Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
323/05.2TBSVV.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: BENFEITORIA
ACESSÃO
BEM PRÓPRIO
FACTOS ESSENCIAIS
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA / ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.610, 1682-A, 1692, 1696, 1273, 1340, 1722 CC, 264, 856 CPC
Sumário: 1. - A consideração pelo tribunal de um facto essencial, segundo a perspectiva da parte, não alegado nos articulados, mas que resulte da instrução e discussão da causa, implica que o interessado cumpra o referido no n.º 3 do artigo 264.º do Código de Processo Civil, fazendo um pedido nesse sentido («…desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar…»), o que implicará que o juiz declare que tal facto irá fazer parte da base instrutória, o facto fique sujeito a contraditório e, mais tarde, o juiz lhe responda.

2. - Não tendo existido tal procedimento na fase processualmente prevista, fica precludida a prática posterior do acto, não sendo possível ao Tribunal da Relação suprir a falta.
3. - A construção de uma casa pelos cônjuges em terreno que é bem próprio de um deles constitui benfeitoria.
4. - O cônjuge não proprietário do terreno fica a ter um direito de crédito sobre o outro quanto ao valor da benfeitoria, situação que não permite a um credor do cônjuge não proprietário, por dívida da exclusiva responsabilidade deste, obter a procedência de um pedido de impugnação pauliana (artigo 610.º do Código Civil) relativamente à venda que o outro cônjuge fez do mesmo prédio a terceiros.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

*

Recorrente (Autora)…Caixa de Crédito (...), CRL, (…) em Albergaria-a-Velha.

Recorridos (Réus)  A (…), casada com o réu J (…), residente (…) em Sever do Vouga;

………………………J (…) casado, com a Ré A (…), residente (…) Sever do Vouga;

………………………D (…) e esposa M (…) residentes (…) Sever do Vouga;

……………………….M (…) e esposa O (…), residentes (…)Sever do Vouga.


*

I. Relatório.

a) A Caixa de Crédito (...), CRL, instaurou a presente acção declarativa, com processo ordinário, tendo pedido ao tribunal que declarasse que a venda realizada em 15 de Março de 2004, entre o réu J (…) e ré A (…) como vendedores, e os réus D (…) e M (…), ambos irmãos do réu J (…) e seus cônjuges M (…) e O (…), respectivamente, como compradores, foi simulada e que condenasse ainda os réus D (…) e M (…) e seus cônjuges a restituírem à esfera jurídica dos réus A (…) e J (…) o imóvel em apreço, na medida do necessário à satisfação do crédito da autora, de modo a que esta o possa vir a executar no património destes réus.

Alegou que em Outubro de 2000 emprestou à ré A (…) a quantia de 500.000$00, acto que, mais tarde, veio dar origem à instauração de uma acção executiva para reaver a quantia mutuada e seus juros.

Além disso, a ré A (…) foi condenada, em processo criminal, a pagar à autora a quantia de €10.916,89 euros, acrescida de juros de mora, devido ao facto da ré ter sido funcionária da autora e de, nessa qualidade, se ter apropriado de quantias pertencentes à autora, condenação que veio a dar origem a outra execução no âmbito da qual foi feita nova penhora, em 21 de Outubro de 2002, sobre o mesmo prédio, mas também registada provisoriamente, em 5 de Janeiro de 2005, pelas mesmas razões.

A autora sustenta que ao tempo da escritura a ré A (…) estava doente e que os demais réus lograram iludi-la, levando-a a assinar a escritura, tendo estes últimos outorgantes da escritura actuado combinados e de forma simulada, não tendo havido qualquer venda aos pretensos adquirentes, os quais não receberam qualquer quantia, tendo todos como objectivo evitar a penhora e provável venda futura do imóvel.

Os réus J (…) e A (…), por força desta transmissão simulada, não possuem agora, em seu nome, quaisquer bens susceptíveis de penhora.

Face ao exposto, a autora pede que todos os réus sejam condenados a reconhecer a apontada simulação e que seja reconhecido à autora o direito a executar o imóvel em questão, e, ainda, que os réus D (…), M (…), M (…) e O (…) sejam condenados a restituir à esfera jurídica dos réus A (…) e J(…)o imóvel em apreço, na medida do necessário à satisfação do crédito da autora, de modo a que esta o possa executar no património daqueles réus.

