Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
106/06.2TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 1ª SECÇÃO DAS VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1813º E 1868º DO CC, 493º 494º, 498º, 674º E 677º DO CPC
Sumário: I. A razão justificativa da derrogação da doutrina da força vinculativa especial do caso julgado material, consagrada pelo artigo 674º, do CPC, constante dos artigos 1813º e 1868º, do CC, consiste nas menores garantias de apuramento da verdade que oferece a acção instaurada pelo MP, em face da acção proposta ou prosseguida pelas pessoas que, normalmente, gozam de legitimidade para a sua propositura ou prosseguimento.

II. Fundando-se as duas acções na mesma causa de pedir, isto é, na filiação biológica, tal não constituiria, por si só, obstáculo à propositura de nova acção de investigação de paternidade, mesmo a verificarem-se os demais pressupostos de que depende a existência do caso julgado, se o autor alicerçasse esta segunda acção, em distinta, mesmo que meramente complementar, causa de pedir, ou seja, em qualquer outra das presunções legais, para além da referida na alínea e), que constituem o nº1, do artigo 1871º, do CC.

III. Assim sendo, não é a identidade do agente [MP] que convoca a identidade do interesse subjacente à sua intervenção, pois que, umas vezes, actua em nome próprio, na hipótese das acções oficiosas de investigação da paternidade, e, noutras, em representação legal dos menores, na hipótese das acções de investigação de paternidade, comum ou facultativa, mas antes a diversidade da sua actuação pessoal que reclama os distintos interesses que o caso concreto implica, quer de natureza pública do Estado, quer de natureza privada do menor.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

A..., solteiro, maior, residente na X... nº 17, 4º, Esq., Norte, Costa da Caparica, interpôs recurso de agravo da decisão que, na presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, que propôs contra B..., casado, major da força aérea, residente em Y..., Coimbra, julgou verificada a excepção do caso julgado e, em consequência, declarou a absolvição do réu da instância, terminando as alegações, onde conclui pela sua revogação, formulando as seguintes conclusões:
1ª – O regime instituído pelos artigos 1813º e 1868º do Código Civil segundo o qual a improcedência da acção oficiosa de declaração da maternidade ou de reconhecimento da paternidade instaurada pelo Ministério Público não obsta a que nova acção judicial seja proposta com o mesmo fim, ainda que baseada nos mesmos factos, constitui uma franca derrogação do princípio geral da força vinculativa do caso julgado.
2ª – Como normas excepcionais que são o seu regime sobrepõe-se ao das normas dos artigos 493º nº 2, i), 494º e 495º do CPC, que integram normas de carácter geral.
3ª – As razões sócio-económicas e filosóficas que justificam a excepcionalidade de tal regime têm a ver com interesses da organização familiar e social dos cidadãos e não com aspectos meramente técnico-processuais, como sejam o de apurar se o MP agiu em sede de processo administrativo como representante do Estado ou de processo judicial em representação do menor, distinção que a lei não prevê nem consagra.
4ª – No caso em apreço poder-se-á entender que existe uma situação de caso julgado, a qual porém, atento o regime excepcional acima referido, não obsta a que a presente acção tenha sido bem proposta e deva prosseguir.
Nas suas contra-alegações, o réu conclui no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
A Exª Juiz determinou a subida dos autos, nada mais acrescentando ao que se lhe ofereceu dizer aquando do decidido.
Com interesse relevante para a apreciação e decisão do mérito do agravo, importa reter a seguinte factualidade:
1 – A acção de investigação de paternidade, com processo ordinário, sob o nº 1075/94, proposta pelo Ministério Público, em representação do ora autor, então menor, nascido a 5 de Dezembro de 1986, contra o aqui réu, com fundamento no relacionamento sexual deste com a mãe daquele, no período legal da concepção, foi julgada improcedente e o réu absolvido do pedido, por sentença transitada em julgado – Documento de folhas 29 a 31 verso.
2 – Na presente acção, o autor invoca, como fundamento do pedido do seu reconhecimento como filho do réu, a pratica de relações sexuais deste com a mãe daquele, no período legal da concepção – Documento de folhas 1 e 2.
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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se há lugar à formação de caso julgado na sentença que absolveu o réu do pedido, em acção de investigação de paternidade proposta pelo autor menor, representado pelo Ministério Público, em relação à presente, com o mesmo pedido e fundamento, mas proposta pelo autor, enquanto maior.
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DO CASO JULGADO
Entendeu o Tribunal «a quo» que se verifica a excepção do caso julgado e, em consequência, declarou a absolvição do réu da instância.
