Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
302/06.2GAFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE
CONCURSO APARENTE
Data do Acordão: 10/21/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DE ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º, 2 CP
Sumário: 1. Entre o crime de maus tratos e os crimes que o podem integrar estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena cominada pelo art. 152º, n.º 2, do Código Penal, deixando de ter qualquer relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.
2. O crime de maus tratos a cônjuge vem descrito na lei como consistindo numa pluralidade indeterminada de actos parciais, ou seja, numa realização repetida do tipo.
3. Qualifica-se como crime de maus tratos as condutas agressivas, mesmo que praticada uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser consideradas como tal.
4. Não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do art. 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, isto é, que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança, desnecessária, da parte do agente.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

1. No processo comum singular n.º 302/06.2GAFZZ.C1 do Tribunal Judicial da Comarca de Ferreira do Zêzere, por sentença datada de 2 de Março de 2009, foi
PARTE CRIMINAL
a) Condenado o arguido C... pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 e 2 do C.Penal (em vigor à data da prática dos factos), na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
PARTE CIVIL
a) Julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante N... e, consequentemente, foi condenado o demandado C... a pagar-lhe a quantia de € 4000, acrescida de juros de mora à taxa diária de 4%, desde a data da notificação do pedido de indemnização civil ao arguido, até integral pagamento.

2. Inconformado, o arguido C... recorreu da sentença.
2.1. O arguido finalizou a sua longa motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A. O presente recurso visa impugnar a sentença em recurso.
Em termos de matéria de facto, porquanto...
• Há insuficiência para a decisão da matéria de facto,
• Há um erro notório na apreciação da prova, sendo certo que
• A prova produzida em audiência impunha decisão diversa;
Em termos de matéria de Direito porquanto, necessariamente, há uma errada aplicação do mesmo.
B. O Tribunal “a quo” decidiu mal ao considerar provado que:
a) Desde o sétimo ano de casamento que a relação entre o arguido e a assistente se começou a deteriorar, sendo que, por inúmeras vezes, em datas não concretamente apuradas mas na constância do matrimónio, o arguido costumava afirmar que tinha outras mulheres e dirigia-se à assistente chamando-a de ordinária, ranhosa, velhaca e dizendo “vai para a puta que te pariu”.
b) O arguido agrediu pela primeira vez a assistente, em data não concretamente apurada no ano de 1984.
c) Nessa ocasião, no interior da residência de então dos mesmos, na localidade de B…, Ferreira do Zêzere, o arguido, na sequência de discussão, desferiu à assistente diversos murros e bofetadas na cara.
d) Desde então e até 25 de Novembro de 2006, as agressões por parte do arguido à assistente foram frequentes e geralmente consistiam em empurrões e puxões nos braços, pontapés, o aconteceu por inúmeras vezes.
e) Era também frequente o arguido ameaçar a assistente dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Qualquer dia desfaço-te em bocados, parto-te a cara, meto-te no hospital, dou cabo de ti, estoiro-te os cornos”.
f) Em data, não concretamente apurada, quando se encontravam a residir na Suíça, no interior do restaurante que exploravam, o arguido desferiu um pontapé na perna direita da assistente, e desferiu-lhe diversos murros e bofetadas, apertando-lhe o pescoço, levando a que a mesma, como consequência das agressões sofridas, ficasse dois dias internada num hospital.
g) Dizendo “desde quando tens autorização para pegar no carro sem a minha ordem”, após o que, agarrou a assistente e desferiu-lhe diversas bofetadas na cara e na cabeça, tendo ainda lhe dirigido a seguinte expressão “andas para aqui a pôr-me os cornos”, chamando-lhe cabra e ranhosa.
h) De seguida, e como a assistente fugiu para a rua, o arguido fechou as portas da residência não deixando a assistente entrar em casa, pelo que a mesma viu-se obrigada a pernoitar no carro da filha que posteriormente aos factos relatados chegou ao local.
i) Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 25 de Novembro de 2006, resultou para a assistente N... uma equimose na região malar esquerda e laceração da mucosa bocal da região geneana esquerda.
j) O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, reiteradamente violentar a saúde corporal, de humilhar e desconsiderar a assistente N..., com quem sabia estar casado e estar obrigado a respeitar e a cooperar, lesando dessa forma a sua saúde, dignidade e integridade física.
m) Em consequência dos factos supra descritos a assistente sofreu dores, teve medo, ficou acabrunhada, sentiu-se humilhada, ficou debilitada, num estado depressivo e de nervosismo, tendo sido medicada com anti-depressivos e ansiolíticos, encontrando-se ainda a tomar, esporadicamente, anti-depressivos, tendo tido necessidade de recorrer a consultas médicas.
C. E o tribunal “a quo” decidiu mal ao assim considerar provado, porquanto apreciou erradamente as provas que impunham decisão diversa;
D. O Tribunal “a quo” para considerar provada a matéria supra referenciada considerou e baseou-se nos depoimentos
-da assistente,
-do perito,
-da testemunha Cidália,
-da testemunha Irene, e
-da testemunha Leonel.
E. Ora, do depoimento destas testemunhas não se retira de modo algum, a factualidade que se considera provada.
Senão vejamos...
QUANTO ÀS OFENSAS CORPORAIS E INJÚRIAS OCORRIDAS EM 25/11/2006:
F. Do depoimento do Sr. Perito Médico, que transcrevemos no texto, retira-se que:
- Os hematomas que a assistente apresentava tanto podiam ser resultado de uma mão, como de uma porta do carro, na qual, alegadamente e na versão do arguido, a assistente embateu,
-Sendo certo que o nexo de causalidade entre estas duas possibilidades e os hematomas é, exactamente, o mesmo.
G. Portanto, deste depoimento não se pode concluir, de forma alguma, que as equimoses que a assistente apresentava resultaram de uma agressão perpetrada pelo arguido;
H. O depoimento da filha B... é indirecto, não podendo, como tal, fundamentar o que quer que seja, sendo certo que em momento algum esta testemunha referiu que a assistente lhe tivesse relatado qualquer injúria;
I. O depoimento das testemunhas L...e I...jamais poderiam fundamentar o que quer que fosse porquanto são, notoriamente, contraditórios;
J. Conforme resulta das transcrições feitas no texto a testemunha L...afirma:
-que viu o arguido dar à assistente socos na barriga, costas e cara,
-que ouviu o arguido chamar-lhe cabra e puta,
-e que a assistente tinha hematomas no olho.
Ora, a assistente:
-não se queixou de socos na barriga e costas,
-não se queixou da injúria “puta”,
-E apresentava hematomas na zona maxilar esquerda.
K. Por outro lado comparando o depoimento da testemunha L...com o da testemunha I...resulta que...
-A TESTEMUNHA L...AFIRMA:
-que estava com a testemunha I...no exterior,
-que quando o arguido começou a discutir com a assistente entram para dentro,
-que da sala viu a ofensa corporal e ouviu as injúrias.
Por sua vez...
A TESTEMUNHA I...AFIRMA:
-que estava com o L...no interior da casa,
-que estavam trancados,
-que a testemunha L...estava ao pé de si,
-que a testemunha L...nunca lhe contou ter visto qualquer ofensa corporal
ou ter ouvido qualquer injúria.
Acrescentando, ainda, esta testemunha:
-que viu sangue na cara da assistente, na zona da boca, que o seu marido não refere.
QUANTO ÀS OFENSAS CORPORAIS E INJÚRIAS OCORRIDAS AO LONGO DO CASAMENTO:
L. Também quanto aos factos que considerou provados, nesta parte, o Tribunal “a quo” apreciou erradamente as provas, sendo certo que se baseou no depoimento da:
-testemunha B..., e
-da assistente.
M. Ora, o depoimento da testemunha B..., conforme resulta da transcrição feita no texto, foi emotiva, tomando notoriamente o partido da mãe e, tanto assim é, que não deu relevo à tentativa e suicídio do pai.
N. Do seu depoimento resultou:
-que, alegadamente, quando tinha 7 anos viu uma ofensa corporal perpetrada pelo pai à mãe,
-que nunca mais assistiu a qualquer agressão, nem a sua mãe lhe referiu,
tirando a ocorrência de 25/11/2006,
-que viveu assistiu a uma agressão perpetrada pelo pai à mãe, quando tinha 7 anos,
-que viveu com os seus pais quando era muito pequena, tendo depois crescido e
sido educada por uma tia avós,
-só convivia com os pais nas férias;
-já adulta, recentemente, viveu um ano com os pais,
-depois foi viver sozinha visitando os pais uma vez por mês, ou de cinco em cinco semanas,
-que as discussões entre os pais ocorriam de vez em quando, sem um frequência certa, ou seja, uma ou duas vezes por mês, havendo o 2 ou 3 meses em que nada se passava, sendo certo que, quando os visitava não havia sempre discussões.
O. Ora, do seu depoimento, quando muito, o que se pode retirar é que:
-terá ocorrido, há muitos anos uma ofensa corporal,
-que a relação entre arguido e queixosa era pouco harmoniosa,
-com discussões frequentes, e
-com troca de palavras pouco agradáveis.
P. Ademais não podemos deixar de salientar o facto de, e referindo a testemunha B... que os insultos eram proferidos à frente de amigos, familiares e hóspedes, não ter aparecido uma única testemunha a confirmar esta situação.
Q. Sendo certo que a mesma testemunha B... nunca referiu ter visto a sua mãe com nódoas negras, para lá de quando tinha a idade de 7 anos.
R. Aliás, não apareceu qualquer prova testemunhal ou documental que, por qualquer forma, ainda que duvidosa, permitisse concluir que a assistente, para lá da ocorrência alegadamente ocorrida há muitos anos, apresentou outras marcas corporais de maus tratos.
S. Acresce que do depoimento da testemunha O...retirou-se, claramente, que o comportamento e relacionamento do casal era normal, sendo a assistente uma pessoa bem disposta, que nunca foi vista com nódoas negras.
T. Do depoimento da testemunha A... retira-se que o comportamento do casal era normal, que a assistente nunca foi vista com nódoas negras e que, pelo menos uma vez, ouviu a assistente chamar ao marido porco sujo.
U. Quanto às declarações da assistente as mesmas, logicamente, são parciais, desacompanhadas de provas consistentes, pelo que não poderiam fundamentar a matéria de facto considerada provada.
V. Portanto, houve um erro notório na apreciação da prova, que impunha uma decisão diversa.
W. Ademais, não deixa de ser estranho e contra o senso comum e contra o padrão do homem médio que a assistente nunca tenha entrado no Hospital a fim de ser tratada, que nunca ninguém a tenha visto marcada, que tenha tolerado mais de 20 anos uma vida, nos termos que constam da acusação pública, sem que tenha tentado divorciar-se ou, pelo menos, ter mostrado vontade de o fazer.
X. Ainda que não se considerasse a prova nos termos em que alegámos, isto é, ainda que não se considere que a prova produzida impunha decisão diversa, não podemos deixar de considerar que a mesma cria fortes e insolúveis dúvidas, pelo que deveria o Tribunal “a quo” ter-se socorrido do princípio do “in dubio pro reo”.
Y. Ora, do anteriormente alegado resulta que, jamais, o arguido poderia ter sido condenado pela prática do crime de maus tratos p.p. pelo artigo 152° n°s 1 e 2 do C.Penal.
Z. A ratio deste artigo inclui, além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, que de forma reiterada provocam humilhações ou molestações à eventual ofendida, sendo certo que os actos praticados pelo agente, que afectam o seu cônjuge, deverão revestir a gravidade suficiente para se considerar que põe em causa a dignidade deste último.
AA. Portanto, só se o comportamento por parte de um dos cônjuges se tomar repetido e assumir um cariz patológico, ferindo de forma intencional e voluntária a dignidade pessoal do outro cônjuge, é que se poderá integrar o ilícito “sub judice”.
BB. O legislador não teve a intenção, nem tem legitimidade, para se intrometer no relacionamento do casal e para pôr cobro às discussões que ocorreram entre eles, sendo certo que, como diz o adágio popular:
“Entre marido e mulher não metas a colher”.
CC. Ora, é do senso comum que existem discussões entre os membros do casal que podem ser esporádicas, o que permite obter uma reconciliação posterior, ou podem ser mais frequentes e violentas e que, nesse caso, poderão levar à ruptura do casal.
DD. No decorrer das discussões podem ser proferidas expressões ofensivas, menos correctas e humilhantes para o outro membro do casal, sendo certo que a atitude do membro do casal que profere as expressões, pese embora não seja correcta, justifica-se pelo estado emocional em que se encontra, pela grande proximidade e intimidade e pela relação afectiva entre os dois membros do casal.
EE. Portanto, na situação “sub judice” não resulta dos autos e da prova feita que a actuação do arguido tenha sido de tal forma violenta que possa integrar o crime de maus tratos.
FF. Do mesmo modo não resultou provado que o seu comportamento tenha posto em causa a dignidade da sua mulher, tanto que não impediram a assistente de continuar a viver com ele, durante mais de 20 anos.
GG. E muito menos resultou provado que ao dirigir-lhe qualquer palavra menos agradável sabia que a sujeitava a uma humilhação e vergonha atentatórias da sua dignidade pessoal, enquanto ser humano e enquanto sua mulher.
HH. Deste modo, não se encontra preenchido o tipo subjectivo quanto ao crime de maus tratos, impondo-se a sua absolvição.
II. Mesmo configurando a possibilidade de o arguido ter agredido a assistente em
1984 e ter-lhe dirigido expressões menos correctas ao longo do casamento,
também, neste caso, se impõe a absolvição do arguido.
É que...
JJ. Neste caso estaríamos perante a eventual prática de um crime de ofensas corporais simples e de crimes de injúrias.
KK. Como é consabido, estes crimes têm uma relação de especialidade com o crime de maus tratos, uma vez que se se verificar a prática de um acto isolado, com falta de reiteração estamos perante aqueles crimes.
LL. Ora, ambos os crimes dependem de queixa, que se extingue no prazo de 6 meses.
MM. Não foi, nunca, apresentada qualquer queixa quanto a estes actos, ao longo de 20 anos de alegados maus tratos, portanto, não pode o Tribunal pronunciar-se sobre aquelas situações específica e isoladamente.
NN. Ainda que se considerasse que o arguido tinha praticado os actos que lhe são assacados em 25/11/06, - situação que se coloca por cautela de patrocínio - mesmo assim, tais actos teriam de ser havidos como isolados, e quando muito, levariam à condenação do arguido na prática dos crimes de ofensas corporais e injúrias, mas nunca na condenação do crime de maus tratos.
OO. De todo o modo, como já alegámos, mesmo nesta situação, por falta de prova ou pelo recurso ao princípio do “in dubio pro reo” o arguido teria de ser absolvido.
PP. Porque assim é jamais o arguido podia ser condenado no pagamento de qualquer indemnização à assistente.
QQ. Uma vez que, como referimos no texto, e nos dispensamos de repetir, não estão reunidos os requisitos da responsabilidade por facto ilícito.
RR. Portanto, a douta sentença em recurso violou o disposto nos artigos 152°, n.ºs 1 e 2 do C.Penal, 115° n° 1, 368° do C.P.Penal e artigo 32° da C.R.P.
Nos termos expostos e nos mais de Direito deve o arguido ser absolvido, com todas as consequências legais.