Os réus D (…) e M (…)e seus cônjuges contestaram alegando total desconhecimento das condenações e execuções contra a ré A (…), bem como quaisquer outros ónus ou encargos relativos ao imóvel à excepção das hipotecas constantes do registo.

Concluíram pela improcedência da acção.

Os réus A (…) e J (…) contestaram em termos semelhantes aos apresentados pelos Réus D (…) e M (…).

Houve réplica e tréplica e no despacho saneador foi proferida decisão a absolver os réus da instância, com fundamento em contradição entre as causas de pedir e numa incompatibilidade entre os pedidos, devido ao facto da autora pretender, por um lado, os efeitos da simulação e por outro os da impugnação pauliana, isto é, para efeito dos primeiro pedido invocava-se um negócio ferido de nulidade e para efeitos do segundo invocava-se o mesmo negócio, mas agora isento de tal vício.

O tribunal da Relação de Coimbra em sede de recurso revogou esta decisão e determinou que o processo prosseguisse, por se ter entendido que a autora pretende com o pedido apenas obter a condenação dos réus quanto à restituição do imóvel à esfera patrimonial dos primeiros réus para aí o poder executar.

No final veio a ser proferida a sentença que absolveu os réus do pedido com o fundamento de que o prédio não é propriedade da executada e ré A (…), mas sim bem próprio do seu marido, o réu J(…), sendo certo que este não é executado nas aludidas execuções, nem as dívidas exequendas são da responsabilidade de ambos os cônjuges.

b) É desta decisão que a autora recorre, e cujas alegações de podem resumir aos seguintes pontos:

1 – O imóvel urbano penhorado é bem comum e isso mesmo resulta do facto dos réus J (…)e A (…) o terem relacionado como tal no âmbito do processo de inventário para separação de meações n.º 1/01TASVV-B, que correu por apenso à execução com o mesmo número, onde também relacionaram como passivo a dívida que resultou do empréstimo que ambos contraíram para construírem a casa de habitação.

2 – Que a casa de habitação construída por ambos em prédio do réu J (…) é uma benfeitoria e como tal bem comum do casal, não havendo dúvidas de que a habitação foi construída com dinheiro comum (art. 1723.º, al. c) do Código Civil).

3 – A casa foi construída durante o casamento de ambos, como resulta do depoimento das testemunhas (…)

4 – Mesmo que não haja comunicabilidade da dívida da ré A (...), sempre o património comum do casal responderá na parte em que esta é titular de uma quota nesse património comum.

5 – Está provado que os créditos da autora são anteriores à escritura de venda da habitação aos réus D (…) M (…) e respectivas esposas; que este acto se destinou a impedir a satisfação dos créditos da autora, o que foi efectivamente conseguido na prática, pelo que, estão preenchidos os pressupostos para que a impugnação pauliana proceder e para se declarar que a autora tem direito a executar o indicado bem na esfera jurídica dos adquirentes.

c) Os réus contra-alegaram.

Dizem que o inventário para separação de meações não chegou ao fim devido ao facto do réu J (…)ter desistido do mesmo, por certo por se ter convencido que não havia bens a separar, não tendo sido ele a fazer a relação de bens.

Além disso, o teor da escritura de hipoteca junta aos autos pela autora mostra que a casa de habitação já estava feita nessa data, isto é, em 31 de Dezembro de 1993, pelo que, o depoimento das testemunhas e funcionários da autora não corresponde à verdade quando referiram que o empréstimo se destinou à construção da casa, tendo tal empréstimo servido para outro fim, que não o indicado no respectivo documento.

Argumentam ainda que a casa de habitação é bem próprio do réu J (…) porque consta do registo predial que a casa de habitação já existia antes de 26 de Novembro de 1992 e porque foi apenas este réu que outorgou na venda, tendo a ré A (...) limitado a sua intervenção à prestação do seu consentimento como cônjuge.

