Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4232/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: APENSAÇÃO DE PROCESSOS
COMPETÊNCIA
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE DO CONCURSO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Legislação Nacional: ART.º 16, N.º 3, DO C. P. PENAL
Sumário: 1.- Imediatamente após a apensação efectiva de processos de que resulte, pelos crimes em concurso, eventual alteração da competência do tribunal – de singular para colectivo – antes de se decidir sobre essa competência, deve ser dada oportunidade ao Mº Pº para se pronunciar sobre a possibilidade de usar da faculdade do art.º 16º, nº. 3, do Código de Processo Penal.
2.- A omissão dessa formalidade constitui irregularidade que, se arguida atempadamente, inquina o despacho que decidiu da competência e todos os despachos que se lhe seguirem.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

No processo comum nº 110/03.2PTVIS, a correr termos no 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Viseu foi, por despacho de 24 de Fevereiro de 2005, recebida a acusação deduzida pelo Ministério Público contra A... e designada data para ser julgado pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, p.p. pelos artºs 121º nº1 e 122nº1 e 123º B, todos do Cód. Estrada.
No mesmo dia foi proferido idêntico despacho no processo comum nº 120/03.0PVIS, onde o mesmo arguido foi acusado prática de um crime de condução sem habilitação legal. Na parte final deste despacho o Ex.mo Juiz fez constar ter conhecimento da existência daquele primeiro processo ordenando a apensação deste aquele.
Ambos os despachos foram notificados ao MºPº no dia seguinte à sua prolação, ou seja em 25 de Fevereiro de 2005, tendo-se na mesma data procedido à apensação aos autos nº 110/03.2PTVIS dos autos 120/03.0PTVIS, sem notificação aquele Magistrado.
Em 11 de Abril de 2005 foi proferido no processo principal (nº110/03) o despacho de fls. 21 (69 dos autos) no qual o Ex.mo Juiz do 2º juízo criminal, depois de considerar que a soma das penas cominadas aos três crimes excede 5 anos de prisão (a cada um cabe pena cujo máximo se cifra em 2 anos de prisão), se declarou incompetente e competente o tribunal colectivo ordenando a remessa à secção central para redistribuição como processo comum colectivo.
No mesmo dia tal despacho foi notificado ao MºPº que no dia 14 seguinte fez juntar aos autos um requerimento a arguir a irregularidade nos termos do artº 11º nº1 al. c) e 2 do CPP, por não ter sido notificado no processo principal da apensação aí efectuada, bem como da irregularidade cometida por se ter proferido despacho a enviar os autos para serem distribuídos pelo tribunal colectivo sem a audição do MºPº e dos demais sujeitos processuais.
Para o caso de não proceder a arguição das irregularidades referidas, foi ainda requerido que o julgamento dos três crimes acusados nos dois processos apensados fossem julgados pelo tribunal singular ao abrigo do disposto no artº 16º nº3 do CPP.
Este requerimento recebeu despacho de indeferimento, ora recorrido com, o seguinte teor:
“(…) Compulsados os autos, verificamos que nestes o arguido se encontra acusado da prática de dois crimes de condução sem habilitação legal e que no apenso se encontra acusado da prática de um crime da mesma natureza, qualquer deles p.p. pelos art.s 3º nº1 e 2 do DL nº 2/98 de 3/1 e 121º e 122º do C. Estrada.
Aquando do despacho de recebimento da acusação no proc. comum nº 120/03.0PTVIS foi determinado que se procedesse à sua apensação a estes autos, por se verificar a conexão prevista no artº 25º do CPP.
Esse despacho foi notificado ao MºPº em 25/02/05, tendo sido igualmente notificado ao arguido e ao seu defensor.
Por seu turno, o despacho de recebimento da acusação nestes autos também foi notificado ao MºPº no mesmo dia 25/2/05.
E a apensação veio a ser efectuada, conforme termo constante de fls. 58, naquele mesmo dia 25/2/05.
A efectivação da apensação não foi comunicada a qualquer dos sujeitos processuais. E, em nosso entender, nem teria que o ser, bastando ter sido, como o foi, notificado o despacho que a ordenou, na medida em que a lei não impõe no caso que se notifique o mero cumprimento dos despachos – e a efectivação da apensação foi apenas o cumprimento do despacho anteriormente proferido.
