Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
984/09.3TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE IMPOSIÇÕES
PROIBIÇÕES OU INTERDIÇÕES
Data do Acordão: 11/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - 2º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 69º, N.º 3 E 353º, DO C. PENAL
Sumário: O arguido, pese embora tenha sido notificado, para esse efeito, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal, já que a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.
Decisão Texto Integral:

10

I. Relatório

1. No âmbito do processo n.º 984/09.3TAVIS do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, mediante acusação pública foi o arguido A..., melhor identificado nos autos, submetido a julgamento em processo comum, sendo-lhe, então, imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do Código Penal – [cf. fls. 45 a 47].

2. Realizado o julgamento, com a intervenção do tribunal singular, por sentença de 25.01.2011, veio o arguido a ser absolvido.

3. Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

I. Após a revisão do Código Penal levada a cabo pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, a conduta concreta do arguido recorrido definida na acusação pública contra si deduzida, isto é, a falta de entrega da sua carta de condução, no prazo legalmente fixado, entrega essa que lhe foi imposta, por sentença criminal transitada em julgado, para cumprimento da pena acessória de inibição de conduzir em que fora condenado, consubstancia o crime de violação de imposições, proibições ou interdições previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal.

II. Efectivamente, tal normativo, que punia na versão originária quem violasse “proibições ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória”, passou a punir, com a revisão operada “quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título (…) de pena acessória”.
III. Resulta evidente que ao referir-se à violação de imposições foi intenção do legislador abranger a falta de entrega da carta de condução para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir a que alude o artigo o artigo 69.º - 1/a do Código Penal, sendo certo que tal cumprimento apenas se inicia com a entrega efectiva daquele título.
IV. Com efeito, a obrigação de entrega da carta de condução é inerente à própria pena acessória de proibição de conduzir, já que a condenação em tal pena implica a imposição ao condenado daquela obrigação, sem a qual não é possível o respectivo cumprimento.
V. Ora, a incriminação agora prevista no artigo 353.º do Código Penal foi obviamente alargada com o objectivo de incluir os casos de incumprimento de imposições determinadas por sentença criminal a título de pena acessória, nos quais se integra a situação traduzida na omissão de entrega da carta de condução por parte por parte do arguido recorrido a quem foi imposta pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69º - 1/a do Código Penal, no prazo legalmente previsto e determinado na sentença condenatória.
VI. Assim sendo, preenchendo os factos descritos na acusação pública, os requisitos objectivos e subjectivos do crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal, crime esse diverso daquele que, na mesma peça processual, foi imputado ao arguido recorrido, deveria o Tribunal a quo ter operado uma alteração da qualificação jurídica dos factos, após o cumprimento oportuno do disposto no artigo 358.º - 1 e 3 do Código de Processo Penal, e em consequência, deveria ter condenado o arguido recorrido às consequências jurídicas legalmente previstas.
VII. Por conseguinte, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 353º do Código Penal e no artigo 358º - 1 e 3 do Código de Processo Penal.

Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá o presente recurso merecer provimento, e em consequência, deverá a sentença recorrida ser revogada, e substituída por outra, que observando o contraditório, condene o arguido pelos factos que lhe vinham imputados na acusação pública, fazendo-se desta forma a acostumada Justiça.

4. Ao recurso respondeu o arguido, concluindo:

1. A Douta Sentença recorrida não merece qualquer reparo.
2. O arguido não praticou o crime que lhe vinha imputado na douta acusação (348.º CP).
3. O arguido não praticou o crime que o recorrente pretendia ver imputado mediante alteração não substancial da acusação (353.º CP).
4. A matéria de facto apurada não permite a subsunção da conduta do arguido a nenhum tipo legal de crime em vigor na ocasião da sua prática.
5. Não se encontrando por isso reunidos os requisitos objectivos e subjectivos para que o mesmo possa ser punido seja a que título for.
Pelo que
6. A Douta Sentença em crise decidiu como é de Direito aplicando de forma exacta e correcta a Lei em vigor aos factos apurados. Sempre se acrescentando que
7. Qualquer dos crimes supra referidos são crimes dolosos, dolo, esse, não apurado na conduta do arguido. Além de que
8. A ordem incumprida na raiz do procedimento criminal é ilegítima e ilegal não respeitando os prazos legalmente aplicáveis definidos no CE, os aqui aplicáveis.
9. Pelo que, também aqui, por falta destes elementos materiais e subjectivos do tipo legal nunca poderia o arguido ser punido por estes factos fosse a que título fosse.

Nestes termos,
Mantendo-se a douta decisão recorrida, farão V. Ex.cias, como sempre a sã e costumada JUSTIÇA.

5. Admitido o recurso, fixado o respectivo regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a este Tribunal – [cf. fls. 124].