Além disso, o facto dos réus D (…) e M (…) poderem ter sabido que a ré A (…)tinha dívidas, não resultou provado que conhecessem as dívidas concretas referidas nestes autos como causa de pedir ou que quisessem prejudicar a autora, já que sabiam que o prédio era bem próprio do réu J (...).

Concluem no sentido de não se verificarem os pressupostos da impugnação pauliana, pois as dívidas são da exclusiva responsabilidade da ré A (…) e também por não ter resultado provado que os demais Réus conhecessem as dívidas que servem de causa de pedir a esta acção, devendo julgar-se o recurso improcedente.

d) O objecto do recurso consiste, por conseguinte, nisto:

Em primeiro lugar, averiguar se é possível considerar ainda outros factos para além dos alegados pelas partes nos articulados, isto é, se se pode adquirir agora para o processo o seguinte facto: «A casa foi construída durante o casamento de ambos os Réus A (…) e J (…)?».

Em segundo lugar, cumpre verificar se a casa de habitação é um bem comum ou bem próprio do réu J (…)

Por fim, se ainda for útil, ponderar se se verificam os requisitos da impugnação pauliana.

II. Fundamentação.

a) A matéria provada é esta:

1 - A autora dedica-se ao crédito agrícola, industrial, habitacional e actividades afins, bem como aos demais actos inerentes à actividade bancária que exerce – al. a) dos factos assentes.

2 - Em 23 de Outubro de 2000, a ré A (…) solicitou à autora um empréstimo de Esc. 500.000$00 (ou €2.493,99 euros), destinado a fundo de maneio, tendo a autora aprovado essa operação, com o n.º 56014674844, mediante a condição de o empréstimo ser titulado por uma livrança subscrita pela mutuária, a qual aporia na mesma apenas a sua assinatura, ficando o mais por preencher, bem como uma declaração desta ré a autorizar o seu preenchimento pela autora, no que respeita à data, vencimento, montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas, caso a ré deixasse de cumprir qualquer das obrigações emergentes do contrato de empréstimo, o que esta ré acatou, em 27 de Outubro de 2000 – al. b) dos factos assentes.

3 - A autora creditou aquela quantia na conta de depósitos à ordem n.º (...), actualmente n.º (...), de que a ré A (…) é titular aos balcões da autora em Sever do Vouga, tendo esta utilizado a referida importância – al. c) dos factos assentes.

4 - A taxa de juro anual acordada foi de 9,25% e o empréstimo devia ser reembolsado em 41 prestações mensais constantes de capital e juros de Esc. 15.000$00 (ou €74,82 euros), cada, vencendo-se a primeira no dia 27 de Janeiro de 2001 e as demais em igual dia de cada um dos meses seguintes, sendo que em caso de incumprimento de qualquer das obrigações do mutuário, vencer-se-ia automaticamente toda a dívida, tornando-se exigível e em mora tudo o que constituísse crédito da Autora e agravada a taxa de juros nominal de 4% em caso de mora no reembolso do empréstimo - al. d) dos factos provados.

5 - A ré A (…) não cumpriu com o plano de pagamento do empréstimo e a 30 de Abril de 2002 encontrava-se em débito a quantia de Esc. 535.698$00 (ou €2.672,05 euros), de capital, juros contratuais, juros pela mora e impostos respectivos, tendo a Autora preenchido a livrança, aludida em 3, nos termos do acordado, apondo-lhe a data de emissão e de vencimento de 30 de Abril de 2002, o valor de €2 672,05 (dois mil, seiscentos e setenta e dois euros e cinco cêntimos) e apresentou-a a pagamento à Ré A (…), que não a pagou – al. e) dos factos assentes.

6 - No dia 24 de Fevereiro de 2003, a autora intentou no Tribunal Judicial de Sever do Vouga acção executiva para pagamento de quantia certa, com Processo Ordinário, que ali corre os seus termos, sob o n.º 100/03.5TBSVV, ascendendo a quantia exequenda a €2 963,05 euros, no qual foi penhorado o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Sever do Vouga sob o número (...), sito no lugar de (...), freguesia de (...), composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a área de 670 m2, sendo de superfície coberta 223 m2 e 447 m2 de superfície descoberta, a confrontar do sul com estrada e do nascente com (...), inscrito na matriz sob o artigo (...)– al. f) dos factos provados.