Por outro lado, o despacho que considerou implicitamente incompetente o tribunal singular para proceder ao julgamento conjunto, atribuindo tal competência ao tribunal colectivo, não foi procedido de consulta ao MºPº e aos demais sujeitos processuais e também não vemos que a lei impusesse tal consulta prévia, sendo certo que o mesmo foi devidamente notificado permitindo oportuna reacção.
Entendemos, assim, não se verificar qualquer das apontadas irregularidades.
(…)
Nas acusações deduzidas nestes autos e no apenso foi imputada ao arguido a prática de crimes puníveis com penas cujo limite máximo se situava dentro do limite da competência do tribunal singular. Esse limite só foi excedido por força da apensação dos dois processos e, nessa medida, para que o tribunal singular mantivesse a competência para efectuar o julgamento, teria o MºPº de apresentar requerimento ao abrigo daquele normativo.
Não fixando a lei prazo para a apresentação de tal requerimento, o correspondente prazo terá de ser o de 10 dias, previsto como supletivo no artº 105º do CPP.
Esse prazo conter-se-á a partir do momento em que o MºPº teve conhecimento do concurso.
Ora, o MºPº - por sinal, o mesmo Magistrado do MºPº - não pode ter deixado de ter conhecimento da existência do concurso em 25/2/05. data em que foi notificado dos dois despachos de recebimento das acusações e do despacho que ordenou a apensação dos dois processos, que ambos correm termos pelo mesmo Juízo Criminal.
Assim, entendemos que o requerimento apresentado pelo MºPº em 14/4/05 (a fls.76 v e 77, no ponto II), é extemporâneo e não pode ser atendido.”
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Inconformado com este despacho dele veio recorrer o Magistrado do Ministério Público extraindo da respectiva motivação as seguintes
Conclusões
1ª - Em processo penal, a efectivação da apensação de um processo comum a outro deve ser notificada ao Ministério Público no processo que passa a ser o principal, não sendo suficiente a notificação do despacho que a ordenou no processo que vai ser apensado;
2ª A falta de comunicação ao Ministério Público, no processo principal, da efectivação da apensação aos mesmos de outro processo que, por força do concurso assim superveniente, pode determinar a alteração da competência para o julgamento – do tribunal singular para o tribunal colectivo – constitui irregularidade processual por violação da norma constante do artº 111º nºs 1 al. c) e 2 do Código de Processo Penal, submetida ao regime da arguição previsto no artº 123º do mesmo diploma;
3ª – Ora, em 24 de Fevereiro de 2005 a M.mª Juiz recebeu a acusação e designou dia para o julgamento do arguido no processo nº 110/03.2PTVIS (despacho de fls. 52), pela prática de dois crimes de condução sem habilitação legal, previstos e punidos pelas disposições conjugadas do artº 3º nº1 e 2 do Dec. Lei nº 2/98 de 3 de3 Janeiro, yendo disto sido notificado o Ministério Público no dia seguinte (fls. 53);
4ª – E no dia 24 de Fevereiro de 2005, mas agora no processo nº 120/03.0PTVIS, a M.ma Juiz recebeu a acusação em que o mesmo arguido é acusado pela prática de um crime de igual natureza e ordenou a apensação destes autos aos autos de processo nº 110/03.2PTVIS (despacho de fls. 102), tendo sido notificado este despacho no dia seguinte ao Ministério Público, mas tão-somente no processo nº 120/03.0PTVIS;
5ª – Já após tal notificação, mas nesse mesmo dia – ou seja, sem sequer se aguardar pelo seu trânsito em julgado – foi esse despacho cumprido, pois logo nesse dia foi tal apensação efectuada (v. o termo de apensação de fls.58 lavrado no processo principal nº 110/03.2 PTVIS), sendo certo que dela não foi dado conhecimento ao Ministério Público nestes autos principais nº 110/03.2PTVIS, ou sequer, no apensado nº 120/03.0PTVIS.