3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando o seguinte:
«Conclui-se portanto que:
1- Compulsado o texto da decisão recorrida, verifica-se que a mesma andou bem na apreciação que fez das provas produzidas em juízo, não se vislumbrando que se tenha baseado em juízos que enfermem de arbitrariedade ou contrariedade, não tendo pois incorrido em vício de erro notório na apreciação da prova, ínsito na al. c) do n.° 2 do art.° 410° CPP;
2- Levando também em conta o texto da decisão recorrida, verifica-se que a matéria de facto dada como provada é mais que suficiente para sustentar a decisão de condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, pelo que a douta sentença recorrida também não incorreu no vício ínsito na alínea a) do n.° 2 do art.° 410° do CPP;
3- Por outro lado, no que tange à impugnação que o recorrente faz do julgamento, feito pelo tribunal a quo, da matéria de facto, basta atentar na motivação da decisão de facto constante da sentença em crise para compreender que tal julgamento encontra-se suficientemente sustentado por toda a prova produzida em juízo, inexistindo qualquer outro elemento que permita afirmar restar uma dúvida insanável quanto à culpa do recorrente, não tendo a sentença em crise violado os art.°s 115°, n.° 1 e 152°, n.°s 1 e 2 do Código Penal, 368° do Código de Processo Penal e 32° da Constituição da República.

Termos em que deve o recurso ser julgado totalmente improcedente».

4. A assistente N... respondeu ao recurso, pedindo a sua improcedência por entender que a sentença deve ser mantida na íntegra.

5. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 589 a 595, no sentido de que o recurso não merece provimento, sufragando, no essencial, a posição do MP de 1ª instância.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:
· se a prova foi mal apreciada,
· se há insuficiência da matéria de facto para a decisão,
· se há erro notório na apreciação da prova
· se há uma errada subsunção dos factos ao direito
· se se justifica a condenação do demandado na indemnização civil.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
«1. O arguido casou com a assistente N… em 28 de Dezembro de 1975.
2. Na constância do matrimónio nasceram B… e R....
3. Desde o sétimo ano de casamento que a relação entre o arguido e a assistente se começou a deteriorar, sendo que, por inúmeras vezes, em datas não concretamente apuradas mas na constância do matrimónio, o arguido costumava afirmar que tinha outras mulheres e dirigia-se à assistente chamando-a de ordinária, ranhosa, velhaca e dizendo “vai para a puta que te pariu”.
4. O arguido agrediu pela primeira vez a assistente, em data não concretamente apurada, no ano de 1984.
5. Nessa ocasião, no interior da residência de então dos mesmos, na localidade de B…, Ferreira do Zêzere, o arguido, na sequência de discussão, desferiu à assistente diversos murros e bofetadas na cara.
6. Desde então e até 25 de Novembro de 2006, as agressões por parte do arguido à assistente foram frequentes e geralmente consistiam em empurrões e puxões nos braços, pontapés, o aconteceu por inúmeras vezes.
7. Era também frequente o arguido ameaçar a assistente dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Qualquer dia desfaço-te em bocados, parto-te a cara, meto-te no hospital, dou cabo de ti, estoiro-te os cornos”.
8. O arguido e a assistente residiram cerca de 11 anos na Suíça tendo regressado a Portugal no ano de 2002, passando o casal a residir, até ao dia 25 de Novembro de 2006, na Q…, Ferreira do Zêzere.
9. Em data, não concretamente apurada, quando se encontravam a residir na Suíça, no interior do restaurante que exploravam, o arguido desferiu um pontapé na perna direita da assistente, e desferiu-lhe diversos murros e bofetadas, apertando-lhe o pescoço, levando a que a mesma, como consequência das agressões sofridas, ficasse dois dias internada num hospital.
10. No dia 25 de Novembro de 2006, pelas 18h30, na residência do arguido e da assistente na Q…, a assistente tinha transportado, a uma outra localidade dois casais que aí se encontravam hospedados, foi confrontada, ao chegar, pelo arguido que dirigiu-se à mesma dizendo “desde quando tens autorização para pegar no carro sem a minha ordem”, após o que, agarrou a assistente e desferiu-lhe diversas bofetadas na cara e na cabeça, tendo ainda lhe dirigido a seguinte expressão “andas para aqui a pôr-me os cornos”, chamando-lhe cabra e ranhosa.
11. De seguida, e como a assistente fugiu para a rua, o arguido fechou as portas da residência não deixando a assistente entrar em casa, pelo que a mesma viu-se obrigada a pernoitar no carro da filha que posteriormente aos factos relatados chegou ao local.
12. Desde tal data que o arguido e a assistente vivem separados.
13. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 25 de Novembro de 2006, resultou para a assistente N… uma equimose na região malar esquerda e laceração da mucosa bucal da região geneana esquerda o que lhe determinou 7 dias para sua cura.
14. O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, reiteradamente violentar a saúde corporal, de humilhar e desconsiderar a assistente N..., com quem sabia estar casado e estar obrigado a respeitar e a cooperar, lesando dessa forma a sua saúde, dignidade e integridade física.
15. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
16. O arguido não tem antecedentes criminais.
17. Em consequência dos factos supra descritos a assistente sofreu dores, teve medo, ficou acabrunhada, sentiu-se humilhada, ficou debilitada, num estado depressivo e de nervosismo, tendo sido medicada com anti-depressivos e ansiolíticos, encontrando-se ainda a tomar, esporadicamente, anti-depressivos, tendo tido necessidade de recorrer a consultas médicas.
18. Actualmente a assistente ainda sente medo do arguido.
Mais se provou que:
19. O arguido é oriundo de uma família humilde, concluiu o ensino primário com 12 anos, idade com que iniciou a sua vida laboral, primeiro como operário numa serração e depois numa cerâmica.
20. Com 15 anos de idade o arguido vivenciou a morte de um irmão mais velho, de 18 anos, que se suicidou.
21. A mãe do arguido suicidou-se quando tinha 49 anos de idade.
22. No ano de 2006 o arguido ingeriu um herbicida, tendo sido objecto de uma lavagem ao estômago e posteriormente encaminhado para o Hospital Júlio de Matos em Lisboa.
23. O arguido foi emigrante durante vários anos, vivendo actualmente sozinho na Q… .
24. O arguido tem uma rotina estruturada de trabalho, quer no que diz respeito à manutenção do espaço do complexo turístico, quer no que diz respeito a actividades agrícolas.
24. O arguido é diabético.
25. O arguido é pessoa nervosa.
26. O arguido é bem considerado no meio social onde se insere.
27. O arguido aufere mensalmente rendimentos provenientes de arrendamentos de prédios urbanos, nos montantes de € 30,00, € 300,00 e € 255,00.
28. Actualmente tem auferido mensalmente entre € 100,00/120,00, rendimento este proveniente da actividade que desenvolve de turismo rural na Quinta que adquiriu há cerca de 25 anos.
29. O arguido tem diversas dívidas à Direcção Geral de Impostos e ao Banco.
30. Possui como habilitações literárias a 4ª classe.