7 - Pela cota G1, apresentação 08/260581, o prédio aludido em 6 encontra-se inscrito a favor do réu J (…), solteiro, por compra a (…) e ao réu D (…), tendo pela apresentação (...) sido averbado que o titular inscrito era, «actualmente casado com A (…), na comunhão de adquiridos» - al. g) dos factos provados.

8 - Pela cota G2, apresentação 03/20040401, o prédio aludido em 6 foi inscrito a favor dos réus D (…), casado com M (…) no regime de comunhão de adquiridos e M (…), casado com O (…) no regime de comunhão de adquiridos – al. h) dos factos provados.

9 - Pela inscrição F-2, apresentação 07/20041126, foi registada a penhora aludida em 6, provisória por natureza, em virtude de os titulares inscritos serem D (…) e mulher e M (…) e mulher, a qual caducou – al. i) dos factos provados.

10 - Aquando da realização da penhora a autora teve conhecimento do aludido em 8 – al. j ) dos factos assentes.

11 - Pela cota C1, apresentação 05/010216, foi inscrita a favor da Caixa de Crédito (...), Cooperativa de Responsabilidade Limitada, hipoteca voluntária para garantia de pagamento de todas e quaisquer letras, livranças, aceites bancários e quaisquer outras responsabilidades, seja de que natureza forem, que a mesma Caixa tenha descontado ou venha a descontar aos devedores, titular inscrito e mulher, individualmente ou em conjunto, até ao limite de 8.000.000$00, ao juro anual de 8,45%, acrescido da sobretaxa de 2% em caso de mora, despesas de 1.000.000$00, pelo montante máximo de 11.508.000$00 – al. k) dos factos assentes.

12 - Pela cota C1, apresentação 03/20040329, encontra-se inscrito a favor da Caixa de Crédito (...), CRL, o arresto efectuado em 27 de Fevereiro de 2004, pela quantia de €14 963,95, no Processo n.º 99/04.0TBASVV do Tribunal de Sever do Vouga, convertido em penhora pela apresentação 04/20041029 – al. l) dos factos assentes.

13 - Por escritura de compra e venda celebrada no dia 15 de Março de 2004, no Cartório Notarial de Sever do Vouga, o réu J (…) declarou vender e a ré A (…) sua esposa, declarou consentir nessa venda, pelo preço de €60.000,00 euros, já recebido, aos réus D (…), casado com a ré M (…), sob o regime da comunhão de adquiridos e M (…), casado com a ré O (…), que declararam aceitar, o prédio aludido em 6 – al. m) dos factos assenets.

14 - A autora participou criminalmente contra a ré A (…) pelo crime de abuso de confiança, em virtude de, enquanto funcionária da autora, se ter apropriado ilicitamente de importâncias pertença desta, tendo esta ré sido condenada, por sentença proferida no dia 5 de Julho de 2002, nos autos de Processo Comum Singular n.º 1/01.1TASVV do Tribunal Judicial de Sever do Vouga, pela prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelos arts. 30.º, n.º 2, 205.º, n.º 1 e 4, al. a) do Código Penal, e ainda no pagamento à aqui autora, a título de indemnização cível, da quantia de €10 916,89 (dez mil, novecentos e dezasseis euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 12% ao ano, a contar de 21 de Abril de 2002, até integral pagamento, que a Autora deu à execução em 03 de Outubro de 2003, reclamando a quantia de €11 519,86 euros e onde foi penhorado o imóvel identificado em 7, por termo datado de 21 de Outubro de 2002 – al. n) dos factos assentes.

15 - Pela cota F3, apresentação 04/20050105 foi registada a penhora provisória por natureza, que entretanto caducou, efectuada em 21 de Outubro de 2002, no âmbito do processo que sob o nº 1/01.1TASVV corre termos neste Tribunal, tendo os titulares inscritos declarado que o bem lhes pertence – al. o) dos factos assentes.

16 - Após a escritura aludida em 13, o Réu J (…) continuou a viver no prédio aí referido – al. p) dos factos assentes.

