Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1384/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
PRESSUPOSTOS DA LIBERDADE CONDICIONAL
NULIDADE DA DECISÃO POR FALTA DE DILIGÊNCIA ESSENCIAL PARA O APURAMENTO DOS FACTOS
Data do Acordão: 05/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18º E 136º, DO DL 783/76, 663º, N.º 1, DO C.P.C. E 120º, N.º1, ALÍNEA D), DO C.P.P.
Sumário: I – A decisão de revogação da liberdade condicional deve assentar na situação fáctica existente ao tempo em que é encerrada a discussão dos respectivos pressupostos, em conformidade com o princípio geral do processo segundo o qual a decisão do tribunal de 1ª instância deve reportar-se à situação existente à data do encerramento da audiência.
II – Por isso, deve ser precedida das diligências necessárias tendo em vista a obtenção de informação actualizada sobre o condenado.

III – A omissão das respectivas diligências constitui a nulidade prevista no artigo 120º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Penal.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1. O arguido A..., melhor identificado nos autos, recorre do despacho que, em processo próprio, instaurado para o efeito, revogou a liberdade condicional que lhe tinha sido concedida (quando atingiu o cumprimento de 5/6 da respectiva pena).

Formula as seguintes CONCLUSÕES
1. O arguido foi posto em liberdade condicional em 12 de Julho de 2001, nos termos do art. 61º, nº 5, por ter atingido 5/6 da pena e não nos termos do art. 61º, n.º 2 b) conforme consta do despacho de revogação.
2. O arguido, em liberdade condicional, cometeu um crime em 07.10.2002, tendo sido condenado por sentença de 22.11.2003.
3. A execução da pena foi suspensa por um período de 2 anos por o juiz ter entendido que a simples censura do facto e a ameaça da pena, bastariam para realizar de forma adequada as finalidades da prevenção
4. O Tribunal “a quo” não teve em consideração a sentença atrás referida.
5. O arguido não cometeu quaisquer ilícitos criminais após 07.10.2002, ainda antes da sentença atrás referida ter sido proferida.
6. Encontra-se ressocializado e gravemente doente, sendo acompanhado no CAT de Abrantes e Hospital de Torres Novas, incapacitado para o trabalho, auferindo a Pensão Social de sobrevivência
7. A decisão foi baseada num Relatório do IRS de Tomar, de 2002 e não num Relatório sobre a situação actual do arguido.
8. A revogação da liberdade viola o princípio da finalidade das penas, particularmente da reintegração do agente na sociedade.
9. A decisão violou os artigos 40º, 56º e 64º do CP ao fazer uma errada interpretação dos factos e do direito.
Assim, deve a decisão impugnada ser substituída por urna outra que:
a) Não revogue a liberdade condicional e determine a arquivamento do Processo.
b) A tal não ser entendido deve ser renovada a prova e determinado ao IRS de Tomar que elabore o Relatório actualizado sobre a situação do arguido.
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Respondeu o digno magistrado do MºPº junto do tribunal recorrido, apresentando como resumo: o arguido incumpriu grosseira e reiteradamente as obrigações que lhe foram fixadas na libertação condicional, tendo mesmo sido condenado – em pena suspensa – por um crime de resistência e coacção funcionário cometido nesse período; foi ouvido e revelou terem-se completamente frustrado os intuitos ressocializadores da libertação condicional, não se encontrando ainda preparado para viver em liberdade.
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Neste Tribunal o Ex. mo Procurador-Geral Adjunto, emitiu parece no sentido de que o recurso deve improceder, assentando a decisão na correcta apreciação dos factos.
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Admitido o recurso, por não situado no âmbito da previsão do artigo 127º do DL 783/76 de 29.10, mantendo-se a validade do processo afirmada naquele despacho, corridos os vistos, procedeu-se a julgamento, em conferência.
Cumpre conhecer e decidir.
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2. Sintetizando as conclusões do recurso verifica-se que o recorrente formula duas pretensões:
- que se profira “decisão que não revogue a liberdade condicional e determine a arquivamento do Processo”; e
- caso assim não se entenda que “deve ser renovada a prova e determinado ao IRS de Tomar que elabore o Relatório actualizado sobre a situação do arguido”.