2.2. Na sentença recorrida, enumeraram-se os seguintes FACTOS NÃO PROVADOS:
1. Que o arguido disse à assistente “vaca de merda, andas a fazer pouco de mim e parto-te a cara”.
2. Que o arguido ameaçou a assistente dizendo que se mataria e ele e que faria mal à família da assistente.
3. Que o arguido procedia a uma constante espionagem dos passos da assistente, quer por si, quer recorrendo a outras pessoas, como seus informadores.
4. Que o arguido fazia interrogatórios à assistente, de modo a que ela se sentisse controlada e receosa.
5. Que por diversas vezes o arguido saia da casa onde residia com a sua esposa, entrando, logo de seguida, sem que se fizesse notar, para que pudesse controlar todos os passos da assistente.
6. Que a assistente encontra-se a tomar 1 vez por dia o medicamento Victan 2 mg.
7. Que a assistente toma o medicamento Alacre 250 mg, 2 vezes por dia, bem como, Cymbalta 60 mg, uma vez por dia.
8. Que com medicamentos a assistente despende a quantia mensal de € 50,00.
9. Que toma os medicamentos há, pelo menos, um ano.
10. Que a assistente gastou cerca de € 600,00 em medicamentos.
11. Que a assistente gastou € 70,00 em consultas com médicos.
12. Que a assistente, por indicação médica, realizou exames de diagnóstico cujo custo foi de montante não inferior a € 50,00.

2.3. Motivou-se a matéria dada como provada e não provada da seguinte forma:
2.3.1. Quanto aos factos provados:
«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise e valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

a) Nas declarações da assistente N..., referiu a data de casamento com o arguido, e desde quando começaram as discussões, agressões físicas e insultos por parte do arguido, mencionou que do casamento existem dois filhos, identificando-os, descreveu em que consistiram as agressões físicas de que era alvo por parte do arguido (murros, bofetadas, pontapés), mencionou que a primeira agressão ocorreu no ano de 1984, na casa de morada de família, tendo indicado a sua localização, descreveu em que consistiu essa agressão.
Referiu que desde aquela data até 25/11/2006, data em que se separou de facto do arguido, foi alvo de várias agressões por parte deste, descrevendo-as, e de insultos, descrevendo que palavras e expressões eram proferidas pelo arguido e dirigidas a si.
Referiu por quanto tempo esteve na Suíça e a data de regresso a Portugal, e o local para onde o casal foi viver, e que quando estiveram na Suíça foi alvo de agressão por parte do arguido, descrevendo a agressão de que foi vítima, ocorrida num restaurante que exploravam e que em consequência teve que se deslocar ao Hospital, onde permaneceu internada, referindo o período.
Mencionou que no dia 25 de Novembro de 2006 foi vítima de agressão por parte o arguido, descrevendo como ocorreu, e em que contexto, e mencionou os nomes e expressões que lhe foram dirigidos nessa ocasião pelo arguido, e o que sucedeu posteriormente, nomeadamente que fugiu para fora da Quinta, tendo contactado a GNR que compareceu no local, mais referiu que nesse dia não pernoitou em casa, pois o arguido trancou as portas, impedindo que entrasse, tendo pernoitado no veículo da filha que, após ter sido por si contactada, compareceu no local, e que no dia seguinte foi ao posto da GNR e na segunda-feira seguinte foi a Tomar para ser submetida a exame médico-legal.
Descreveu ainda como se sentiu em consequência dos comportamentos do arguido.

b) Nas declarações do perito médico D…, que confirmou o exame médico-legal a que foi sujeita a assistente em 27/11/2006, referiu quais as lesões que aquela apresentava, e que essas lesões foram causadas por objecto contundente ou actuando como tal, referindo que uma mão é considerada um objecto contundente, e pelo aspecto azulado das lesões eram recentes, e que à data a assistente referiu que tinha sido vítima de uma agressão doméstica, mais referiu ser possível aquelas lesões serem consequência dessa agressão.

c) No depoimento da testemunha E..., filha do arguido e da assistente, referiu que o pai viveu no estrangeiro sozinho, e posteriormente a mãe foi ter com ele, tendo ambos regressado no ano de 2002, referiu que viveu com os pais durante cerca de ano e meio após o seu regresso a Portugal.
Que havia muitas discussões entre os pais, referiu os nomes e expressões que o arguido dirigia à assistente, e que estes comportamentos do arguido ocorriam com muita frequência.
Mencionou que numa ocasião assistiu a uma agressão perpetrada pelo arguido na assistente, quando tinha 7 anos, ocorrida no início do ano de 1984, referiu em que consistiu a agressão e onde se verificou.
Que quando saiu de casa passou a visitar os pais cerca de uma vez por mês, e que a maior parte das vezes que se deslocava à casa deles presenciava aqueles comportamentos por parte do arguido, principalmente quando estava embriagado.
Que numa ocasião o pai telefonou-lhe da Suíça e disse-lhe que tinha agredido a mãe, e nessa altura a mãe ficou internada.
A testemunha disse ainda que quando o pai esteve sozinho na Suíça desloca-se a Portugal aqui permanecendo cerca de 4/5 meses, e era nessas alturas que assumia os comportamentos por si descritos.
Mais referiu que no dia 25/11/2006 encontrava-se a trabalhar em Coimbra e a mãe telefonou-lhe a dizer que tinha sido agredida pelo arguido e que estava na rua, que não podia entrar em casa, que nesse dia após ter saído do trabalho por volta da meia-noite foi ter com a mãe, descreveu o estado em que a encontrou, que tentou entrar na Quinta mas os portões estavam fechados, e que nessa noite ficaram as duas dentro do seu veículo, mencionou ainda que a assistente tinha a cara inchada, e no dia seguinte foram à GNR.
Referiu que em consequência dos comportamentos do arguido a mãe ficava nervosa, chorava e sofria, que após a assistente ter saído de casa levou-a ao médico, e que tomou medicação para a depressão e ansiolíticos, e actualmente ainda toma esporadicamente anti-depressivos, e tem medo do arguido.

d) No depoimento da testemunha I..., referiu que esteve hospedada na Quinta do arguido, juntamente com o seu marido, F..., e que encontrava-se nesse local no dia 25/11/2006, estava na sala e ouviu a assistente gritar a pedir socorro, e quando ela e o marido se dirigiam à rua para auxiliar a assistente, o arguido entrou e impediu-os, trancando a porta.
Que mais tarde o arguido destrancou a porta e a testemunha e o marido saíram e encontraram a assistente a cerca de 50 m da Quinta, e que a assistente tinha a cara inchada e o lábio cortado e a sangrar, tendo ficado com a assistente até à meia-noite.

e) No depoimento da testemunha L…, referiu que foi hóspede do arguido e da assistente, e que no dia 25/11/2006, encontrava-se na Quinta pertença daqueles, juntamente com a sua mulher.
Que ouviu a discussão entre ambos, tendo descrito qual o motivo da discussão, e ouviu a assistente gritar, e que após o arguido trancou a porta e disse-lhe, bem como à sua mulher, que não tinham autorização para abrir a porta à assistente.
Quanto ao mais que esta testemunha referiu, nomeadamente, que quando o arguido e a assistente começaram a discutir retirou-se para dentro da casa com a sua mulher e que foram à janela da sala e viram a agressão, tal não mereceu a credibilidade do tribunal, não tendo a testemunha convencido o tribunal de que assistiu à agressão, pois a descrição que a testemunha faz da agressão nem sequer coincide com a descrição que a assistente fez, por outro lado, a testemunha I... referiu que não assistiu à agressão e que o seu marido também não lhe disse que tinha assistido à agressão.

f) Nas declarações do arguido acerca das suas condições pessoais, referiu ainda que foi emigrante na Suíça, mencionando o período, que actividade explorou nesse país, qual o ano em que regressou da Suíça, juntamente com a assistente, qual a doença de que padece, e que no dia 25/11/2006 teve um desentendimento com a assistente, explicou o motivo, quanto a esta parte mereceu credibilidade do tribunal, até porque as suas declarações foram coincidentes com as declarações da assistente e de algumas testemunhas.
Quanto ao mais, as declarações do arguido não convenceram o tribunal, vejamos, o arguido negou os factos, nomeadamente que tenha insultado a assistente, dirigindo-lhe as palavras e expressões constantes da acusação, ou que tenha agredido a assistente.
Começou por referir que no dia 25/11/2006, não agrediu a assistente, que esta quando saiu do carro, arranhou-se a si própria e chamou a GNR, e que referiu que aquela lhe disse que “lhe fazia a folha”, posteriormente aventou a possibilidade de a assistente se ter magoado na porta do carro, na tentativa de explicar as lesões que aquela apresentava, mas somente após ter sido para o efeito interrogado.
Tal versão não mereceu credibilidade, desde logo, o arguido primeiro apresentou uma versão, alegando que a assistente causou lesões a si própria, e no final das suas declarações já referiu que as lesões podem ter sido provocadas pela porta do carro.
Ora, as lesões constantes do relatório médico-legal, e que a assistente tinha, não são compatíveis com alegados arranhões, sendo esta versão dos factos de todo inverosímil, por outro lado, a outra versão apresentada pelo arguido quanto à porta do carro, também não merece qualquer credibilidade, tal versão não foi corroborada por ninguém, e só foi aventada pelo arguido no fim das suas declarações, e após questionado para o efeito, como já referido.
Por seu lado, a versão apresentada pela assistente mereceu a credibilidade do tribunal, a assistente prestou declarações de forma credível, sincera e coerente, bastante emocionada com o relato dos factos, versão que foi corroborada, pela testemunha B…, e em parte, pelas testemunhas I...e L....
Acresce que, as lesões de que padecia são compatíveis com a descrição da agressão de que foi vítima no dia 26/11/2006.

g) No depoimento da testemunha P..., elemento da GNR, que referiu que no dia 25/11/2006, estava às ocorrências, e a assistente telefonou para o Posto a dizer que tinha sido agredida pelo marido, nessa sequência deslocou-se ao local, onde esteve com o arguido e a assistente, tendo mencionado que o arguido disse que tinha empurrado a assistente e esta confirmou, mais referiu que a assistente estava transtornada e nervosa.
Referiu que conhece o arguido e que por vezes frequentava a sua casa, e que o arguido é uma pessoa trabalhadora.