17 - Por escritura de compra e venda celebrada no dia 10 de Maio de 1981, além (…) e (…), todos solteiros declararam vender, pelo preço de Esc. 2.700.000$00, já recebido, a J (…), solteiro, representado por M (…), que declarou aceitar, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº (...), fls. 49v, do Livro B-166, sito em (...), em (...) – al. q) dos factos assentes.

18 - Aquando da escritura aludida em 13, em 15 de Março de 2004, os réus J (…) e A (…) tinham tomado conhecimento da primeira das penhoras que no âmbito da Execução referida em 6 incidiu sobre o imóvel aí descrito, penhora essa que viria a ser levantada - resposta ao quesito 1.º da base instrutória.

19 - Na escritura referida em 11 ficou consignado entre o mais o seguinte: (…) Que mais se obrigam os segundos outorgantes (aqui Réus A (…) e J (…) a não fazerem arrendamento, consignações de rendimentos do imóvel hipotecado sem prévio acordo escrito da Caixa, bem como em geral, a não alienar, nem realizar actos ou contratos que de algum modo impliquem a desvalorização do imóvel ora hipotecado (…) – resposta ao quesito 2.º da base instrutória.

20 - A escritura aludida em 13 foi realizada sem que disso os Réus J (…)e A (…) tivessem dado conhecimento à autora - resposta ao quesito 3.º da base instrutória).

21- Os réus A (…), J (…), D (…) e M (…) tinham a convicção de que com a realização do negócio descrito em 13 o imóvel, com a ressalva da hipoteca sobre ele incidente em favor da autora, ficaria salvaguardado quanto a outras dívidas dos réus A (…) e J (…) - resposta aos quesitos 4.º a 7.º da base instrutória.

22 - Agora os réus J (…) e A (…) não possuem em seu nome quaisquer bens susceptíveis de penhora - resposta ao quesito 8.º da base instrutória).

23 - Antes da escritura aludida em 13, os réus D (…) e M (…) tiveram conhecimento que os réus A (…) e J (…) tinham dívidas -resposta ao quesito 9.º da base instrutória.

24 - …pois convivem habitual e diariamente com estes - resposta ao quesito 10.º da base instrutória).

25 - O réu J (…), com o acordo dos réus D (…)e M (…) continuou a habitar a casa aludida em 13 - resposta ao quesito 23.º da base instrutória.

26 - Os réus D (…), M (…) e J (…) estão todos civilmente registados como filhos de (…) e (…) – documentos de folhas 373 a 375, factos descritos a folhas 632.

2 - Passando à análise das questões objecto do recurso.

a) Vejamos se é possível considerar ainda outros factos para além dos alegados pelas partes nos articulados, isto é, se se pode adquirir agora para o processo o seguinte facto: «A casa foi construída durante o casamento de ambos os Réus A (…) e J(…)».

A resposta é negativa.

Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 264.º do Código de Processo Civil, «Às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções».

O n.º 2 deste artigo dispõe que «O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa», regra esta repetida no artigo 664.º do mesmo código onde se prescreve que o «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos art.º 514.º e 665.º».

O n.º 3 finaliza referindo que «Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório».

Os factos instrumentais são os factos que não sendo essenciais, isto é, os «…integradores da previsão ou “tatbestand” da norma aplicável à pretensão ou à excepção» (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 416), contudo, indiciam ou permitem concluir pela existência destes últimos.

No caso, o facto em apreço, considerando a tese da Autora a questão de saber se «A casa foi construída durante o casamento de ambos os Réus A (…) e J (…)» é facto essencial na medida em que é requisito necessário, embora possa não ser suficiente, para se poder concluir que a casa é bem comum.

Sucede porém, que tal facto não se encontra alegado nos articulados.

É certo que esta questão foi introduzida no interrogatório das testemunhas que falaram sobre a matéria, mas não foi feito qualquer pedido destinado a preencher a norma «…desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar…», o que teria implicado que o juiz, na fase de audiência, antes da resposta à matéria de facto, tivesse declarado que tal facto iria fazer parte da base instrutória, ficasse sujeito a contraditório e, mais tarde, a resposta do juiz.

