que, caso o arguido se escusasse ao cumprimento, sempre seria sancionado pelo crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353.º, do Código Penal.

Terminou pedindo que no provimento da impugnação, seja eximido da responsabilidade penal decretada.

1.3. Notificado ao efeito, respondeu o Ministério Público sustentado também o provimento do recurso e consequente irresponsabilização penal do arguido.

Admitida a oposição, foram os autos remetidos a esta instância.

1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntica procedência.

Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

No exame preliminar a que alude o n.º 6 do dito inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.

Como assim, ordenou-se a recolha dos vistos legais, o que sucedeu, bem como o prosseguimento do recurso com submissão á presente conferência.

Urge ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. Após discussão da causa, deu-se como provada a seguinte factualidade:

1. No dia 18 de Maio de 2007, no âmbito do Processo Abreviado n.º 67/03.0 PTLRA, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, o arguido foi notificado, na sua própria pessoa, para, no prazo de dez dias, após o trânsito em julgado da sentença, entregar a carta de condução na secretaria desse Tribunal, na DGV ou em qualquer posto policial, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.

2. O arguido não a entregou naquele prazo, nem posteriormente.

3. O título de condução veio a ser-lhe apreendido no dia 14 de Outubro de 2008.

4. Não obstante o arguido saber que a ordem era legal, que lhe devia obediência e dimanava de autoridade com competência para a dar.

5. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Apurou-se, ainda, que:

6. O arguido encontra-se actualmente desempregado; recebe ajuda da sua mãe, com quem vive.

7. Foi anteriormente condenado:

7.1 No Processo Abreviado n.º 67/03.0 PTLRA, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por desobediência, praticado em 2 de Agosto de 2003, na pena de 60 dias de multa, já extinta pelo cumprimento;

7.2. No Processo Abreviado n.º 67/03. 0 PTLRA, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, por condução em estado de embriaguez, praticado na mesma data, na pena de 70 dias de multa, já extinta pelo cumprimento.

2.2. Por outro lado, e relativamente a factos não provados, consignou-se na mesma sentença que:

“Não se provaram outros factos.”

2.3. Por fim, a motivação probatória inserta na peça sindicada determina que:

“O tribunal fundou a sua convicção nos elementos documentais constantes dos autos, em conjugação com as declarações do arguido.

Este, para além de esclarecer com credibilidade a sua situação económica, começou por referir que “não lhe disseram que tinha de entregar a carta”, mas não entregou a carta por, na altura dos factos, a ter apreendida em França, vindo apenas a “tirar” uma nova carta de condução em Julho de 2007; mais à frente, no decurso das suas declarações, admitiu que “ficou com a ideia de que tinha de entregar a carta”, “não tendo ideia do prazo de 10 dias”, esclarecendo que não a entregou porque, na altura, “não a tinha para entregar”, tendo o tribunal que “esperar” que tivesse em seu poder a sua carta ou que tirasse outra; mais esclareceu que a sua carta de condução lhe acabou por ser apreendida pela GNR.

Considerou-se, ainda, o teor da sentença extraída do processo acima indicado de fls. 3 e 4, em particular, as menções finais constantes do dispositivo; o teor do auto de apreensão de fls. 19; o teor da acta extraída desses autos de fls. 26 que atesta que o arguido esteve presente em audiência de leitura de sentença e tomou conhecimento pessoal da decisão; e ao teor do CRC do arguido de fls. 56 a 58 quanto aos indicados antecedentes criminais.

Sabendo que tinha de entregar a sua carta de condução num determinado prazo sem que o tenha feito, nem justificando a sua omissão, e conhecendo as consequências da sua conduta, o que bem sabia (sendo certo que consubstancia o comportamento doloso quer a atitude contrária, quer a atitude indiferente ao dever-ser jurídico criminal), conclui-se que o arguido desobedeceu deliberadamente à ordem dada (sabia que tinha de entregar a sua carta de condução, como, de resto, acabou por admitir em audiência de julgamento), razão por que o tribunal deu como provados os factos acima destacados.”


*

III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como é consabido, o âmbito do recurso define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação[3], mas isto sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades insanáveis referidas no n.º 3 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, ou dos vícios elencados nas diversas alíneas do seu n.º 2, estes, todavia, tão somente caso decorram do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[4].

3.2. Não se verificando quaisquer uns destes vícios ou nulidades, consideramos assentes os factos supra descritos, sendo certo que não foi impugnada a matéria de facto.

Por outro lado, das conclusões apresentadas resulta, então, que a única questão decidenda se traduz em aquilatarmos se o arguido deve ser eximido da condenação penal decretada no Tribunal a quo.

Três arestos facilmente acessíveis[5],[6] e [7] contêm asserções que por bastantes ajudam a dilucidar o caso vertente. Donde que aqui os sigamos, de perto.

3.3. Nos termos do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal:

«Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou,
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.»

São, assim, elementos objectivos de tal tipo de crime:

- A ordem ou mandado;

- A sua legalidade substancial e formal;

- A competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão;

- A regularidade da sua transmissão ao destinatário;

- O conhecimento pelo agente dessa ordem.