Sempre que o registo do nascimento de um menor seja omisso quanto à sua paternidade, se a maternidade já estiver estabelecida, ou se for pedido, conjuntamente, o reconhecimento de uma e outra, deve o Ministério Público averiguar, oficiosamente, a identidade do pai, e, eventualmente, propor a respectiva acção de investigação, sempre que o presumível progenitor negue ou não confirme a paternidade, e a acção seja considerada viável, com vista ao reconhecimento voluntário [perfilhação] ou ao reconhecimento judicial [estabelecimento judicial da paternidade], nos termos das disposições combinadas dos artigos 1864º, 1865º, 1869º, 1849º, 1847º e 1796º, nº 2, do Código Civil (CC), 202º e seguintes, da Organização Tutelar de Menores, e 121º, do Código do Registo Civil.
E, não tendo a paternidade sido reconhecida, por perfilhação voluntária ou em acção de investigação oficiosa, nos casos de filiação ocorrida fora do casamento, pode ainda estabelecer-se, por decisão judicial, em acção de investigação de paternidade comum, agora desprovida da fase de averiguação oficiosa prévia, em conformidade com o estipulado pelos artigos 1847º, 1796º, nº 2 e 1869º a 1873º, todos do CC.
De todo o modo, a improcedência da acção oficiosa não obsta a que seja intentada nova acção de investigação de paternidade, ainda que fundada nos mesmos factos, como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1813º e 1868º, do CC, o que constitui uma excepção à regra geral constante do artigo 674º, do CPC, que define o âmbito subjectivo do caso julgado, nas acções de estado, segundo a qual, desde que a acção tivesse sido proposta contra os interessados directos e houvesse oposição, a improcedência da acção oficiosa vincularia os terceiros e, por isso, o pretenso filho.
O legislador deve ter pretendido que a averiguação oficiosa, inspirada pelo interesse público da filiação, não diminuísse o tradicional direito do investigante particular, empenhado na constituição do estado jurídico de filho, receando que este relevantíssimo direito pudesse ser comprometido por uma acção oficiosa descuidada, improcedente e preclusiva, não permitindo que a intervenção «ex officio», para tutela do interesse público, pudesse prejudicar o direito de acção do particular.
Porém, só nos casos mais relevantes, isto é, nos que contendem com a investigação do vínculo omisso, o legislador afastou a regra geral do caso julgado, porquanto, nos demais casos, não poderá repetir-se uma acção conduzida pelo MP sobre a qual já recaiu uma sentença desfavorável[ Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, 1979, 34 e 35.].
A razão justificativa da derrogação da doutrina da força vinculativa especial do caso julgado material consiste nas menores garantias de apuramento da verdade que oferece a acção instaurada pelo MP, em face da acção proposta ou prosseguida pelas pessoas que, normalmente, gozam de legitimidade para a sua propositura ou prosseguimento[ Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, V, 1995, 71.].
Por outro lado, a intervenção do MP na proposição de acções de investigação de paternidade pode ocorrer, quer em acções de investigação oficiosas, em representação do Estado, quer em acções de investigação comum, em representação activa dos incapazes, como acontece com os menores, nos termos do estipulado pelos artigos 122º e 123º, do CC, 10º, nº 1, do CPC, e 5º, nº 1, c), do Estatuto do Ministério Público (Lei nº 60/98, de 27 de Agosto).
Revertendo à hipótese dos autos, na acção transitada em julgado, a actuação do MP não revestiu carácter oficioso, como se tivesse acontecido na decorrência de um dever imposto pelo Estado, agindo antes em representação do menor, que é o verdadeiro autor da acção.
Efectivamente, no caso de representação legal ou voluntária, a parte é o representado e não o representante, não deixando a parte de ser a mesma se, posteriormente, se tornou capaz [Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 309, e nota 2; Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, 1978/79, 3.], pelo que o MP não é parte, mas antes o representante de uma parte.
Assim, surgindo, na primeira acção, o MP, em representação do autor, e nesta o autor, dotado de plena capacidade judiciária, existe identidade de sujeitos, em ambas as acções, de natureza comum e facultativa, atento o disposto pelo artigo 498º, nº 2, do CPC, porquanto as partes são as mesmas, sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica[ STJ, de 3-5-2000, BMJ nº 497, 371; e de 3-11-94, CJ (STJ), Ano II, T3, 115.].
E, sendo a causa de pedir invocada, em ambas as acções, a filiação biológica, a procriação ou o acto gerador, e o pedido o de reconhecimento judicial da filiação, mesmo aderindo-se à concepção da causa de pedir complexa[ Santos Silveira, Investigação de Paternidade, 1971, 190 e 191.], tratando-se, nos dois pleitos, da mesma causa de pedir, procedendo a pretensão deduzida, em qualquer delas, do mesmo facto jurídico, ocorre, igualmente, a identidade deste requisito do caso julgado, em conformidade com o estipulado pelo artigo 498º, nº 4, do CPC.