Não tendo existido tal procedimento não pode agora ter lugar, nem pode voltar-se atrás.

A última etapa prevista para introduzir factos novos termina com o encerramento da discussão em primeira instância e, mesmo neste caso, só se contemplam os factos supervenientes (cfr. n.º 1 do artigo 506.º e n.º 1 do artigo 663.º, ambos do Código de Processo Civil), o que não é o caso.

Tendo sido ultrapassada a fase processual em que tais actos podiam ser requeridos e não o foram, ficou precludida a possibilidade de serem introduzidos no processo.

Rege aqui o princípio da preclusão segundo o qual «Há ciclos processuais rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques. Por isso os actos (maxime as alegações de factos ou de meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos» -  Prof. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 382, Coimbra Editora/1979.

 Passada a face prevista ficou precludida a hipótese de se proceder a essa ampliação fora do ciclo processual próprio.

Improcede, pois, também esta pretensão do recorrente, que, como se verá de seguida, não é relevante para a decisão de fundo.

b) Em segundo lugar, vejamos se a casa de habitação é um bem comum do casal ou um bem próprio do réu J (…).

Face aos factos provados tem de se considerar que a casa é bem próprio do réu J (…).

Com efeito, ficou provado que o réu J (…), quando ainda era solteiro, comprou o terreno onde foi construída mais tarde a casa, tratando-se de bem próprio, nos termos da al. b), do n.º 1 do artigo 1722.º do Código Civil, onde se dispõe que são bens próprios do cônjuge os bens que ele tinha ao tempo da celebração do casamento.

Os factos provados não mostram se a casa foi construída antes ou após o casamento dos réus A (…) e J (…) e com que meios financeiros.

Partindo, porém, da hipótese mais favorável à recorrente, isto é, da hipótese da casa de habitação ter sido construída durante o casamento com dinheiro comum dos cônjuges.

Qual o estatuto jurídico da casa nesta hipótese, isto é, a quem pertence a casa e o terreno onde ela está implantada: ao cônjuge dono do terreno ou a ambos os cônjuges?

A questão consiste em saber se a construção de uma casa por um casal, em terreno próprio de um dos cônjuges, constitui uma benfeitoria ou acessão.

Se se concluir que se trata de um caso de benfeitoria, então o outro cônjuge não adquire a propriedade da casa, pois a lei não lhe faculta a aquisição da propriedade, nem relativamente à construção erguida no terreno, nem quanto ao terreno ocupado pela construção.

Com efeito, as benfeitorias apenas dão lugar à restituição do seu valor de acordo com as regras do enriquecimento sem causa, quando não puderem ser levantadas – artigo 1273.º, n.º 2 do Código Civil.

Por conseguinte, pela via da hipótese que considera a construção da casa como uma benfeitoria, não é possível que a ré A (…) tenha adquirido a propriedade do edifício e do terreno onde está implantado.

Daí, que, concluindo-se que a construção da casa no terreno do réu J (…)constitui benfeitoria, a ré A (…) não seja proprietária, nem do edifício construído, nem do terreno onde foi implantado.

A Ré apenas tem direito ao valor da benfeitoria encontrado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Afastada a hipótese da ré A (…) participar na titularidade do direito de propriedade sobre a casa na hipótese de estarmos perante uma benfeitoria, vejamos se pela via do instituto da acessão industrial imobiliária será possível considerar que a casa de habitação é bem comum.

Esta matéria encontra-se regulada no art. 1340.º do Código Civil, cujo teor é o seguinte:

«1. Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.

2. Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no n.º2 do artigo 1333.º.

3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas no valor que tinham ao tempo da incorporação.

4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno».

No caso concreto, a via da acessão imobiliária também não é viável.

Com efeito, suscitam-se, pelo menos, duas objecções:

Em primeiro lugar, a aquisição do direito de propriedade sobre o edifício construído depende da construção ter valor superior ao do resto do prédio (n.º1 do artigo 1340.º do Código Civil).

Ora, no caso dos autos não estão definidos tais valores, nem tal questão se colocou, pelo que, a hipótese da acessão não pode ser tomada em consideração por ausência de factos.