Assinala Maia Gonçalves[8]: «Trata-se de um artigo controverso. Não é possível a sua eliminação, porque serve múltiplas incriminações extravagantes e por isso poderia desarmar a Administração Pública. Mas seria certamente excessivo proteger desta forma toda e qualquer ordem da autoridade, incriminando aqui tudo o que possa ser considerado não obediência.

A amplitude deste crime voltou a ser ponderada pela CRCP, na 35.ª sessão. Para boa compreensão da amplitude actual da previsão aqui estabelecida, destacamos as seguintes passagens da discussão na CRCP “.... Para o Senhor Conselheiro Sousa e Brito torna-se no entanto necessário restringir o âmbito de aplicação do artigo, pois é excessivo proteger desta forma toda a ordem. Justifica-se plenamente uma restrição àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena. Por outro lado entende que o mandato, por exemplo, deveria ter lugar com a cominação da pena. O Sr. Dr. Costa Andrade, concordando no plano dos princípios com o Sr. Conselheiro Sousa e Brito, frisou o facto de se operar uma alteração muito profunda, a ponto de desarmar a Administração Pública. O mesmo tipo de considerações teceu o Professor Figueiredo Dias (a solução da exigência da norma legal seria a melhor), mas há que ter consciência da Administração Pública que temos. A Comissão acordou na seguinte solução, de molde a afastar o arbítrio neste domínio e numa tentativa de clarificar o alcance da norma para o aplicador (texto actual) ”.

Ficou, portanto, clarificado que para a existência deste crime, para além do que se estabelece no corpo do n.º 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas deste número.»

No caso em apreço, o preceito que regula a execução da pena acessória de proibição de conduzir não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução.

Na verdade, prescreve o artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:

«No prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo.»

Aditando-se no subsequente n.º 3 do mesmo preceito:

«Se o condenado na proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da licença de condução.»

Igualmente o n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal estabelece:

«No prazo de 10 dias contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.»

Isto é, não decorre destes normativos qualquer cominação legal da punição da não entrega como crime de desobediência.

Por sua vez, no que concerne ao preenchimento do tipo através da simples “cominação funcional” (assim designada por contraposição à “cominação legal”), importará ponderar se as condutas arguidas de desobediência merecem ou não tutela penal, tendo em vista o carácter fragmentário e de ultima ratio da intervenção penal, sendo que, como assinala Cristina Líbano Monteiro[9], “ (…) a al. b) existe tão-só para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza (i. é, mesmo um preceito não criminal) prevê aquele comportamento desobediente. Só então será justificável que o legislador se tenha preocupado com um vazio de punibilidade, decidindo-se embora por uma solução, como já foi dito, incorrecta e desrespeitadora do princípio da legalidade criminal.”

Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, pelo que entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma.

Como se sufraga, relembra-se, no citado aresto deste Tribunal, “ (…) Digamos que a notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, como vimos, apenas a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.

Não há pois qualquer cominação da prática de crime de desobediência.

Por outro lado como é sabido, o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9.º do Código Civil).

Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente.”

Bem como, além do mais, no da RL, de 18.12.08, “ (…) criando a lei mecanismos para quando, ultrapassada a fase “declarativa” da decisão sem que o agente cumpra voluntariamente, se passe a uma fase executiva da mesma, reagindo-se ao comportamento omissivo (no caso a não entrega da carta) com emprego de meios coercivos (determinando-se a concretização oficiosa da sua apreensão, fase para a qual se mostra indiferente a adopção de um comportamento colaborante por parte do arguido), e considerando que, entregue ou não a carta, se este conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP (o que reduz, repete-se, a entrega da carta a um mero meio de permitir um mais fácil e melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir), a cominação da prática de crime de desobediência para a não entrega no momento em que surge nos caso dos autos carece de legitimidade.”

Pano de fundo e apontada exigência reclamada na interpretação do artigo 348.º, n.º 1, alínea b) em causa mostra-se ainda mais desenvolvido no último aresto quando mais adianta aduz: “ (…) Não é controverso que estamos perante uma norma “norma penal em branco” ou, …, de uma norma penal com “espaços em branco”, no sentido de que “parte dos elementos relevantes para o preenchimento hão-de colher-se em outro local que não na própria previsão incriminadora” – espaço em branco que, no caso, se pretende preenchido pela notificação pela autoridade judiciária para prática do acto em causa (entrega da carta de condução) sob a competente cominação (seguida, naturalmente, pelo desrespeito por parte do agente).

Não é também controverso que são elementos objectivos do tipo a ordem ou mandado, a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão e a regularidade da sua transmissão ao destinatário [Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 2.ª Edição, Volume II, p. 1089 e ss].

As “exigências” que tais elementos conlevam, designadamente os três primeiros, espelham bem as “cautelas” do legislador quanto à abertura da possibilidade de incriminação de conduta não totalmente delineada em concreto, sendo estas por sua vez o reflexo do princípio da legalidade que impera em matéria de definição de condutas puníveis.