6ª – A fls. 69 dos autos principais, e com data de 11/04/2005, exarou a M.ma Juiz do processo um despacho declarando competente para efectuar o julgamento o tribunal colectivo e determinando a redistribuição destes autos como processo comum colectivo, sob pretexto de a soma dos limites máximos das penas aplicáveis aos crimes imputados ao arguido em ambos os processos exceder os cinco anos de prisão, nos termos do artº 14º nº2 al. b) do Código de Processo Penal;
7ª – Por isso, notificado desse despacho em 11/04/2005, veio o Ministério Público arguir a irregularidade apontada, o que fez em 14/04/2005, e requerer a intervenção do tribunal singular no julgamento, nos termos do artº 16º nº 3, do C.P. Penal;
8ª – Indeferindo essa arguição, por entender não haver que notificar essa apensação mas tão só o despacho que a ordenou, ainda que no processo a apensar, o despacho recorrido violou a disciplina do artº 111º nºs 1 al. c) e 2 do CPP, que, aliás, manda proceder à comunicação do conteúdo dos actos processuais no processo, expressão do legislador que tem que se interpretar no sentido de ser aquele no qual se processarão os ulteriores trâmites processuais, bem como as normas dos artºs 118º nº2 e 123º do mesmo diploma;
9ª – Ao não se proceder desta forma sonegou-se também ao Ministério Público a possibilidade de fazer uso da faculdade consagrada no artº 16º nº3 do CPP, já que enquanto não ocorrer a efectivação da apensação o mesmo desconhece processualmente a existência do concurso, bem como os tipos de crime em concurso e a moldura legal que a este corresponde;
10ª – Constitui, também, irregularidade a prolação do despacho de fixação de competência pela Mma Juiz do processo, em fase do julgamento, sem audição prévia do Ministério Público, irregularidade essa decorrente da preterição da norma constante do artº 3º nº3 do CPC, por remissão do artº 4º do CPP;
11ª – Na verdade, o contraditório é uma faculdade que deve pré-existir à decisão, coadjuvando-a, porque a possibilidade de reacção posterior a ela conforma-se mais com o recurso;
12ª – Por isso, ao indeferir também nessa parte a pretensão do Ministério Público em ver declarada a irregularidade, alegando para tanto que o Ministério Público em ver declarada tal irregularidade, alegando para tanto que o Ministério Público sempre podia reagir posteriormente à decisão sobre a competência, a M.ma Juiz do processo violou essas disposições legais, bem como, uma vez mais, as normas constantes dos art.s 118º nº2 e 123º do CPP;
13ª – Por outro lado, só com a notificação de fls. 70 do processo nº110/03.2 PTVIS, em 11 de Abril de 2005, o Ministério Público tomou conhecimento da existência do concurso de crimes (superveniente) e do tipo legal de crimes que integram tal concurso;
14ª – O prazo para ser tomada posição acerca da intervenção do tribunal singular em caso de conhecimento superveniente do concurso deve ser o prazo geral de 10 dias que decorre da norma do artº 105º nº1 do CPP;
15ª – Tal prazo deve contar-se a partir do conhecimento da apensação no processo principal, pelo que, e em vista do que se aduziu, deve considerar-se tempestivo o requerimento de 14/05/2005 em que o Ministério Público faz uso do artº 16º nº3 do CPP;
16ª – Não o entendendo assim, o despacho recorrido violou as disposições contidas nos art.s 105º nº1 e 16º nº3 do CPP;
17ª – Nesta conformidade, devem considerar-se verificadas as arguidas irregularidades e inválidos os actos a que se referem, bem como os termos subsequentes por elas afectados, designadamente o despacho de fls.69 que conheceu da competência para o julgamento atribuindo-a ao tribunal colectivo;
18ª – Devendo também, em consequência, considerar-se tempestivo o requerimento do Ministério Público em que se fez uso do artº 16º nº3 do CPP, que vinculará o tribunal nos seus precisos termos.
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O recurso foi admitido.
O arguido não apresentou resposta.
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciando-se pelo provimento.
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Corridos os vistos cumpre apreciar e decidir:
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São três as questões postas no recurso
Irregularidade da falta de notificação da apensação no processo principal;
Irregularidade decorrente da postergação do contraditório antes da prolação do despacho que conheceu da competência do tribunal; e,
Tempestividade do requerimento do Ministério Público para requerer o julgamento em tribunal singular;
As três questões aportadas resumem-se a uma só, qual seja a de saber, em caso de apensação de processos, quando e em que condições deve ser feito o requerimento a que se reporta o artº 16º nº3 do CPP, pois que o requerimento para requerer o julgamento em tribunal singular com base nesta norma, como o próprio recorrente bem nota, tem de ser feito antes de o tribunal se pronunciar acerca da competência do tribunal decorrente da conexão, e assim o formulado nos presentes autos, feito após este despacho, só será tempestivo se tiver havido omissão de alguma formalidade.