Em segundo lugar, a aquisição pela via da acessão não ocorre quando o proprietário do terreno tenha comparticipado na realização da obra (cf. ac. da Tribunal da Relação de Guimarães, de 15-03-2006, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 308/06-2).

Com efeito, como assinalaram os professores Pires de Lima/Antunes Varela «A benfeitoria e a acessão, embora objectivamente se apresentem com caracteres idênticos, pois há sempre um benefício material para a coisa, constituem realidades jurídicas distintas. A benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela» ([1]).

No caso dos autos, o réu J (…) não é um terceiro, mas o próprio proprietário do terreno onde foi construída a casa.

E a Ré A (…) também tem um vínculo jurídico ligado à coisa, resultante do facto de ser casada com o proprietário, o que lhe permite usufruir das vantagens que a coisa pode proporcionar, podendo mesmo impedir a sua alienação, uma vez que a venda carece do seu consentimento, como resulta do disposto na al. a) do n.º 1 do artigo 1682.º-A do Código Civil.

Daí que, no presente caso, não estejamos em face de um caso de acessão industrial imobiliária, mas sim perante uma benfeitoria ([2]).

A autora alegou que a casa constitui uma benfeitoria feita por ambos os cônjuges, sendo comum.

No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1993, citado pela autora ([3]), conclui-se que se trata de uma benfeitoria, mas não que a benfeitoria é comum.

Com efeito, a benfeitoria não é um bem comum, mas apenas um melhoramento feito num prédio que é bem próprio do réu J (…).

O direito de propriedade que recai sobre o prédio e que está na titularidade do réu J (…) é o mesmo direito que recai sobre a benfeitoria.

É que a benfeitoria não é separável do prédio, ou seja, é inviável falar juridicamente em propriedade do prédio na titularidade do réu J (…) e, ao mesmo tempo, na benfeitoria feita no prédio como bem comum do casal de réus J(…)e A (…).

Por conseguinte, sendo a construção da casa uma benfeitoria útil, como se afigura pacífico ser, não podendo ser levantada sem detrimento, o réu J (…) apenas tem que satisfazer o valor dela à ré A (…) segundo as regras do enriquecimento sem causa.

É esta a disciplina que o Código Civil prevê no artigo 1273.º para o regime das benfeitorias.

Resulta do exposto, que a ré A (…) é titular de um direito de crédito sobre o réu J (…), seu marido, no que respeita ao valor da benfeitoria.

Coloca-se agora a questão de saber se a casa, sendo como é um bem próprio do réu J (…), pode ser objecto de penhora e venda em execução movida contra a sua esposa por dívidas desta.

A resposta é negativa.

Com efeito, nos termos do artigo 1696.º do Código Civil, «1 - Pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns.

2. Respondem, todavia, ao mesmo tempo que os bens próprios do cônjuge devedor:

a) Os bens por ele levados para o casal ou posteriormente adquiridos a título gratuito, bem como os respectivos rendimentos;

b) O produto do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor;

c) Os bens sub-rogados no lugar dos referidos na alínea a)».

Face aos casos identificados neste artigo verifica-se que não está prevista a possibilidade dos bens próprios de um dos cônjuges responderem pelas dívidas exclusivas do outro.

Repare-se que uma das dívidas resulta de factos de índole criminal, sendo da responsabilidade exclusiva da Ré A (…) (al. b) do artigo 1692.º do Código Civil) e a outra resulta de um empréstimo contraído apenas pela Ré A (…), quanto ao qual não há factos provados que o possam incluir em qualquer um dos casos previstos no artigo 1691.º do Código Civil (dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges), isto é, (a) dívidas contraídas, antes ou depois da celebração do casamento, pelos dois cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro, (b) dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges, antes ou depois da celebração do casamento, para ocorrer aos encargos normais da vida familiar, (c) dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração, (d) dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens (e) dívidas consideradas comunicáveis nos termos do n.º 2 do artigo 1693.º, relativas a doações, heranças ou legados.

Por conseguinte, o prédio em causa não responde pelas aludidas dívidas.

c) Por fim, vejamos se se verificam os requisitos da impugnação pauliana.