Esta ultima pretensão, na sequência da alegação de que a decisão recorrida assentou nos pressupostos de facto emergentes de um relatório desactualizado (de 2002, quando a decisão foi proferida em 2005), não tendo procedido à avaliação da situação existente quando a decisão foi proferida, envolve a arguição da nulidade correspondente à omissão de diligência probatória essencial para a decisão a tomar.
Pelo que importa decidi-la em primeiro lugar, tendo em atenção a ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424º, n.º2 do mesmo diploma.
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3. A decisão recorrida tem a seguinte base factual (descrita sob o respectivo ponto III): «« No próprio dia em que foi colocado em liberdade, ele começou por ir residir para local diferente do que lhe foi fixado, sem pedir qualquer autorização, ou sequer comunicar ao Tribunal, antes se apresentou em diferente equipa do IRS, pedindo subsídios. Daí para a frente, e de cada vez que travou diálogo com quem o deveria acompanhar, foi unicamente para pedir ou exigir dinheiro, quase sempre com maus modos. No meio residencial, é tido por agressivo e intimidador das pessoas que com ele se relacionam. Ao nível familiar, fez vida em comum com pessoa que posteriormente o veio a abandonar, alegando maus tratos. Por factos que praticou em Outubro de 2002, veio a ser condenado, por resistência e coacção sobre funcionário, em pena de prisão, suspensa na sua execução»».
Consistindo o vício que lhe é apontado, na perspectiva do recurso, em assentar no relatório do IRS que se reporta à situação existente dois anos antes da decisão, baseando-se, por isso, em fundamentos que não se verificavam na altura em que a decisão foi proferida.
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4. Resulta dos autos, com relevo para a apreciação das questões suscitadas:
O arguido esteve em reclusão no Estabelecimento Prisional de Alcoentre, em cumprimento da pena de 7 (sete) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que lhe foi imposta, em cúmulo jurídico, pela prática de crimes de roubo e de sequestro, no processo 438/97 da 7ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção.
Foi-lhe concedida, com efeito a partir de 12 de Julho de 2001 liberdade condicional, pelo período decorrente até 5 de Fevereiro de 2003, vinculado, além do mais, a fixar residência em local donde se não poderia ausentar, aceitar o acompanhamento do IRS, manter boa conduta e não cometer crimes - (cfr. decisão proferida no processo a que o presente se encontra apenso a fls. 154-155)
Como resulta da referida decisão, a liberdade condicional foi concedida em virtude de o arguido ter atingido o cumprimento de 5/6 da pena – e não como refere a decisão recorrida, em obediência ao disposto no art. 61º n.º 2 alínea a) do CP, por ter sido formulado o juízo de que seria fundadamente de esperar que o arguido, uma vez posto em liberdade se comportaria de modo socialmente responsável, sem praticar crimes.
Durante o período da liberdade condicional o arguido cometeu, em 07.10.2002, crime de resistência e coacção sobre funcionário, pelo qual foi condenado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução por um período de 2 anos, no processo comum singular 696/02.9PBTMR DO 1º Juízo do Tribunal de Tomar, por sentença de 22.11.2003, – cfr. certidão junta a fls. 120 e segs. dos autos.
Não há notícia de que o arguido tenha cometido qualquer outro ilícito criminal após 07.10.2002.
Nem de a suspensão da pena aplicada no processo comum singular 696/02.9PBTMR DO 1º Juízo do Tribunal de Tomar ter sido revogada.
O relatório do IRS que precedeu a decisão em cuja informação assenta a decisão (junto a fls. 153-154 dos autos) é datado de 11.01.2005 (cfr. fls. 154). No entanto, conta de tal relatório (cfr. último parágrafo), textualmente: «desde 05de Fevereiro de 2003 que (o arguido) não é acompanhado por parte desta equipa de Reinserção Social, sendo-o contudo, lateralmente até 07 de Outubro de 2004» - cfr. fls. 154.
Remetendo ainda o mencionado relatório para o “Relatório de Anomalias de 30.10.2002, tendo como consequência dessa informação sido ouvido em tribunal em 20.01.2003”.
A decisão de revogação da liberdade condicional, ora recorrida, foi proferia em 18.02.2005.
O recorrente junta uma declaração (junta a fls. 190) subscrita pela Coordenadora da Equipa de Reinserção Social, datada de 11.03.2005, que contem dados já existentes à dada da decisão, não ponderados na decisão e omitidos pelo citado relatório.