h) No depoimento da testemunha A..., irmão do arguido, referiu que o irmão e a assistente foram emigrantes, e que por vezes entre eles geravam-se discussões, referiu que o arguido é uma pessoa nervosa, que se altera e entra em discussão, ficando descontrolado, que numa ocasião tentou suicidar-se, e que o arguido tem muitos amigos, sendo acarinhado por todos.
Quanto ao mais, e no que diz respeito aos factos em causa nos autos, o depoimento da testemunha pouco esclareceu o tribunal, a testemunha não presenciou nenhum dos factos em discussão nos autos, tendo somente mencionado que o irmão lhe contava que por vezes havia discussões entre eles, mas que o arguido voltava as costas e não fazia nada, que nunca viu a cunhada marcada, nem amedrontada.
Na verdade este depoimento em nada infirma as declarações da assistente, nem o depoimento da testemunha B..., repare-se que a testemunha referiu que é motorista internacional e que passa muito tempo fora do país, que há cerca de 30 anos que é motorista internacional, saindo diariamente com o veículo, tendo passado muito tempo fora nos últimos 20 anos, e que só via o arguido e a assistente aos fins-de-semana em períodos festivos, como aniversários ou Natal, daqui se conclui que a testemunha não privava com regularidade com o casal, não podendo pois elucidar o tribunal acerca do relacionamento entre o casal.

i) No depoimento da testemunha M… que esclareceu o tribunal acerca da personalidade e comportamento do arguido, quanto ao mais referiu que apenas conviveu com o casal cerca de 2 vezes, a testemunha não presenciou nenhum dos factos em causa nos autos, e o pouco convívio que revelou ter com o casal não permitiu também elucidar o tribunal acerca do relacionamento entre o casal.

j) No depoimento da testemunha O..., conhece o arguido e a assistente por motivos profissionais, tendo elaborado o projecto de turismo rural a pedido daqueles, elaborando ainda a sua contabilidade.
A testemunha não revelou ter qualquer conhecimento sobre os factos em causa nos autos, apenas referiu que convivia ½ vezes por ano com o casal em almoços de confraternização no âmbito do turismo rural, elucidou ainda o tribunal acerca da personalidade do arguido.

l) Na certidão de casamento de fls. 93.

m) Na perícia de avaliação de dano corporal de fls. 16, onde consta, além do mais, as lesões da assistente e os dias de doença, lesões essas que segundo as regras da experiência comum são adequadas a provocar dores.

n) Nos relatórios sociais de fls. 307 e seguintes e 339 e seguintes.

n) No que diz respeito aos antecedentes criminais o Tribunal levou em consideração o Certificado de Registo Criminal de fls. 285.
*
As declarações prestadas pela assistente N...mereceram a credibilidade do Tribunal, como já supra referido, prestou declarações de forma isenta, objectiva, sem hesitações, de forma coerente e sem contradições, e com conhecimento dos factos, por neles ter tido intervenção directa, pois foi a vítima das condutas do arguido, o tribunal não teve razões para dela duvidar, até porque as suas declarações foram corroboradas pelo depoimento das testemunhas B…, I...e L..., sendo que, o depoimento das restantes testemunhas não infirmou as declarações da assistente.
Por sua vez, as testemunhas B…, I..., A..., M..., O... também depuseram de forma isenta e espontânea, sem contradições, com coerência, demonstraram ter conhecimento dos factos sobre os quais depuseram, merecendo por isso credibilidade, e da qual o Tribunal não teve razões para duvidar.
Quanto à testemunha L... como já supra referido, o seu depoimento apenas mereceu credibilidade ao tribunal em parte, nomeadamente quando corroborado pela testemunha Maria Irene.
Quanto ao perito médico D..., o tribunal não duvidou das suas declarações, tendo relatado os factos em que teve intervenção no âmbito da sua profissão, merecendo toda a credibilidade.
Fazendo a análise crítica da prova produzida, e de acordo com o disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, resultou a convicção do tribunal expressa na matéria de facto acima exposta».

2.3.2. Quanto aos factos não provados:
«A ausência de prova em relação aos mesmos produzida».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1. Vem o arguido C... interpor recurso da sentença em que foi condenado pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 e 2 do C.Penal, na redacção em vigor à data da prática dos factos, na pena de um ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano.
Peticiona a sua absolvição.
Para tanto, entende, em síntese, que a prova produzida foi mal apreciada.

3.2. O arguido impugna a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado no n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:
- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada
- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp..
A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Assim, em matéria de facto, o legislador exige que na motivação o recorrente proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar.
Relativamente às duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente não só ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência, mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 5 do artº 412º do CPP).
Tomando as conclusões e o corpo da motivação que necessariamente sintetiza, verifica-se que o recorrente observou, embora um pouco deficientemente mas suficientemente integrada pelo corpo da sua longa motivação, as exigências legais.

3.3. Como se disse, o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações – e anteriormente com base na leitura de transcrições –, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
Quero isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cfr. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.4. No caso em apreço, o tribunal deu como provado na sentença o seguinte (assente que são estes os factos que o arguido entende que não deveriam ter sido dados como provados):
· FACTO 3. Desde o sétimo ano de casamento que a relação entre o arguido e a assistente se começou a deteriorar, sendo que, por inúmeras vezes, em datas não concretamente apuradas mas na constância do matrimónio, o arguido costumava afirmar que tinha outras mulheres e dirigia-se à assistente chamando-a de ordinária, ranhosa, velhaca e dizendo “vai para a puta que te pariu”.
· FACTO 4. O arguido agrediu pela primeira vez a assistente, em data não concretamente apurada, no ano de 1984.
· FACTO 5. Nessa ocasião, no interior da residência de então dos mesmos, na localidade de B…, Ferreira do Zêzere, o arguido, na sequência de discussão, desferiu à assistente diversos murros e bofetadas na cara.
· FACTO 6. Desde então e até 25 de Novembro de 2006, as agressões por parte do arguido à assistente foram frequentes e geralmente consistiam em empurrões e puxões nos braços, pontapés, o aconteceu por inúmeras vezes.
· FACTO 7. Era também frequente o arguido ameaçar a assistente dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Qualquer dia desfaço-te em bocados, parto-te a cara, meto-te no hospital, dou cabo de ti, estoiro-te os cornos”.
· FACTO 9. Em data, não concretamente apurada, quando se encontravam a residir na Suíça, no interior do restaurante que exploravam, o arguido desferiu um pontapé na perna direita da assistente, e desferiu-lhe diversos murros e bofetadas, apertando-lhe o pescoço, levando a que a mesma, como consequência das agressões sofridas, ficasse dois dias internada num hospital.
· FACTO 10 Obviamente que a 1ª parte do FACTO 10 não é posto em causa pelo arguido, assente que estamos a falar, aqui, da factualidade de 25/11/2006.. (…) dizendo “desde quando tens autorização para pegar no carro sem a minha ordem”, após o que, agarrou a assistente e desferiu-lhe diversas bofetadas na cara e na cabeça, tendo ainda lhe dirigido a seguinte expressão “andas para aqui a pôr-me os cornos”, chamando-lhe cabra e ranhosa.
· FACTO 11. De seguida, e como a assistente fugiu para a rua, o arguido fechou as portas da residência não deixando a assistente entrar em casa, pelo que a mesma viu-se obrigada a pernoitar no carro da filha que posteriormente aos factos relatados chegou ao local.
· FACTO 13. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 25 de Novembro de 2006, resultou para a assistente N... uma equimose na região malar esquerda e laceração da mucosa bucal da região geneana esquerda o que lhe determinou 7 dias para sua cura.
· FACTO 14. O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, reiteradamente violentar a saúde corporal, de humilhar e desconsiderar a assistente N..., com quem sabia estar casado e estar obrigado a respeitar e a cooperar, lesando dessa forma a sua saúde, dignidade e integridade física.
· FACTO 17. Em consequência dos factos supra descritos a assistente sofreu dores, teve medo, ficou acabrunhada, sentiu-se humilhada, ficou debilitada, num estado depressivo e de nervosismo, tendo sido medicada com anti-depressivos e ansiolíticos, encontrando-se ainda a tomar, esporadicamente, anti-depressivos, tendo tido necessidade de recorrer a consultas médicas.