6. Na Relação, o Ilustre Procurador – Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo “Nestes termos, face a tudo o que ficou exposto, na medida em que também entendemos que não está prevista para este tipo de situações omissivas a cominação da prática do referido crime de Desobediência ou de Violação de Proibições, antes tão só atinente processualidade administrativa, em consonância com a fundamentação do Mm.º Juiz “a quo”, somos de parecer que o recurso do Ministério Público poderá improceder.” – [cf. fls. 131/133].

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP não foi apresentada resposta.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do âmbito do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
Assim, no caso concreto a única questão que se impõe decidir traduz-se em saber se deveria o Tribunal a quo, perante a factualidade apurada, ter condenado o arguido/recorrido pela prática de um crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, dando, para tanto, prévio cumprimento ao artigo 358.º do CPP.

2. A decisão recorrida

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:

1. O arguido foi condenado, no Processo Abreviado n.º 78/08.9PTVIS, do 1º Juízo Criminal deste Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, na “sanção acessória de proibição de condução de quaisquer veículos motorizados pelo período de 9 (nove) meses”, devendo entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença, na Secretaria do Tribunal ou em qualquer Posto de Polícia, “com expressa cominação de que a não entrega da carta constitui crime de desobediência (artigo 348º n.º 1 alínea b) do Código Penal)”;
2. O arguido foi notificado da sentença que transitou em julgado a 27 de Abril de 2009, tendo ficado ciente do seu teor, designadamente do dever de entrega da carta de condução, nos termos supra referidos;
3. O arguido não procedeu à entrega da carta de condução no aludido prazo, o que fez no dia 25 de Maio de 2009;
4. O arguido tem antecedentes criminais conhecidos;
5. O arguido aufere a quantia mensal de € 184,52 de RSI;
6. Vive sozinho em casa arrendada e paga a quantia mensal de € 100,00;
7. Tem o 4º ano de escolaridade.

No que concerne aos factos não provados ficou consignado:

“ Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa”.

Em sede de fundamentação da matéria de facto mostra-se exarado:

“O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade dada como provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida, nomeadamente:
I) Certidão de fls. 2 a 31;
II) Declarações prestadas pelo arguido que confessou, em parte, os factos de que vinha acusado;
III) Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 87 a 94 no que diz respeito aos antecedentes criminais do arguido;
IV) Declarações do arguido quanto à sua situação social e económica.”

3. Apreciando

Conforme deixamos expresso em sede de delimitação do objecto do recurso, a única questão controvertida reside em saber se, perante os factos que vem dados por assentes na decisão recorrida, deveria o Tribunal a quo ter condenado o arguido pela prática de um crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, mediante a prévia comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do artigo 358.º, n.º 3 do CPP, como defende o Ilustre recorrente, que, no caso, se conformou com a absolvição do recorrido pelo crime de desobediência, crime, esse, que lhe havia sido imputado na acusação pública.

De relevante, para o que nos ocupa, resultou apurado ter sido o arguido condenado, por sentença transitada em julgado no dia 27.04.2009, no âmbito do processo abreviado n.º 78/08.9PTVIS, que correu termos no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 [nove] meses, sendo que na própria sentença lhe foi comunicado o dever de entregar, no prazo de 10 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão, a sua carta de condução na Secretaria do Tribunal ou no Posto de Polícia com a expressa cominação de que a não entrega da mesma o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Mais decorre da factualidade vertida na sentença, ora em crise, que o arguido, tendo ficado ciente do dever de entrega da carta de condução, nos termos determinados, não o fez no aludido prazo, só vindo a fazer no dia 25.05.2009.

O que se pretende ver decidido é se tal conduta é passível de se subsumir ao crime p. e p. pelo artigo 353º do Código Penal.
Sobre esta temática já muito se tem escrito, esgrimindo-se argumentos com vista a sustentar as diferentes posições defendidas, desde logo, por parte dos tribunais superiores, sendo frequente, no seio da mesma Relação, encontrar vozes dissonantes, o que bem demonstra tratar-se de questão que está longe de ser pacífica.
Ilustrando o que se vem de dizer, vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do TRC de 20.01.2010 [proc. n.º 672/08.8TAVNO.C1], 23.06.2010 [proc. n.º 1001/08.6TAVIS.C1], 30.06.2010 [proc. n.º 149/08.1TAVGS.C1], 14.07.2010 [proc. n.º 48/09.0TAVGS.C1], 12.07.2011 [proc. n.º 295/09.4TAVIS.C1], 12.05.2010 [proc. n.º 1745/08.2TAVIS.C1], 06.10.2010 [proc. n.º 24/09.2TAVGS.C1], 16.12.2009 [proc. n.º 82/08.7TAOBR.C1], 22.04.2009 [proc. n.º 329/07.07] do TRG de 03.05.2011 [proc. n.º 50/11.1GBGMR.G1], do TRE 14.06.2011 [proc. 146/09.0TAPTG], 24.03.2011 [proc. 2/09.1TAABF.E1], do TRL de 18.12.2008 [proc. 1932/08], 24.03.2010 [proc. 470/04.8TAOER.L1 – 3] do TRP de 10.11.2010 [proc. 118/09.4T3OVR.P1], 22.09.2010 [proc. 2700/09.0TAVLG.P1].
Também na doutrina não se detecta convergência de posições, pronunciando-se Paulo Pinto de Albuquerque no sentido de que o incumprimento da obrigação de entregar a carta integra o crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal – [cf. Comentário do Código Penal, 1.ª edição, pág. 834 e Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição, pág. 1256], enquanto Tolda Pinto, em comentário ao artigo 160.º do Código da Estrada, incluído no “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, vol. I, 2010, UCE, escreve … Assim, o tribunal, ao proferir decisão condenatória que aplica a pena acessória prevista no art. 69.º deve notificar o arguido da obrigatoriedade da entrega da carta no prazo de 10 dias (cfr. n.º 3 do art. 69.º do CP e n.º 2 do art. 500.º do CPP), após o decurso do prazo do recurso, advertindo-o de que o não cumprimento tem consequências penais – o cometimento do crime de desobediência conforme contempla o n.º 3 do CE. Essa advertência deve constar da notificação da decisão (oral ou escrita), conforme estabelece a parte final do n.º 3 do art. 160º do Código da Estrada.