Ora, fundando-se as duas acções, na mesma causa de pedir, isto é, na filiação biológica, tal não constituiria, «in casu», obstáculo á propositura de nova acção de investigação de paternidade, se não se verificassem os demais pressupostos de que depende a existência do caso julgado, ou seja, a identidade dos sujeitos e do pedido, os quais, mesmo verificados, não desencadeariam o caso julgado se o autor alicerçasse esta segunda acção, o que não aconteceu, em distinta, mesmo que meramente complementar, causa de pedir, ou seja, em qualquer outra das presunções legais, para além da referida na alínea e), que constituem o nº 1, do artigo 1871º, do CC.
Por seu turno, defendendo o autor que são razões sócio-económicas e filosóficas que justificam a excepcionalidade do regime da exclusão do caso julgado, em caso da improcedência da acção oficiosa, tal valeria, igualmente, para as acções de investigação de paternidade facultativa, em que o MP agisse, em representação do menor, por manifesta identidade de razão.
A intervenção cível do MP, em 1ª instância, ao nível da representação do Estado nos Tribunais, contende com o Estado-Administração e com o Estado-Colectividade, destacando-se, nesta última área, a tutela da personalidade dos incapazes, ausentes e incertos, em que a intervenção principal do MP ocorre, através de representação legal, necessária ou forçada[ Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais, 1985, 21, 28, 30 e 33.].
Porém, se o interesse público no estabelecimento da filiação justifica que o MP proponha, em nome próprio, na sequência de averiguação oficiosa, acções de investigação de paternidade, já não fundamenta, também, que proponha acções de investigação de paternidade, em representação do menor, porquanto, agindo em tal qualidade, não visa defender o interesse público, mas antes o interesse concreto do menor, só, eventualmente, coincidente com aquele[ Pereira Coelho, RLJ, Ano 115º, 7].
Além, age em nome próprio, menos no interesse dos menores do que no interesse do Estado em obter o reconhecimento dos filhos, o mais próximo possível da época do nascimento, embora, reflexamente, a sua intervenção aproveite a outras pessoas, no caso concreto, aos menores, aqui age em nome do Estado-Colectividade, no interesse concreto do menor.
Referindo-se à acção oficiosa, a norma excepcional do artigo 1813º, do CC, não se aplica quando a acção precedente foi intentada pelo MP, em representação do menor, porquanto, nestes casos, é este o autor e a acção não é, portanto, oficiosa[ Costa Pimenta, Filiação, 4ª edição, 2001, 142.].
Assim sendo, não é a identidade do agente [MP] que convoca a identidade do interesse subjacente à sua intervenção, pois que, umas vezes, actua em nome próprio, na hipótese das acções oficiosas de investigação de paternidade, e, noutras, em representação legal dos menores, na hipótese das acções de investigação de paternidade, comum ou facultativa, mas antes a diversidade da sua actuação pessoal que reclama os distintos interesses que o caso concreto implica.
Por isso, a propositura desta nova acção, após o trânsito em julgado da sentença proferida na primeira, implica violação do caso julgado material, nos termos do disposto pelos artigos 674º e 677º, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, atento o disposto pelos artigos 493º, nºs 1 e 2 e 494º, º 1, i), todos do CPC.
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CONCLUSÕES:
I - A razão justificativa da derrogação da doutrina da força vinculativa especial do caso julgado material, consagrada pelo artigo 674º, do CPC, constante dos artigos 1813º e 1868º, do CC, consiste nas menores garantias de apuramento da verdade que oferece a acção instaurada pelo MP, em face da acção proposta ou prosseguida pelas pessoas que, normalmente, gozam de legitimidade para a sua propositura ou prosseguimento.
II - Fundando-se as duas acções na mesma causa de pedir, isto é, na filiação biológica, tal não constituiria, só por si, obstáculo à propositura de nova acção de investigação de paternidade, mesmo a verificarem-se os demais pressupostos de que depende a existência do caso julgado, se o autor alicerçasse esta segunda acção, em distinta, mesmo que meramente complementar, causa de pedir, ou seja, em qualquer outra das presunções legais, para além da referida na alínea e), que constituem o nº 1, do artigo 1871º, do CC.
III - Assim sendo, não é a identidade do agente [MP] que convoca a identidade do interesse subjacente à sua intervenção, pois que, umas vezes, actua em nome próprio, na hipótese das acções oficiosas de investigação de paternidade, e, noutras, em representação legal dos menores, na hipótese das acções de investigação de paternidade, comum ou facultativa, mas antes a diversidade da sua actuação pessoal que reclama os distintos interesses que o caso concreto implica, quer de natureza pública do Estado, quer de natureza privada do menor.
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DECISÃO:
Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e, em consequência, em confirmar, inteiramente, o douto saneador- sentença recorrido.
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Custas, a cargo do autor.