3.6. O tribunal motivou desta forma tal factualidade dada como provada:
«a) Nas declarações da assistente N..., referiu (…) desde quando começaram as discussões, agressões físicas e insultos por parte do arguido, (…), descreveu em que consistiram as agressões físicas de que era alvo por parte do arguido (murros, bofetadas, pontapés), mencionou que a primeira agressão ocorreu no ano de 1984, na casa de morada de família, tendo indicado a sua localização, descreveu em que consistiu essa agressão.
Referiu que desde aquela data até 25/11/2006, data em que se separou de facto do arguido, foi alvo de várias agressões por parte deste, descrevendo-as, e de insultos, descrevendo que palavras e expressões eram proferidas pelo arguido e dirigidas a si.
Referiu (…) que quando estiveram na Suíça foi alvo de agressão por parte do arguido, descrevendo a agressão de que foi vítima, ocorrida num restaurante que exploravam e que em consequência teve que se deslocar ao Hospital, onde permaneceu internada, referindo o período.
Mencionou que no dia 25 de Novembro de 2006 foi vítima de agressão por parte o arguido, descrevendo como ocorreu, e em que contexto, e mencionou os nomes e expressões que lhe foram dirigidos nessa ocasião pelo arguido, e o que sucedeu posteriormente, nomeadamente que fugiu para fora da Quinta, tendo contactado a GNR que compareceu no local, mais referiu que nesse dia não pernoitou em casa, pois o arguido trancou as portas, impedindo que entrasse, tendo pernoitado no veículo da filha que, após ter sido por si contactada, compareceu no local, e que no dia seguinte foi ao posto da GNR e na segunda-feira seguinte foi a Tomar para ser submetida a exame médico-legal.
Descreveu ainda como se sentiu em consequência dos comportamentos do arguido.
b) Nas declarações do perito médico D…, que confirmou o exame médico-legal a que foi sujeita a assistente em 27/11/2006, referiu quais as lesões que aquela apresentava, e que essas lesões foram causadas por objecto contundente ou actuando como tal, referindo que uma mão é considerada um objecto contundente, e pelo aspecto azulado das lesões eram recentes, e que à data a assistente referiu que tinha sido vítima de uma agressão doméstica, mais referiu ser possível aquelas lesões serem consequência dessa agressão.
c) No depoimento da testemunha E…, filha do arguido e da assistente, referiu que (…) havia muitas discussões entre os pais, referiu os nomes e expressões que o arguido dirigia à assistente, e que estes comportamentos do arguido ocorriam com muita frequência.
Mencionou que numa ocasião assistiu a uma agressão perpetrada pelo arguido na assistente, quando tinha 7 anos, ocorrida no início do ano de 1984, referiu em que consistiu a agressão e onde se verificou.
Que quando saiu de casa passou a visitar os pais cerca de uma vez por mês, e que a maior parte das vezes que se deslocava à casa deles presenciava aqueles comportamentos por parte do arguido, principalmente quando estava embriagado.
Que numa ocasião o pai telefonou-lhe da Suíça e disse-lhe que tinha agredido a mãe, e nessa altura a mãe ficou internada.
A testemunha disse ainda que quando o pai esteve sozinho na Suíça desloca-se a Portugal aqui permanecendo cerca de 4/5 meses, e era nessas alturas que assumia os comportamentos por si descritos.
Mais referiu que no dia 25/11/2006 encontrava-se a trabalhar em Coimbra e a mãe telefonou-lhe a dizer que tinha sido agredida pelo arguido e que estava na rua, que não podia entrar em casa, que nesse dia após ter saído do trabalho por volta da meia-noite foi ter com a mãe, descreveu o estado em que a encontrou, que tentou entrar na Quinta mas os portões estavam fechados, e que nessa noite ficaram as duas dentro do seu veículo, mencionou ainda que a assistente tinha a cara inchada, e no dia seguinte foram à GNR.
Referiu que em consequência dos comportamentos do arguido a mãe ficava nervosa, chorava e sofria, que após a assistente ter saído de casa levou-a ao médico, e que tomou medicação para a depressão e ansiolíticos, e actualmente ainda toma esporadicamente anti-depressivos, e tem medo do arguido.
d) No depoimento da testemunha I..., referiu que esteve hospedada na Quinta do arguido, juntamente com o seu marido, F..., e que encontrava-se nesse local no dia 25/11/2006, estava na sala e ouviu a assistente gritar a pedir socorro, e quando ela e o marido se dirigiam à rua para auxiliar a assistente, o arguido entrou e impediu-os, trancando a porta.
Que mais tarde o arguido destrancou a porta e a testemunha e o marido saíram e encontraram a assistente a cerca de 50 m da Quinta, e que a assistente tinha a cara inchada e o lábio cortado e a sangrar, tendo ficado com a assistente até à meia-noite.
e) No depoimento da testemunha L…, referiu que foi hóspede do arguido e da assistente, e que no dia 25/11/2006, encontrava-se na Quinta pertença daqueles, juntamente com a sua mulher.
Que ouviu a discussão entre ambos, tendo descrito qual o motivo da discussão, e ouviu a assistente gritar, e que após o arguido trancou a porta e disse-lhe, bem como à sua mulher, que não tinham autorização para abrir a porta à assistente.
Quanto ao mais que esta testemunha referiu, nomeadamente, que quando o arguido e a assistente começaram a discutir retirou-se para dentro da casa com a sua mulher e que foram à janela da sala e viram a agressão, tal não mereceu a credibilidade do tribunal, não tendo a testemunha convencido o tribunal de que assistiu à agressão, pois a descrição que a testemunha faz da agressão nem sequer coincide com a descrição que a assistente fez, por outro lado, a testemunha I... referiu que não assistiu à agressão e que o seu marido também não lhe disse que tinha assistido à agressão.
f) Nas declarações do arguido que referiu (…) que no dia 25/11/2006 teve um desentendimento com a assistente, explicou o motivo, quanto a esta parte mereceu credibilidade do tribunal, até porque as suas declarações foram coincidentes com as declarações da assistente e de algumas testemunhas.
Quanto ao mais, as declarações do arguido não convenceram o tribunal (…) - o arguido negou os factos, nomeadamente que tenha insultado a assistente, dirigindo-lhe as palavras e expressões constantes da acusação, ou que tenha agredido a assistente.
Começou por referir que no dia 25/11/2006, não agrediu a assistente, que esta quando saiu do carro, arranhou-se a si própria e chamou a GNR, e que referiu que aquela lhe disse que “lhe fazia a folha”, posteriormente aventou a possibilidade de a assistente se ter magoado na porta do carro, na tentativa de explicar as lesões que aquela apresentava, mas somente após ter sido para o efeito interrogado.
Tal versão não mereceu credibilidade, desde logo, o arguido primeiro apresentou uma versão, alegando que a assistente causou lesões a si própria, e no final das suas declarações já referiu que as lesões podem ter sido provocadas pela porta do carro.
Ora, as lesões constantes do relatório médico-legal, e que a assistente tinha, não são compatíveis com alegados arranhões, sendo esta versão dos factos de todo inverosímil; por outro lado, a outra versão apresentada pelo arguido quanto à porta do carro, também não merece qualquer credibilidade, tal versão não foi corroborada por ninguém, e só foi aventada pelo arguido no fim das suas declarações, e após questionado para o efeito, como já referido.
Por seu lado, a versão apresentada pela assistente mereceu a credibilidade do tribunal, a assistente prestou declarações de forma credível, sincera e coerente, bastante emocionada com o relato dos factos, versão que foi corroborada, pela testemunha B..., e em parte, pelas testemunhas I...e L....
Acresce que, as lesões de que padecia são compatíveis com a descrição da agressão de que foi vítima no dia 26/11/2006.
g) No depoimento da testemunha P..., elemento da GNR, que referiu que no dia 25/11/2006, estava às ocorrências, e a assistente telefonou para o Posto a dizer que tinha sido agredida pelo marido, nessa sequência deslocou-se ao local, onde esteve com o arguido e a assistente, tendo mencionado que o arguido disse que tinha empurrado a assistente e esta confirmou, mais referiu que a assistente estava transtornada e nervosa.
Referiu que conhece o arguido e que por vezes frequentava a sua casa, e que o arguido é uma pessoa trabalhadora.
h) No depoimento da testemunha A..., irmão do arguido, referiu que o irmão e a assistente foram emigrantes, e que por vezes entre eles geravam-se discussões, referiu que o arguido é uma pessoa nervosa, que se altera e entra em discussão, ficando descontrolado, que numa ocasião tentou suicidar-se, e que o arguido tem muitos amigos, sendo acarinhado por todos.
Quanto ao mais, e no que diz respeito aos factos em causa nos autos, o depoimento da testemunha pouco esclareceu o tribunal, a testemunha não presenciou nenhum dos factos em discussão nos autos, tendo somente mencionado que o irmão lhe contava que por vezes havia discussões entre eles, mas que o arguido voltava as costas e não fazia nada, que nunca viu a cunhada marcada, nem amedrontada.
(…)
m) Na perícia de avaliação de dano corporal de fls. 16, onde consta, além do mais, as lesões da assistente e os dias de doença, lesões essas que segundo as regras da experiência comum, são adequadas a provocar dores.
n) Nos relatórios sociais de fls. 307 e seguintes e 339 e seguintes.
*
As declarações prestadas pela assistente N...mereceram a credibilidade do Tribunal, como já supra referido, prestou declarações de forma isenta, objectiva, sem hesitações, de forma coerente e sem contradições, e com conhecimento dos factos, por neles ter tido intervenção directa, pois foi a vítima das condutas do arguido, o tribunal não teve razões para dela duvidar, até porque as suas declarações foram corroboradas pelo depoimento das testemunhas B..., I...e L..., sendo que, o depoimento das restantes testemunhas não infirmou as declarações da assistente.
Por sua vez, as testemunhas B..., I..., A..., M..., O... também depuseram de forma isenta e espontânea, sem contradições, com coerência, demonstraram ter conhecimento dos factos sobre os quais depuseram, merecendo por isso credibilidade, e da qual o Tribunal não teve razões para duvidar.
Quanto à testemunha L... como já supra referido, o seu depoimento apenas mereceu credibilidade ao tribunal em parte, nomeadamente quando corroborado pela testemunha Maria Irene.
Quanto ao perito médico D..., o tribunal não duvidou das suas declarações, tendo relatado os factos em que teve intervenção no âmbito da sua profissão, merecendo toda a credibilidade.
Fazendo a análise crítica da prova produzida, e de acordo com o disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, resultou a convicção do tribunal expressa na matéria de facto acima exposta».