Em concreto quanto ao crime de desobediência é de lembrar até que, tendo, na comissão de revisão do Código Penal sido ponderada a necessidade de se manter o tipo, por servir a múltiplas incriminações extravagantes, restringindo-se, contudo, o âmbito de aplicação da norma àquelas ordens protegidas directamente por disposição legal que preveja essa pena, só por se entender ser de considerar a «Administração Pública que temos» e para não “desarmar” a Administração Pública, se acrescentou à exigência de norma legal prévia a possibilidade de a autoridade ou o funcionário fazerem a correspondente cominação [Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pp. 407-408], sendo, face ao aí expendido evidente, não só que com a actual redacção do preceito se quis clarificar o alcance da norma para o aplicador (deixando claro que o legislador apenas passou a conferir relevância criminal às desobediências que tenham desrespeitado uma cominação prévia legal ou expressa pelo emitente) mas também, e sobretudo, que se pretende afastar o arbítrio neste domínio.
Outro não poderia ser o “pano de fundo” da leitura que cumpre fazer do dito preceito face, desde logo, àquele já referido princípio, “trave mestra” do nosso direito penal: afinal, …, a sua aplicação conleva que a autoridade (no caso o M.mo Juiz), no preenchimento do espaço em branco “no âmbito da referida previsão”, actue, de alguma forma, «como “legislador”», sendo ela «que – de modo legalmente vinculado, é certo – selecciona as hipóteses concretas em que a cominação deve ser feita», o que, subversivo que é daquele princípio, só por si, para além de justificar um posicionamento especialmente cauteloso na sua interpretação, …, torna patentemente indiscutível o que se considera na decisão recorrida quando se frisa que só sendo a cominação válida “se for, de entre o mais, materialmente legítima”, tal “remete por força para a consideração da proporcionalidade dela e para o paradigma de um modelo político-criminal constitucionalmente sancionado como um modelo de intervenção mínima (art.º 18.º, n.º 2, da CRP), de acordo com o qual ao direito penal é reservada uma função residual, de última linha da política social”.

Bem assim, inquestionável resulta também o carácter subsidiário desta incriminação, considerado no sentido de que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal, contra-ordenacional ou outra.

Num tal contexto e quadro legal/conceptual nenhum reparo merece o assumido na decisão recorrida na medida em que, considerando «sempre tendo por horizonte o paradigma da intervenção mínima referida (que flui … do art.º 18.º, n.º 2, da CRP)” que “a própria lei processual tem mecanismos que, antes do direito penal, são/devem ser chamados a intervir», [“desde logo, não respeitando o condenado a “ordem” de entrega da carta ("ordem" que, de resto, resulta directamente da lei – artigo 500.º/2, do CPP – não precisando, para valer, da interposição e da intervenção do Juiz), o tribunal manda apreendê-la (art.º 500.º, n.º 3 CPP), sem necessidade de cominar seja o que for] e ainda que «… entregue ou não a carta, se conduzir no período de proibição comete o crime do artigo 353.º do CP: a entrega tem, por isso, a “mera” função de permitir um melhor controlo da execução da pena de proibição de conduzir.”

Tudo a determinar, depreende-se, não haver lugar, no caso, à cominação do crime de desobediência.


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IV – Decisão.

Termos em que pelo exposto, na procedência do recurso se revoga a decisão recorrida, e, consequentemente, se decreta a absolvição penal do recorrente.

Sem custas.

Boletim ao registo criminal na 1.ª instância.

Notifique.


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Coimbra, 25 de Novembro de 2009



[1] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 354.
[2] Acórdão da Relação de Lisboa, de 05.12.07, acessível in www.dgsi.pt/jtrl.
[3] Artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
[4] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 7/95, em interpretação obrigatória.
[5] Deste mesmo Tribunal, relatado em 22.10.08, pelo Ex.mo Desembargador Esteves Marques: “1. O preceito que regula a execução da proibição de conduzir, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução. 2. A notificação que é feita ao arguido para no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, tem apenas um carácter informativo, ou se se quiser, não integra uma ordem, já que da sua não entrega decorre, apenas, a apreensão da mesma por parte das autoridades policiais.”.
[6] Ainda desta RC, relatado em 22.04.09, pelo Ex.mo Desembargador J. Gonçalves: “1. Para a execução da pena acessória de proibição de conduzir o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução – entrega que decorre dos termos da lei e não pressupõe qualquer ordem específica para esse efeito – tem como consequência a determinação da sua apreensão, pelo que entendemos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega contraria o sentido da norma. (…).”.
[7] Da Relação de Lisboa, subscrito em 18.12.08, pela Ex.ma Desembargadora M.ª da Luz Batista: “O preceito que regula a execução da proibição de conduzir em casos como o dos autos, não sanciona com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução: estabelecendo-se no art.º 55.º do CPP aliás em consonância com o art.º 69.º do CP que no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado a entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendida no processo (n.º 2 do preceito). No seu n.º 3 o que se determina é que se a proibição de conduzir veículos motorizados não proceder de acordo com o disposto no número anterior, o tribunal ordena a apreensão da carta.”
[8] In Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18.ª edição, pág. 1.045.
[9] Obra, volume e página já citada.