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5. Do resumo efectuado resulta que o ultimo acto concreto de avaliação ou de contacto com o arguido e o seu modo de vida remonta a 30.10.2002. Não havendo, a partir daí, informação ou dados sobre a evolução da personalidade do arguido até ao momento em que é proferida a decisão de revogação da liberdade condicional, em 18.02.2005.
É certo que o relatório refere que houve um acompanhamento “lateral”. Mas nenhum facto ou informação relevante é aduzida com base nesse referido acompanhamento “lateral”.
Ou seja a decisão de revogação da liberdade condicional foi proferida em 18.02.2005. Mas teve por base um relatório sobre a situação do arguido, relevante para a decisão a tomar, reportado a final de 2002.
Por outro lado o recorrente, para prova da sua alegação de que o relatório em que assentou a decisão se encontrava desactualizado, juntou a declaração subscrita pela Coordenadora da Equipa de Reinserção Social, datada de 11.03.2005 da qual consta designadamente:
««- Reside (o arguido) sozinho … visita aos pais diariamente prestando-lhes apoio na doença destes (diabetes e Parquinson); - É portador de HIV, frequentando regularmente as Consultas, encontrando-se medicado…; - Aufere Pensão de invalidez e subsídio de HIV, recebe ainda apoio social da Caritas …; -Encontra-se abstinente há cerca de 9 meses, integra um Programa de Substituição de Opiácios…; - Ao momento não é visto, pelos Técnicos deste Instituto como frequentando indivíduos e locais conotados com as problemáticas aditivas»»
De onde resulta que esta declaração contradiz manifestamente o relatório em que assentou a decisão – perfeitamente desactualizado em conformidade com a informação que dele mesmo consta - evidenciando factos já existentes á data da decisão e que nela não puderam ser ponderados, porque não produzida prova pertinente, reportada à época da decisão.
Mal se compreendendo aliás como pôde o IRS juntar, em 11.01.2005 um relatório e logo em 11.03.2005, subscreve uma declaração que contem informação já então existente e (portanto) disponível que contradiz aquele relatório.
O que confirma a alegação do recorrente que a decisão não procedeu à avaliação da situação então existente.
É certo que a prova devia ter sido carreada para os autos antes da decisão. Mas o recorrente requereu precisamente a realização de relatório actualizado para que se pudesse proceder a uma correcta avaliação da necessidade de revogar a liberdade condicional. Que como se viu não foi realizado, apesar de requerido.
Resulta assim da conjugação do mencionado relatório com a decisão e o teor explícito do relatório em que assentou, que teve por fundamento um meio de prova desactualizado no que concerne à personalidade do arguido e perspectivas de reintegração ou da necessidade da revogação da liberdade condicional.
Sendo este precisamente um dos fundamentos do recurso, que resulta da simples análise do Relatório que serviu de fundamento próximo à decisão.

Acresce que na decisão recorrida não existe, tão-pouco, qualquer referência à suspensão/extinção da pena imposta pelo crime praticado durante a liberdade condicional ou à sua revogação.
Sendo certo que, se pelo crime praticado durante o período de liberdade condicional, o arguido mereceu, da parte do tribunal que o julgou por esse crime, o juízo de prognose favorável de que a censura do facto e ameaça da pena eram suficientes para satisfazer as finalidades da pena – em conformidade com o disposto no art. 50º do CP e finalidades da pena definidas pelo art. 40º.
Sem que a decisão ora recorrida tenha abordado ou afastado tal juízo, posterior ao da concessão da liberdade condicional e formulado em julgamento, com base na imediação da prova.
Sendo certo, por outro lado, que a revogação da suspensão tem pressupostos coincidentes com os da revogação da liberdade condicional, por remissão do art. 64º do CP.
Postula o art. 56º, nº 1 alínea b) do código penal, que “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado … cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
Regime este que é aplicável à revogação da liberdade condicional, nos termos do disposto nos n.º 1 do art. 64º do mesmo código.
Remetendo este artigo 64º n.º1 ainda para o art. 57º (relativo à revogação da suspensão da pena) que postula: se findo o período da suspensão se encontrar pendente processo por crime que possa determinar a sua revogação ou incidente por falta de cumprimento dos deveres, das regras de conduta ou do plano de readaptação, a pena só é declarada extinta quando o processo ou o incidente findarem e não houver lugar à revogação ou à prossecução do período de suspensão.