3.7. Ouvindo as transcrições magnéticas do ocorrido no julgamento, nas suas várias sessões, em estrito cumprimento do n.º 6 do artigo 412º do CPP, chegamos às seguintes constatações:
Não vislumbramos qualquer temeridade ou leviandade na apreciação da prova feita pelo tribunal «a quo».
O arguido nega ter agredido a mulher naquele dia 25/11, embora reconheça que lhe deu um empurrão, o que também é confirmado pelo Guarda T... (ouvido em 21/1/2009, a partir das 10:40:59), também não reconhecendo todo um passado de violência levada a cabo sobre a assistente.
O perito médico, D... (ouvido em 26/11/2008, pelas 11:54:58) disse apenas aquilo que podia cientificamente dizer – que a lesão apresentada pela assistente foi produzido por objecto contundente ou actuando como tal.
Admitiu que poderia ter sido obra de uma mão ou de uma porta de um carro (e poderíamos encontrar mil e um objectos capazes de acusar aquele hematoma na face da assistente).
Contudo, o arguido, no seu depoimento, nunca refere tal porta do carro a não ser no final do interrogatório, a instâncias de terceiros, começando por dizer, de forma perfeitamente simplista e irrealista, que a mulher se arranhou a si própria (o que não podia ser verdade pois não havia, dois dias depois, quaisquer vestígios desses arranhões – cfr. exame directo de fls 16-18).
Não era esperável que esse depoimento pericial fosse peremptório ao ponto de poder indicar com rigor qual a causa do hematoma – estamos habituados a que os peritos médicos tendem a generalizar e a abrir várias hipóteses, cabendo depois à restante prova depurar a investigação, restringindo as etiologias dos danos.
A versão da agressora porta do carro não convence ninguém, em nome das mais elementares regras da experiência comum.
Aliás, veja-se que o tribunal, na sua motivação, é claro em afirmar que o perito médico referiu ser possível que aquelas lesões fossem provocadas em consequência de uma agressão do arguido, tal como consta da acusação (cfr. fls 397).
Como tal, esse depoimento valeu combinado com outros meios de prova, mais ostensivos e realmente descritores da particular vivência conjugal entre este casal, em disputa emocional (e segundo percebemos, também patrimonial).
E, nesse particular, ao contrário do que naturalmente defende o arguido (que apenas pretende que a sua própria valoração – necessariamente suspeita – da prova produzida em juízo se imponha à convicção criada pelo tribunal), o testemunho da assistente N...é eloquente, convincente e elucidativo, sofrido q.b. e objectivo quanto ao passado conjugal deste casal (cfr. artigo 346º do CPP) – cfr. CD4 – 15/12/2008- 10:44:55 e 10:50:03.
Ouvido o seu testemunho em cerca de uma hora e 13 minutos, também nós criámos a convicção de que esta mulher viveu sempre uma vida de inferno junto deste homem, estando perfeitamente justificado, por tal motivo, ter-se dado como provados os factos n.ºs 3 a 9.
A prova é livremente apreciada pelo tribunal. E neste jaez, sabemos que as cenas da vida conjugal se passam, a sua maior parte, no interior dos casarios, na pretensa paz dos lares, em segredos inconfessados e inconfessáveis, sem testemunhas ou sem que fiquem grandes vestígios dessa vivência.
Considerar que o testemunho de uma mulher violentada ou agredida é pouco para se condenar alguém é condenar estes tipos de crimes à impunidade. Mas veja-se que, in casu, não ficou o tribunal recorrido pelo simples depoimento da queixosa.
No caso vertente, também a filha do casal, B... (ouvida em 6/1/2009 – 10:49:47 e 11:09:35), foi suficientemente esclarecedora relativamente à forma como o pai tratava a mãe, dando conta do clima de medo que imperava naquela casa.
O seu testemunho não foi indirecto relativamente ao passado conjugal dos pais (muito embora tivesse vivido muitos anos longe deles, o que viu bastou para ser caracterizada maltratante a forma como o pai se dirigia à sua mãe) – assistiu a agressões físicas e a impropérios saídos da boca do pai (aos 4:28, 4:46, 5:59 do seu depoimento) durante anos.
Já terá sido, de facto, indirecto o seu depoimento relativamente à agressão de 25/11/2006 – ouviu a versão da mãe, viu-a com um hematoma, a chorar e acolheu-a durante uma noite, assente que nessa ocasião, a assistente foi expulsa de casa por parte do arguido.
Esse depoimento indirecto é validado pelo testemunho da fonte em julgamento – a mãe da B...que tudo corrobora em audiência (como tal, desaparece a proibição de prova de valoração do depoimento de «ouvir dizer» na medida em que depôs a pessoa a quem se ouviu dizer – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 26/11/2008, consultado em http:www.dsgsi.pt.
É verdade que os testemunhos do casal L...e I...(ouvidos por vídeo-conferência em 9/2/2009 – CD 4 – 10:56:00 e 11:16:32, respectivamente) não forma totalmente coincidentes, assente que os dois estiveram sempre juntos na ocasião do dia 25/11/2009, clientes que eram do turismo rural explorado pelo casal .
Veja-Se, contudo, que o tribunal esteve atento a essas discrepâncias, na medida em que se deixou escrito o seguinte na Motivação da matéria de facto:
«(…) Quanto ao mais que esta testemunha – fala do L...- referiu, nomeadamente, que quando o arguido e a assistente começaram a discutir retirou-se para dentro da casa com a sua mulher e que foram à janela da sala e viram a agressão, tal não mereceu a credibilidade do tribunal, não tendo a testemunha convencido o tribunal de que assistiu à agressão, pois a descrição que a testemunha faz da agressão nem sequer coincide com a descrição que a assistente fez, por outro lado, a testemunha I... referiu que não assistiu à agressão e que o seu marido também não lhe disse que tinha assistido à agressão.
(…) Quanto à testemunha L... como já supra referido, o seu depoimento apenas mereceu credibilidade ao tribunal em parte, nomeadamente quando corroborado pela testemunha I...(…)».
Como se vê, foram desmontadas pelo tribunal as detectadas contradições entre os depoimentos dos 2 membros deste casal madeirense que, diga-se de passagem, não teria qualquer razão lógica ou objectiva para depor contra o arguido, em favor da assistente, pessoa que também só conheceram naquela altura.
A verdade é que ambos concordaram no seguinte: encontravam-se nesse local no dia 25/11/2006, estavam na sala e ouviram a assistente gritar a pedir socorro, e quando se dirigiam à rua para auxiliar aquela, o arguido entrou e impediu-os, trancando a porta, tendo mais tarde este destrancado a porta, saindo o casal madeirense e encontrando a assistente a cerca de 50 m da Quinta, tendo ambos visto esta com a cara inchada e o lábio cortado (note-se que o Guarda P… refere que não viu marcas na cara da assistente por estar noite, não as excluindo, como é bem de ver Refere ele, em 21/1/2009, ao minuto 7:47, que no dia 25/11/2006, quando chegou a casa do casal desavindo, estava noite e portanto não poderia ver as possíveis marcas no rosto da assistente. ).
O facto de existirem contradições pontuais entre dois testemunhos não legitima a conclusão do recorrente – não será, naturalmente, de descredibilizar a totalidade desses testemunhos ou eventualmente daquele que nos parece ser mais verdadeiro.
No caso, entendeu-se, e bem, que o depoimento mais escorreito seria o de I…, em claro detrimento do depoimento de L..., indivíduo que resolveu descrever aquilo que não poderia, de facto, ter visto, por inapurado motivo.
Diga-se ainda que, a considerar-se totalmente irrelevantes os depoimentos deste casal, mesmo assim entende este tribunal que haveria prova da agressão de 25/11/2009, com base nos depoimentos da assistente e da sua filha, aliados à prova pericial constante dos autos (recorde-se que foi decidido considerar que as declarações prestadas pela assistente N...mereceram a credibilidade do Tribunal, pois prestou declarações de forma isenta, objectiva, sem hesitações, de forma coerente e sem contradições, e com conhecimento dos factos, por neles ter tido intervenção directa, assente que foi a vítima das condutas do arguido).
Escreveu-se a fls 401, a este propósito, que o tribunal «não teve razões para duvidar da assistente, até porque as suas declarações foram corroboradas pelo depoimento das testemunhas B..., I...e L..., sendo que, o depoimento das restantes testemunhas não infirmou as suas declarações».
Além disso, mesmo que não se provasse a agressão de 25/11/2006, sempre ficaria provada a restante factualidade agressiva – os factos 3 a 9 -, matéria bastante para se conseguir a condenação do arguido pelo crime de maus tratos.
Alega ainda o recorrente que as testemunhas O..., A... (este irmão do arguido) e M... depuseram em tribunal (na sessão de 21/1/2009) afirmando que sempre lhes pareceu correcto o relacionamento entre o casal Cristas e que não foi arrolada nenhuma testemunha que tivesse presenciado, uma vez só vez, os insultos e agressões físicas que constam da acusação pública.
Escreve também o arguido na sua motivação de recurso que “não deixa de ser estranho que a assistente nunca tenha apresentado queixa e nunca tenha entrado num Hospital a fim de ser tratada (…) e que “acresce que, sendo normais os comportamentos que a douta sentença considerou provados, não se entende como é que a assistente os tolerou durante tantos anos, nunca se tenha separado do arguido, nem tenha demonstrado vontade de o fazer”.
Tal considerar é esquecer que as 3 testemunhas em causa foram arroladas pelo arguido, podendo dar uma visão estrategicamente idílica do ambiente de vida deste casal, assente ainda que pouco ou nada privavam com ele (mesmo o irmão Alberto, motorista profissional, ausente em longos períodos no estrangeiro, como bem se acentua na sentença recorrida).
Tal considerar é ignorar, de forma assaz tendenciosa, o facto de as pessoas, mesmo que testemunhas presenciais, não querem, de livre vontade, vir a tribunal meter a tal “colher” no mundo dos maridos e das mulheres.
É ignorar que existem agressões sub-reptícias, subtis, que existe uma natural vergonha por parte da vítima que, a todo o custo, tenta esconder as suas mazelas para não dar a conhecer o inevitável: o fracasso do seu casamento.
É ignorar que o medo impera no mundo das vítimas, que vão sofrendo silenciosas até que o copo transborda e se dá o natural passo rumo à ruptura de vida com um marido ou com uma mulher, porque a tolerância acaba, porque o «limite do sacrifício» é atingido…
Recordemos o que atrás já se deixou escrito - o tribunal de recurso não tem a imediação da prova oral nas mesmas condições em que esta ocorre no tribunal recorrido. É por isso que a decisão só deva ser alterada quando seja evidente que a prova oral referida na fundamentação não conduz à decisão obtida; mas não quando, havendo duas versões sobre os factos, o juiz na 1ª instância optou por uma, fundamentando-a racionalmente em detrimento da outra.
Não basta, pois, ao recorrente dizer que determinados factos estão incorrectamente julgados. Seria necessário demonstrá-lo, nomeadamente face às regras da experiência comum, o que não logrou fazer, apesar do seu heróico e prolixo esforço.
Como tal, nenhuma censura nos merece a forma como é dada como provada a matéria constante da sentença recorrida.
Portanto, nunca ficou, pois, o tribunal, em situação de fazer funcionar o alegado princípio «in dubio pro reo», na medida em que não se gerou, no seio do julgador, qualquer dúvida «séria e honesta» com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação de versão dos factos prejudiciais ao arguidoExtremamente expressivo, neste particular, o teor do Acórdão da Relação de Coimbra de 26/11/2008 atrás citado..
Aqui chegados, parece-nos, sem sombra de qualquer dúvida, que o tribunal recorrido analisou bem a matéria factual, decidindo acertadamente.

3.8. Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127.º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras da experiência incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Ao decidir como decidiu, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida em que tenha ficado sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, devesse efectivamente ter ficado num estado de dúvida insuperável, a valorar nos termos do princípio in dubio pro reo.
Não se verificou, por conseguinte, qualquer violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio e dos artigos 340.º, 355.º e 356.º, do C.P.P., como sem razão o recorrente invoca.
Razão pela qual não há que alterar a matéria de facto quanto aos pontos sindicados no recurso, assente que não se vislumbra qualquer fundamento para o pedido de falta de credibilidade da assistente e da testemunha B… .
Em CONCLUSÃO, da análise da prova produzida, através dos documentos juntos aos autos e da audição dos depoimentos gravados, tudo confrontado com a motivação da decisão de facto, sem esquecer que o recurso é um remédio e não um segundo julgamento, conclui-se que inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante da sentença recorrida, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto dada como provada na decisão «a quo».
Não merece, por conseguinte, qualquer censura a decisão – poderíamos dizer, a CONVICÇÃO Assinale-se que a prova necessária para a convicção do julgador não reside tanto na quantidade como na qualidade dos meios de prova produzidos.
Refere Paulo Saragoça da Matta que se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Note-se ainda que a alínea b) do n.º 3 do art.º 412º do Código de Processo Penal fala de provas que imponham decisão diversa.

- proferida pelo tribunal recorrido quanto ao rol dos factos provados, já que o mesmo se mostra conforme a prova produzida e tomada com plena observância do disposto no art. 127º, do C. Processo Penal.

3.9. Vícios do artigo 410.º, n.º 2
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
O erro de julgamento, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova, ocorrem respectivamente quando:
a)- o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado;
b)- os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz - artº 410º nº 2 a) CPP;
c)- se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida - Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, II Vol., pág 740; e ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., p. 74).
Analisada a sentença recorrida, e atento o já por nós exposto em 3.7 e 3.8., não se vislumbra que a mesma enferme de qualquer dos apontados vícios, inexistindo erro notório na apreciação da prova ou qualquer insuficiência da matéria factual, como insinua o recorrente Carlos.