Esta questão fica prejudicada pela solução a que antes se chegou.

Não podendo o credor executar o prédio em causa, incluindo a casa nele construída, por não ser da executada, nem estar vinculado por outro título a responder pela dívida exequenda, a impugnação pauliana relativa ao contrato de compra e venda que a teve por objecto não é viável.

Com efeito, nos termos do artigo 610.º do Código Civil, «Os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor…».

Ora, o bem em causa não integra a garantia patrimonial do crédito, isto é, o património do devedor ([4]), e, eventualmente o de terceiros, precisamente porque não pertence ao património do devedor, no caso a ré A (…), mas sim ao património do marido, o réu J (…), que é um terceiro relativamente às relações entre a autora e a ré A (…) emergentes das duas dívidas atrás referidas (a resultante da condenação penal e a relativa ao mútuo).

Ora, os bens de terceiro não estão submetidos à alçada do instituto da impugnação pauliana, salvo se responderem pela dívida.

Mas, muito embora os bens de terceiros também possam responder em certos casos pelas dívidas de outrem no caso dos autos tal não ocorre como já acima se viu.

Há, é certo, uma hipoteca do prédio que garante outras dívidas, diversas das consideradas até agora que são apenas da responsabilidade da ré A (…), na medida em que não se mostra que o seu marido possa ser responsabilizado por elas, mas a mencionada hipoteca é uma garantia que vale por si mesma, porque é eficaz contra o terceiro adquirente que adquire o prédio hipotecado, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 686.º do Código Civil («A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, (...), pertencentes (…) a terceiro, …»), podendo o terceiro adquirente de bens hipotecados antecipar-se e expurgar a hipoteca (cfr. artigo 721.º do Código Civil).

Desta forma, a autora apenas pode executar o direito de crédito da ré A (…)relativo à benfeitoria, direito que ela tem como credora do réu seu marido.

Este direito de crédito é penhorável, nos termos do artigo 856.º do Código de Processo Civil, no âmbito de uma execução que seja movida contra a Ré.


c) Face ao exposto, a terceira questão fica prejudicada, pelo que, dela não se conhece.
Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se o decidido.

Custas pela recorrente.


*


Alberto Ruço ( Relator )
Judite Pires
Carlos Gil


[1] Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 163, 2.ª edição.

[2] A jurisprudência tem-se pronunciado deste sentido:

«Constitui benfeitoria a moradia construída pelos cônjuges, casados em regime de comunhão de adquiridos, em terreno que é bem próprio de um deles» - ac. da Tribunal da Relação do Porto de 25-10-1993, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 9310303.

«I- No caso de prédio rústico, propriedade de um dos cônjuges, no qual foi implantado um imóvel já na pendência do casamento, que foi contraído sob o regime de comunhão de adquiridos, e cujo custo foi suportado por mútuo com garantia real (hipoteca) contraído por ambos os cônjuges, para efeitos de relação de bens não há que entrar em linha de conta com o regime da acessão industrial imobiliária porque a construção não foi implantada em terreno alheio (artigo 1340.º/1 do Código Civil).

II- As obras realizadas (implantação do imóvel) devem ser qualificadas de benfeitorias (artigos 204.º e 216.º do Código Civil)» - ac. da Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-07-2007, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 5851/2007-8.

«A construção de uma casa por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles, deve ser descrita como benfeitoria no inventário para separação de meações» - ac. da Tribunal da Relação de Lisboa, de 14-01-1992, em http://www.gdsi.pt, processo n.º 0032881.

[3] Constitui benfeitoria, e não acessão imobiliária, a construção de um prédio urbano em terreno próprio do outro cônjuge, na medida em que era do conhecimento do cônjuge não proprietário que o terreno era alheio, não podendo, assim, dizer-se preenchido o requisito da sua boa fé -  http://www.gdsi.pt, processo n.º 082914.

No mesmo sentido o acórdão da R.C. de 24-11-98, CJ XXIII-V-21 : constitui benfeitoria e não acessão, a construção, por ambos os cônjuges, de uma casa no terreno de um deles.

[4] Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios - artigo 601.º do Código Civil.