Ora se a pena só é declarada extinta, depois de verificado que não houve lugar à revogação da suspensão, por identidade de razão a liberdade condicional só deverá ser revogada depois de verificado que se mantêm os pressupostos da suspensão da pena previamente decretada e que funciona como “questão prejudicial” da revogação.
Ainda que a decisão proferida no processo onde foi julgada a prática do novo crime não constituísse caso julgado nos presentes autos, a decisão de revogação da liberdade condicional não pode ignorar o juízo que lhe está subjacente, por assentar em pressupostos idênticos aos da decisão que lhe incumbe proferir.
O que sempre obrigava a um especial dever de fundamentação, para afastar, no seu caso, tal juízo – para mais sendo posterior, com base na oralidade/imediação.
Impondo-se a produção de prova sobre o estado de socialização do arguido actualizada face ao teor do relatório junto para o efeito.
Além do mais a liberdade condicional foi concedida pelo período decorrente até 5 de Fevereiro de 2003.
E a decisão ora recorrida que a revogou foi proferida apenas em 18.02.2005.
Ou seja, a liberdade condicional foi revogada dois anos após ter terminado o período pelo qual tinha sido concedida. E um ano e 3 meses depois da sentença condenatória pelo crime que determinou a revogação ter siso suspensa na sua execução (sentença de 22.11.2003), sem se averiguar se foi revogada ou se mantinham os pressupostos de tal suspensão, cuja revogação assenta em pressupostos idênticos aos da revogação da liberdade condicional.
Circunstância que impunha, com maior acuidade, uma investigação/apreciação sobre a personalidade do arguido e a sua socialização referida ao momento da decisão.
Ora a decisão deve assentar na situação fáctica existente ao tempo em que é encerrada a discussão dos respectivos pressupostos. Em conformidade com o princípio geral do processo de que a decisão do tribunal de 1ª instância deve reportar-se à situação existente à data do encerramento da audiência – cfr. o disposto no art. 663º, n.º1 do CPC, de aplicação subsidiária, no caso, nos termos dos artigos 18º e 136º do DL 783/76 que estabelece a Orgânica dos TEP.
No mesmo sentido aponta o disposto nos artigos 369º e 371º do CPP, no que concerne especificamente à determinação da medida da pena, quando estabelecem que o tribunal, mesmo depois de encerrada a discussão, deve ordenar a produção da prova necessária para o efeito, incluindo a elaboração de relatório social ou a respectiva actualização.
Precisamente para que a decisão proceda a uma criteriosa apreciação da personalidade do arguido no momento mais recente que possa ser atendível.
Assim, a decisão em causa, resultando do próprio relatório que lhe serviu de fundamento, que o ultimo contacto com o arguido ocorrera em Fevereiro de 2003 e que avaliação subjacente ao relatório era a do “relatório de 30.10.2002”, constado ainda dos autos que a pena aplicada ao arguido por factos ocorridos durante o período da liberdade condicional foi declarada suspensa na sua execução, sem ter apurado se foi revogada ou ocorrerem factos susceptíveis de alterar o juízo de prognose favorável subjacente, omitiu a realização de diligência essencial (relatório actualizado) para a decisão a proferir, que por isso não pode traduzir o estado de coisas já então existente.
E a falta de diligência essencial para o apuramento dos factos constitui nulidade, nos termos do art. 120º, al. d) do CPP.
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7. Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida e determinando-se a sua substituição por outra que determine a realização, pelo IRS, de inquérito actualizado (devendo esclarecer as razões da desconformidade do relatório de 11.01.2005 com a Declaração de 11.03.2005), sobre a situação do arguido no que concerne à sua integração social, doença, afastamento drogas, recebimento de subsídios (a agressividade do arguido radicava na exigência de subsídios aos técnicos do IRS, que é reconhecida pela eventual concessão) e outros factos que apontem para a necessidade da revogação da liberdade condicional, tendo presente o tempo decorrido desde a concessão da liberdade condicional e o juízo inerente à suspensão da execução da pena decretada pelo tribunal que julgou o crime praticado durante o período de liberdade condicional. ------------------------------
Sem custas.