3.10. Vejamos, finalmente, o derradeiro argumento do arguido.
Entende ele que, jamais, poderia ter sido condenado pela prática do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152° n.°s 1 e 2 do C.Penal.
O bem jurídico protegido nesta tipificação (e note-se que se considerou ser de aplicar a versão do CP vigente à data dos eventos, logo, na versão anterior à da revisão levada a cabo pela Lei n.º 59/2007 de 4/9 Versão que deve ser aplicada in totum e já que não se deve misturar ou combinar os dispositivos mais favoráveis de cada uma das leis concorrentes pois então estaria o aplicador a arvorar-se em legislador, criando uma terceira via, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo (artigo 2º/4 do CP) – por tal motivo, também não se deveria ter referido na sentença o artigo 43º do CP revisto (o artigo correspondente no CP não revisto seria o artigo 44º), o que, no caso, nenhuma alteração no dispositivo acarreta.) é, sabemo-lo desde sempre, a saúde do cônjuge nas suas vertentes física, psíquica e mental, compreendendo o tipo uma reiteração de condutas que se traduzem, cada uma à sua maneira, na inflicção de agressões físicas ou psíquicas ao cônjuge.
Os maus tratos físicos consistem em actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais, enquanto os maus tratos psíquicos consistem em actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros.
O tipo de crime em causa tem sido considerado como «crime habitual», em que cada uma das condutas isoladas perde a sua autonomia para efeitos punitivos, razão pela qual, e em termos consequenciais, o prazo prescricional do procedimento só se inicia desde a prática do último acto (cfr. art.º 119, n.º 2, alínea b) do Código Penal).
Estatui o art. 152º do Código Penal – anterior à revisão de 2007 - que quem infligir ao cônjuge (…) maus tratos físicos ou psíquicos (n.º 2) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Este normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no «acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» {Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos, do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, BMJ 335-5).
Quer isto dizer que qualquer conduta que, por acção, ou omissão, inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicas, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que seja seu cônjuge ou companheiro, cai na previsão da norma.
Trata-se de um tipo legal de crime que, para se concretizar, pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, coacção, injúria, difamação.
Segundo se expende no Acórdão de 05/11/2003, do Tribunal da Relação do Porto, in www.dgsi.pt , “De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge”.
Isto equivale a dizer que entre o crime de maus tratos e os crimes que o podem integrar (nomeadamente o de ofensa à integridade física simples e o de injúrias, como no caso “sub judice”) estabelece-se uma relação de concurso parente, só se aplicando a pena cominada pelo art. 152º, n.º 2, do Código Penal, deixando de ter qualquer relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.
Na realidade, o crime de maus tratos a cônjuge vem descrito na lei como consistindo numa pluralidade indeterminada de actos parciais, ou seja, numa realização repetida do tipo (cfr. HANS HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S A, pags.998-999 e MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, previsto e punido 546-547).
Nos termos do artigo 19º, n.º 2 do CPP, existem crimes que se consumam através de actos sucessivos ou reiterados, mas que são um só crime, não se podendo concluir pela existência de vários crimes, mas sim pela existência de múltiplas formas de executar ou praticar o crime.
Será, assim, a consideração global dos vários actos (que, desacompanhados de certas circunstâncias e considerados em particular, consistem em crimes efectivos e punidos enquanto tal) que nos levam a concluir e a punir determinada conduta como crime de maus-tratos a cônjuge.
Na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/07/2002, in www.dgsi.pt, o art. 152°, n.º 1 e 2 do CP “inclui os comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade humana, compreendendo a ratio deste normativo, para além dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos (por exemplo humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc)…”.
O STJ (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/01/1997, consultado em www.dgsi.pt) tem considerado que para a verificação do crime de maus tratos não basta uma acção isolada, mas também não se exige uma habitualidade.
Diga-se ainda que também se tem entendido que pode cair na previsão do n.º 2 do artigo 152º do CP a actuação de quem infligir ao cônjuge um único acto de violência, desde que a sua gravidade intrínseca o pudesse qualificar como maus tratos, ou seja, qualifica-se como crime de maus tratos as condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser consideradas como tal.
Não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do art. 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, isto é, que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança, desnecessária, da parte do agente.

3.11. Este tipo legal de crime foi introduzido, pela primeira vez, na versão originária do Código Penal de 1982, através do n.º 3 do art.º 153.º, que tinha por epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» e sofreu alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o art.º 152.º, sob a epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge», o qual foi alterado pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, e ainda pela Lei n.º 7/00, de 27 de Maio, passando a ter a epígrafe «maus tratos e infracções de segurança», sendo de salientar que antes desta última alteração (com a Lei n.º 7/00 Assumindo natureza pública a partir de 2000, natureza que nunca perdeu nas sucessivas alterações..), o procedimento criminal pelo crime de maus tratos a cônjuge (n.º 2 do art.º 152.º do CP) dependia de queixa, embora na redacção dada pela Lei n.º 65/98, o Ministério Público pudesse dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
O art. 152º do C. Penal, na redacção resultante da revisão operada pelo DL nº 48/95 de 15/3, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 65/98 de 2/9 e 7/2000 de 27/5, dispunha, na parte que aqui nos interessa, que: “1. Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e a) Lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente; (…) é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º; 2. A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus-tratos físicos ou psíquicos.(…)”.
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações ao ilícito criminal em referência, distribuindo por três preceitos as previsões que antes se encontravam concentradas num só.
Actualmente, os maus tratos a um conjunto de pessoas com quem o agente mantenha ou tenha mantido um relacionamento conjugal ou análogo, seja do outro ou do mesmo sexo e ainda que sem coabitação, bem como àquelas que coabitem com o agente e se encontrem particularmente indefesas, têm previsão autónoma no actual art. 152º, com a epígrafe de “Violência doméstica”.
Contudo, no essencial, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu cônjuge, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Relativamente ao anterior crime de maus tratos, foi, de facto, adicionada uma referência à comissão alternativa de modo reiterado ou não , clarificando-se aquilo que já constava da mais recente corrente jurisprudencial – por regra, «não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime (o termo «reiteração» prende-se a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham de ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si).
É uma relação de domínio ou de poder que está aqui em causa.
Plácido Fernandes, em interessante artigo publicado na Revista do CEJ, n.º 8, sobre as Jornadas sobre a Revisão do Código Penal (p. 308), opina, e nós com ele, que, «pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana».
Analisemos, então, o caso vertente.
Tendo por referência os factos dado como provados na douta decisão judicial, afigura-se-nos que, com o seu comportamento, o arguido preencheu os elementos, objectivos e subjectivos, do crime de maus-tratos a cônjuge, previsto e punido pelo art. 152º/2 do CP não revisto, tido por aplicável in casu.
De facto, concordamos que a conduta do arguido, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo a que ora se alude, constante da decisão judicial em causa, deve ser considerada, na sua globalidade, como violadora da dignidade pessoal da ofendida, enquanto sua cônjuge, e da respectiva saúde, considerada nas suas várias vertentes: moral, física, mental e psíquica.
Na realidade, deu-se como provado os seguintes factos (reiterados):
FACTO A - Desde o sétimo ano de casamento que a relação entre o arguido e a assistente se começou a deteriorar, sendo que, por inúmeras vezes, em datas não concretamente apuradas mas na constância do matrimónio, o arguido costumava afirmar que tinha outras mulheres e dirigia-se à assistente chamando-a de ordinária, ranhosa, velhaca e dizendo “vai para a puta que te pariu”.
FACTO B - O arguido agrediu pela primeira vez a assistente, em data não concretamente apurada, no ano de 1984.
FACTO C - Nessa ocasião, no interior da residência de então dos mesmos, na localidade de B…, Ferreira do Zêzere, o arguido, na sequência de discussão, desferiu à assistente diversos murros e bofetadas na cara.
FACTO D - Desde então e até 25 de Novembro de 2006, as agressões por parte do arguido à assistente foram frequentes e geralmente consistiam em empurrões e puxões nos braços, pontapés, o aconteceu por inúmeras vezes.
FACTO E - Era também frequente o arguido ameaçar a assistente dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Qualquer dia desfaço-te em bocados, parto-te a cara, meto-te no hospital, dou cabo de ti, estoiro-te os cornos”.
FACTO F - Em data, não concretamente apurada, quando se encontravam a residir na Suíça, no interior do restaurante que exploravam, o arguido desferiu um pontapé na perna direita da assistente, e desferiu-lhe diversos murros e bofetadas, apertando-lhe o pescoço, levando a que a mesma, como consequência das agressões sofridas, ficasse dois dias internada num hospital.
FACTO G - No dia 25 de Novembro de 2006, pelas 18h30, na residência do arguido e da assistente na Q…, a assistente tinha transportado, a uma outra localidade dois casais que aí se encontravam hospedados, foi confrontada, ao chegar, pelo arguido que dirigiu-se à mesma dizendo “desde quando tens autorização para pegar no carro sem a minha ordem”, após o que, agarrou a assistente e desferiu-lhe diversas bofetadas na cara e na cabeça, tendo ainda lhe dirigido a seguinte expressão “andas para aqui a pôr-me os cornos”, chamando-lhe cabra e ranhosa.
FACTO H - De seguida, e como a assistente fugiu para a rua, o arguido fechou as portas da residência não deixando a assistente entrar em casa, pelo que a mesma viu-se obrigada a pernoitar no carro da filha que posteriormente aos factos relatados chegou ao local.
FACTO I - Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 25 de Novembro de 2006, resultou para a assistente N... uma equimose na região malar esquerda e laceração da mucosa bucal da região geneana esquerda, o que lhe determinou 7 dias para sua cura.
FACTO J - O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, reiteradamente violentar a saúde corporal, de humilhar e desconsiderar a assistente N..., com quem sabia estar casado e estar obrigado a respeitar e a cooperar, lesando dessa forma a sua saúde, dignidade e integridade física, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Como se vê, são demasiadas vezes, são demasiadas singularidades que, somadas, subsumem-se, fora de qualquer dúvida, ao tipo complexo do artigo 152º, n.º 2 do CP
Diga-se ainda que, existindo crime de maus tratos, caiem por terra as sucessivas – e comprovadas - ofensas à integridade física da assistente, não havendo qualquer razão para invocar a falta de queixa relativamente à singular agressão de 1984 (cfr. artigos 122º e 126º das alegações do recorrente) - o crime de ofensas corporais levado a cabo pelo arguido, na pessoa da sua mulher, nas circunstâncias em referência, é um dos múltiplos actos em que o crime de maus tratos a cônjuge, praticado pelo mesmo, se concretizou, tendo aquele crime de ofensas corporais perdido, assim, a sua autonomia, por que integrador daqueloutro crime, pelo qual o arguido, a final e sem censura, veio a ser condenado.
Do mesmo modo, a circunstância de o arguido insultar a sua mulher, chamando-lhe nomes como ranhosa, ordinária, velhaca, dizendo-lhe várias vezes «vai para a puta que te pariu»., deve ser analisado e conjugado com todos os outros factos dado como provados, inclusive o que atrás se referiu, a fim de o enquadrar num crime mais vasto que é o de maus tratos a cônjuge.
Doutrinou o Acórdão da Relação de Coimbra, de 29/01/2003, http://www.dgsi.pt/trc:
“I - Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos I a cônjuge.
II- 0 que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade da vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.
Ora, in casu, o arguido praticou os factos descritos e dados como provados na sentença, no recato do lar que partilhava com a ofendida, de forma permanente e diversificada, provocando um clima de insustentável medo, da parte da vítima e demais familiares (mormente, a filha B...que depôs de forma tão corajosa e elevada em audiência).
As expressões injuriosas com que apodava a sua consorte, o clima de constrangimento e temor decorrente das acções violentas que sobre a ofendida exercia e a sujeição psicológica que desse estado de vivência incutia no espírito e na forma de vida da companheira conferem um quadro factual capaz de suportar a incriminação que lhe foi assacada no libelo acusatório.
Como se assinalou acima, o crime de maus tratos basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um menosprezo pela dignidade que a qualquer ser humano é devida.
A matéria de facto adquirida, porque evidenciadora de uma actuação violentadora da personalidade da ofendida e da sua vivência pessoal e familiar, por parte do arguido, configura-se como integradora da previsão normativa contida no nº 2 do artigo 152º do Código Penal, não merecendo, por isso, qualquer censura a
a qualificação jurídico-penal encontrada na sentença, à luz da qual foi o mesmo sancionado criminalmente, estando, pois, fora de qualquer cogitação a defesa da sua absolvição.