Dito isto, não obstante se descortinar nos citados arestos pelo menos três orientações, uma das quais com duas variantes, atento os termos do recurso, repete-se, só nos cabe pronunciar sobre se a factualidade dada por assente é subsumível no dito crime de Violação de imposições, proibições ou interdições.
E, naturalmente, com o sempre devido respeito por opinião em contrário, entendemos que não.
Por nos revermos na argumentação ai expendida transcrevemos o que a propósito ficou consignado no acórdão do TRC de 12.05.2010 [Relator, Desembargador Ribeiro Martins], reproduzido no acórdão do TRC de 06.10.2010 [Relator, Desembargador Orlando Gonçalves], O que a norma do art. 353.º do CP diz é que pratica o crime quem violar as imposições determinadas a título de pena acessória; não diz, imposições processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória.
Logo, só pratica o crime de violação de proibições quem puser em causa o conteúdo material da pena acessória: v.g. quem conduzir (art. 69.º do CP), quem exercer função (art. 66.º do CP) ou quem violar a suspensão do exercício de funções (art. 67.º do CP). Já não pratica o crime quem não cumpre as obrigações processuais decorrentes da aplicação de uma pena acessória: v.g, não entrega a carta de condução, não entrega a cédula profissional, não entrega a arma e carteira identificativa do serviço, estas obrigações processuais (…). E não se pode entender que a obrigação de entrega da carta faz parte do conteúdo da própria pena acessória (…) Isto porque o legislador define o conteúdo desta no art. 69/1 do Código Penal. E o princípio da legalidade e da tipicidade da norma penal não deixam espaço para interpretações que contrariem o elemento literal do tipo. A imposição material penal é a “proibição de conduzir”, tão só”.
Em idêntico sentido, contrariando a tese que vê na alteração introduzida, pela Reforma Penal de 2007, ao artigo 353.º do Código Penal a expressão da vontade inequívoca do legislador de nele, também, incluir a não entrega da carta de condução, no prazo dos 10 dias contados do trânsito em julgado da decisão, e uma vez mais por traduzir, a esse respeito o nosso pensamento, até porque, modestamente reconhecemos nada termos já a acrescentar, reproduzimos as seguintes passagens do acórdão do TRP de 02.03.2011 [Relator, Desembargador Araújo Barros]: Do que se trata é de violação de obrigações que consubstanciam a própria pena. Não abrangendo as que, como a da apresentação do título de condução, são impostas para possibilitarem o cumprimento de uma pena acessória. O teor do preceito não deixa margem para dúvidas - «quem violar imposições, proibições ou interdições determinadas por sentença criminal, a título de pena aplicada»
(…)
A alteração do artigo 353º do Código Penal operada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, ao acrescentar à previsão legal a violação de “imposições”, a par das de “proibições e interdições”, pretendeu a punição da violação das penas com obrigações de conteúdo positivo, como as injunções cominadas a pessoas colectivas, penas acessórias que, com o mesmo diploma, passaram a estar contempladas nos artigos 90º - A, nº 2, alínea a), e 90º - G do Código Penal”.

Retomando o caso dos autos, impõe-se, pois, concluir que o arguido, ora recorrido, ao não proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado da sentença, com vista ao cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados em que foi condenado, não incorreu na prática do crime de Violação de imposições, proibições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353.º do Código Penal, como pretende o Ilustre recorrente, já que nos termos sobreditos, a sua conduta não representa a violação da concreta proibição de conduzir, a qual, apenas se consuma com a realização da conduta de que se está inibido.

Só resta, assim, julgar improcedente o recurso.

III. Decisão

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso.

Sem tributação

Coimbra, , de , de
[Processado informaticamente e revisto pela relatora]


(Maria José Nogueira)


(Isabel Valongo)