Dispõe o nº3 do artº 16º do CPP “ Compete ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14º nº2 alínea b) [Crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a cinco anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, for inferior o limite máximo correspondente a cada crime.], mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos”.
O normativo acabado de citar, que teve a sua génese na ideia de simplificação e celeridade processuais sem contudo postergar os direitos de defesa dos acusados e tem por fim a fixação da competência no tribunal singular, o que implica necessariamente a simplificação de meios, naqueles casos em que não obstante a pena abstracta correspondente ao crime ou crimes em causa ser superior a cinco anos as condições do caso impõem que ao crime ou crimes não seja aplicada pena superior aquele limite.
Assim, quando o MºPº lançar mão do normativo citado, o que necessariamente implica um juízo de prognose idêntico ao juízo formulado para fixação da medida da pena, a competência do tribunal singular fixa-se de acordo com a lei entendendo-se esta não só como a norma (s) que sanciona (m) o tipo (o) a submeter a julgamento, mas também como o tecto fixado no nº4 do artº 16º
O problema está em saber quando é conhecido o concurso para efeitos do referido nº3 do artº 16º.
Entende o Ex.mo Juiz que o concurso foi conhecido [Note-se que se limitou a indicar que os crimes em causa estavam em concurso nos termos do artº 25º do CPP, sem especificar qual o caso de conexão dos referidos nos várias alíneas do nº1 do artº 24º do mesmo código se verifica. Embora nos pareça duvidoso que o caso dos autos se integre em alguma das referidas alíneas, dispensamo-nos de dissertar sobre o assunto por tal não estar dentro do objecto do recurso que como é sabido é delimitado pela motivação e, mais especificamente, pelas conclusões dela extraídas.] quando no processo apenso deu nota que o crime ali em causa estava em relação de concurso com aqueles objecto dos presentes autos ao qual devia ser apensado.
Não obstante o Ministério Público ser o mesmo e por isso em termos pessoais poder ter conhecimento da natureza dos crimes acusados nos presentes autos - e por isso poder estar ao seu alcance a formulação do requerimento a que se reporta o citado artº 16º nº3 - parece-nos claro, que o procedimento tem de ser igual para todos os processos independentemente das pessoas que neles intervêm, e que em termos funcionais a avaliação do concurso para efeitos do artº 16º nº3 do CPP, só podia ter lugar depois dessa apensação nos presentes autos - e que deveria ter sido feita após o trânsito em julgado do despacho que ordenou a apensação e não imediatamente, pois que nos parece por demais evidente que o despacho que ordena a apensação é passível de recurso - pois só estes autos e não aqueles aqui apensados, permitem essa avaliação conjunta de todos os crimes, e esse conhecimento do concurso.
Com o trânsito em julgado do despacho que ordenou a apensação nos termos do artº 25º do CPP, ficou postergado o direito dos sujeitos processuais manifestarem discordância acerca desta opção, e também de arguirem a irregularidade por falta de fundamentação da referida apensação, mas só depois da apensação efectiva, na presença dos crimes em causa nos dois processos o MºPº se podia pronunciar acerca da oportunidade de usar da faculdade do artº 16º nº3.
E assim sendo devia o Ex.mo Juiz antes de se pronunciar acerca da competência ter dado oportunidade ao MºPº para usar a faculdade conferida no artº 16º nº3 o CPP, sob pena de não o fazendo incorrer na omissão de um acto necessário ao cumprimento efectivo do artº 16º nº3.
Irregularidade que não se pode considerar sanada pois o interessado, o MºPº arguiu-a nos termos do artº 123º nº1 do CPP, nos três dias seguintes ao conhecimento da omissão do actos, ou seja quando tomou conhecimento de que o Ex.mo Juiz havia tomado posição acerca da competência sem lhe ter dado oportunidade de usar o artº 16º nº3.
Esta irregularidade implica a invalidade dos termos subsequentes do processo por ela afectados e que inquina o despacho que conheceu da competência e todos os termos que se lhe seguiram.
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Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em anular o despacho que conheceu da competência do tribunal que deve ser substituído por outro que ordene a notificação do MºPº para se pronunciar sobre a aplicação do artº 16º nº3 do CPP
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Sem custas.
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Coimbra,