3.12. Quanto à pena principal de um ano de prisão, suspensa na sua execução (esta suspensão é que terá de ser determinada nos termos do artigo 50º, n.º 5 do CP anterior à revisão de 2007, pelas razões atrás expostas), nada temos a objectar, perante os critérios dos artigos 70º e 71º do CP, sendo de a manter, por conseguinte.

3.13. No que se refere à condenação cível, foi o arguido condenado a pagar, a título de danos não patrimoniais, à assistente/demandante civil a quantia de € 4.000.
Coloca o recorrente em crise tal condenação pelo facto de entender dever ser absolvido da prática do crime que consta da acusação (não estando, para si, perfectibilizados os requisitos do accionamento da responsabilidade civil por facto ilícito).
Sem razão, de novo.
O art. 496.º do Código Civil consagra a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Por seu lado, a doutrina e a jurisprudência, quase unanimemente, limitam a indemnização àqueles casos que tenham efectiva relevância ética e moral por ofenderem profundamente a personalidade física ou moral, designadamente as ofensas à honra, à reputação, à liberdade pessoal, às lesões corporais e de saúde, aos demais direitos de personalidade, etc (cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, v.1, p.572; Ac. STJ de 12-10-73, BMJ, 230.º, 107; Ac. STJ de 26-6-91, BMJ 408.º, 538; Vaz Serra, Reparação do dano não patrimonial, BMJ, 83.º, 69 sgs.), sendo ainda objecto de reparação aqueles danos morais naturais cuja reparação pecuniária se destina a compensar, embora indirectamente, os sofrimentos físicos, morais e desgostos e que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos (Vaz Serra, RLJ, ano 105.º e 108.º, p 37 sgs. e 223; Ac STJ de 27-12-69, BMJ, 141.º, 331; Ac STJ de 22-11-78, BMJ, 204.º, 262).
Tem-se entendido que a gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo, embora atendendo às particularidades de cada caso, e tudo segundo critérios de equidade (cfr. A. Varela, ob. cit., pag 576; Vaz Serra, RLJ, ano 109.º, p. 115), devendo ter-se ainda em conta a comparação com situações análogas decididas em outras decisões judiciais (Acs do STJ de 2-11-76, de 23-10-79, de 22-1-80, de 13-5-86, in BMJ 261.º-236, 290.º-390, 239.º-237, 357.º-399; Ac STJ, de 25-6-2002, CJ/STJ, ano X, t. II, p. 128) e que a indemnização a arbitrar tem uma natureza mista: a de compensar esses danos e a de reprovar ou castigar, no plano civilístico, a conduta do agente (cfr. A. Varela, ob. cit., p. 529 e 534; Ac STJ de 26-6-91, BMJ, 408.º, 538).
No caso vertente, e nesta sede, resultou provado que:
FACTO ILÍCITO CULPOSO (imputação do facto ao lesante)
«3. Desde o sétimo ano de casamento que a relação entre o arguido e a assistente se começou a deteriorar, sendo que, por inúmeras vezes, em datas não concretamente apuradas mas na constância do matrimónio, o arguido costumava afirmar que tinha outras mulheres e dirigia-se à assistente chamando-a de ordinária, ranhosa, velhaca e dizendo “vai para a puta que te pariu”.
4. O arguido agrediu pela primeira vez a assistente, em data não concretamente apurada, no ano de 1984.
5. Nessa ocasião, no interior da residência de então dos mesmos, na localidade de B…, Ferreira do Zêzere, o arguido, na sequência de discussão, desferiu à assistente diversos murros e bofetadas na cara.
6. Desde então e até 25 de Novembro de 2006, as agressões por parte do arguido à assistente foram frequentes e geralmente consistiam em empurrões e puxões nos braços, pontapés, o aconteceu por inúmeras vezes.
7. Era também frequente o arguido ameaçar a assistente dirigindo-lhe as seguintes expressões: “Qualquer dia desfaço-te em bocados, parto-te a cara, meto-te no hospital, dou cabo de ti, estoiro-te os cornos”.
9. Em data, não concretamente apurada, quando se encontravam a residir na Suíça, no interior do restaurante que exploravam, o arguido desferiu um pontapé na perna direita da assistente, e desferiu-lhe diversos murros e bofetadas, apertando-lhe o pescoço, levando a que a mesma, como consequência das agressões sofridas, ficasse dois dias internada num hospital.
10. No dia 25 de Novembro de 2006, pelas 18h30, na residência do arguido e da assistente na Q…, a assistente tinha transportado, a uma outra localidade dois casais que aí se encontravam hospedados, foi confrontada, ao chegar, pelo arguido que dirigiu-se à mesma dizendo “desde quando tens autorização para pegar no carro sem a minha ordem”, após o que, agarrou a assistente e desferiu-lhe diversas bofetadas na cara e na cabeça, tendo ainda lhe dirigido a seguinte expressão “andas para aqui a pôr-me os cornos”, chamando-lhe cabra e ranhosa.
11. De seguida, e como a assistente fugiu para a rua, o arguido fechou as portas da residência não deixando a assistente entrar em casa, pelo que a mesma viu-se obrigada a pernoitar no carro da filha que posteriormente aos factos relatados chegou ao local.
14. O arguido agiu sempre de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de, reiteradamente violentar a saúde corporal, de humilhar e desconsiderar a assistente N..., com quem sabia estar casado e estar obrigado a respeitar e a cooperar, lesando dessa forma a sua saúde, dignidade e integridade física.
15. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal».
DANOS EMERGENTES e NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE ELES E O FACTO ILÍCITO DO DEMANDADO
«13. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido no dia 25 de Novembro de 2006, resultou para a assistente N... uma equimose na região malar esquerda e laceração da mucosa bucal da região geneana esquerda o que lhe determinou 7 dias para sua cura.
17. Em consequência dos factos supra descritos a assistente sofreu dores, teve medo, ficou acabrunhada, sentiu-se humilhada, ficou debilitada, num estado depressivo e de nervosismo, tendo sido medicada com anti-depressivos e ansiolíticos, encontrando-se ainda a tomar, esporadicamente, anti-depressivos, tendo tido necessidade de recorrer a consultas médicas.
18. Actualmente a assistente ainda sente medo do arguido».
Como tal, estas acções agressivas e lesivas da honra da assistente, deixaram um infeliz rasto de sequelas psíquicas e psicológicas na N…, obviamente ressarcíveis, havendo, pois, facto ilícito culposo (cfr. artigos 70º, 483º, 496º, 562º, 563º, 564º e 566º do CC).
Atentos os factores acima referidos, a indemnização arbitrada à demandante civil – só a título de danos não patrimoniais, já que não lograram obter prova os peticionados danos patrimoniais) mostra-se mesmo moderada, não merecendo, assim, qualquer censura a decisão recorrida, não havendo que a alterar.

3.14. A VIOLÊNCIA FAMILIAR é um crime e as forças policiais e a instância judicial têm de lidar com ele como lidam com qualquer outro crime.
De acordo com a Comissão de Peritos para o Acompanhamento da Execução do Plano Nacional contra a violência doméstica, a violência doméstica é definida como sendo “qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou por qualquer outro modo), a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando, seja cônjuge ou companheiro o, ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como ascendentes ou descendentes».
Ninguém duvida que a maior parte das situações de violência doméstica que invadem a nossa sociedade é caracterizada por um agressor masculino, sendo a vítima o elemento feminino.
Há poucos dias, pudemos ler num cartaz empunhado por uma criança belga numa manifestação antipedófila:
“O Mundo é perigoso para viver
Não por causa daqueles que fazem o mal
Mas por causa daqueles que assistem,
testemunham a deixam FAZER”
O velho dito entre marido e mulher não metas a colher”, invocado pelo arguido nas suas alegações de recurso, é absolutamente inaceitável quando estão em causa DIREITOS HUMANOS claramente violados - e aí toda a violência familiar é intolerável, não podendo ninguém escudar-se nessa vetusta máxima para não agir, para não proteger aqueles e aquelas que necessitam de ajuda.
Não se duvida que as mulheres, os idosos e as crianças são o elo mais fraco da corrente familiar, desta cadeia de relações sociais, deste sacrário dos tempos modernos que tanto pode constituir o local privilegiado para cada ser humano potencializar as suas virtudes pessoais e se realizar no sentido mais amplo, como o local do crime mais hediondo e infame praticado pelo marido e pai cobarde, necessariamente mais forte, e que acaba escondido pelo muro da sombra e do silêncio - nessa altura, o sentimento de impunidade desses agentes é enorme, sentindo-se reis e senhores daquele seu pequeno mundo que comandam à laia de ditadores, aí estabelecendo, sem qualquer contraditório, a lei marcial.
Sentimos a necessidade de retirar esta violência da sombra apócrifa da hipocrisia e da passividade de “avestruz” e romper o silêncio dos inocentes, das vítimas que, invariavelmente, se sentem culpadas e culpabilizadas aquando da publicitação da ofensa que sentiram na carne e no espírito.
Há que proteger estes inocentes de mãos brancas, estes indefesos que apenas pretendem pedir um pouco de paz na solidão dos seus casarios. Cada vez mais o sistema político e o sistema jurídico estão abertos e consciencializados para a necessidade de adoptar eficazes estratégias de intervenção no combate a essa violência.
Segundos dados das Nações Unidas e da Unicef, “os riscos de mulheres e crianças serem alvo da prática de violência em casa é largamente superior ao risco de os sofrerem no exterior”.
E algo tem de ser feito para por termo a tal violência.
E o «feito» passa também pelos tribunais que devem aplicar a lei, sancionando as indiscutíveis ilicitudes marialvistas e desencorajando futuros comportamentos violentos destes «Golias de trazer por casa»…
Por tudo isto, a sentença foi prudente e sensata, não nos merecendo ela qualquer censura.

3.15. Urge, contudo, fazer uma correcção na sentença, emendando-se o nome próprio da filha do casal, uma das principais testemunhas dos autos.
Assim, a fls 397, quando se lê “E...”,
Dever-se-á ler:
“B…”.

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III – DISPOSITIVO

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em
1º- corrigir o texto da sentença recorrida, determinando-se que, a fls 397, quando se lê “E...”, dever-se-á ler: “B…”.

2º- julgar não provido o recurso intentado por C..., mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, com a taxa de justiça fixada em 10 UCs (artigos 513º, n.º 1 do CPP e 87º, n.º 1, alínea b) do CCJ.

Coimbra, _______________________________
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


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(Paulo Guerra)


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(Barreto do Carmo)