Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3082/09.6PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: REVISTA
FURTO QUALIFICADO
Data do Acordão: 03/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 4º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 174º E 251º, DO C. PROC. PENAL E 204º, N.º 1, AL. B), DO C. PENAL
Sumário: 1. As revistas podem ser efectuadas por órgão de polícia criminal, sem prévia autorização da autoridade judiciária competente, quer como meio de obtenção de prova, no âmbito do disposto no art.º 174º, quer como medida cautelar e de polícia, no âmbito do disposto no art.º 251º, ambos do C. Proc. Penal.

2. O novo termo “colocada” constante da al. b), do n.º 1, do art.º 204º, do C. Penal, resultante da alteração a este normativo, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, significa a qualificação do furto em veículo de coisa móvel alheia aí deixada, ainda que não para ser aí transportada.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

           

1. No processo comum singular n.º 3082/09.6PCCBR do 4º Juízo Criminal de Coimbra, o arguido PS..., devidamente identificado nos autos, por sentença datada de 2 de Novembro de 2010, foi condenado,

· como autor material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º/1 e 204º/1 b) do CP, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de € 6, o que perfaz a quantia de € 2100.

            2. Inconformado, o arguido recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

            «1. EXISTE A FLS.4 UM ACTO PROCESSUAL INOMINADO, TRATANDO-SE TOAVIA. PELOS SEUS CONTORNOS, DE UMA REVISTA.

2. TAL REVISTA É NULA, UMA VEZ QUE:

3. A) SÓ SE PODE PROCEDER A REVISTAS A SUSPEITOS, E O ARGUIDO NÃO PODERIA SEQUER SER SUSPEITO (A QUEIXA DO CRIME DOS AUTOS -22:49H E POSTERIOR A DETENÇÃO-22:30H). NA AUSÊNCIA DE QUEIXA, só PODERIA O OPC IDENTIFICAR O SUSPEITO (ART 250 DO CP).

4. B) E UMA VEZ QUE NÃO VEM DOCUMENTADA/FUNDAMENTADA NOS AUTOS COM QUALQUER FUGA IMINENTE; NEM SE PODIA PROCEDER À DETENÇÃO DO ARGUIDO.

5. DE FACTO TAL DETENÇÃO, NÃO FOI EFECTUADA NEM EM FLAGRANTE DELITO (NÃO FORA VISTO A COMETER CRIME PELO 0PC) NEM FORA DE FLAGRANTE DELITO (NÃO ESTAVA NO LOCAL DO CRIME), PELO QUE É NULA - O QUE SE ARGUIU E ARGUI. É INSUFICIENTE A CIRCUNSTÂNCIA DE O ARGUIDO SE ENCONTRAR PRÓXIMO (QUÃO PRÓXIMO?) DO LOCAL.

6. POR OUTRO LADO, A ILEGAL ABORDAGEM E FORÇA PERSUASIVA DA POLICIA FORA ATENTATÕRIA DOS SEUS DIREITOS E É SUFICIENTEMENTE RESTRITIVA E CONFORMADORA DA SUA ACTUAÇÃO POSTERIOR/CONFISSÃO PERANTE OPC, QUE DE OUTRA FORMA NÃO TERIA TIDO.

7. A CONFISSÃO NÃO PODE SER VALORADA, COMO FOI, POR SER ATENTATÓRIA DO DIREITO SILÉNCIO DO ARGUIDO (ASSIM CONSTITUIDO ÀS 00.04) E POR SE BASEAR NO TESTEMUNHO DE OUVIR DIZER DE CONVERSAS INFORMAIS (Acórdão STJ DE 15-02-2007, IN.WWW.DGSI.PT).

8. EXISTE NESTE PARTICULAR CONTRADIÇÃO ENTRE A FUNDAMENTAÇÃO E A DECISÃO EM APREÇO. VISTA COMO UM TODO: POR UM LADO, INDEFERE-SE ARGUIDA NULIDADE DA REVISTA, COM BASE, ALÉM DO MAIS, EM QUE “OS FACTOS DESCRITOS APONTAM PARA UMA ENTREGA VOLUNTÁRIA DOS OBJECTOS POR PARTE DO ARGUIDO” E UMA CONFISSÃO: POR OUTRO LADO, JÁ QUANTO À DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA, BASEIA-SE TAMBÉM NO FACTOR DE OS OBJECTOS HAVEREM SIDO RECUPERADOS, “EMBORA NÃO O TENDO SIDO POR ACTO VOLUNTÁRIO DO ARGUIDO”’ (SIC).

9. OU BEM QUE O ARGUIDO ENTREGOU VOLUNTARIAMENTE OS BENS SEM QUALQUER COACÇÃO (E ASSIM TEVE UM ACTO EFECTIVAMENTE VOLUNTARIO), OU BEM QUE SÓ ENTREGOU TAIS BENS APÓS UMA CONFISSÃO FORÇADA- FORÇADA NO SENTIDO DE QUE ESTE HAVIA PRIMEIRAMENTE DITO QUE TAIS BENS LHE PERTENCIAM E O 01°C INSISTIU NO CONTRÁRIO (O QUE FAZ PREVER O ALCANCE DA ILEGALIDADE DA ACTUAÇÃO DA POLICIA). NO PRIMEIRO CASO, A MEDIDA DA PENA PODERIA TER SIDO MAIS BENEVOLENTE. NO SEGUNDO, IMPUNHA-SE A ABSOLVIÇÃO, POR TAL ACTUAÇÃO DE TRATAR DE MÉTODO PROIBIDO DE PROVA.

10. POR OUTRO LADO, A REVISTA NÃO FORA VALIDADA PELO MMO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL, NULIDADE QUE SE ARGUI E ARGUIU.

11. EXISTE AINDA OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUANTO A ESSA ALEGADA NULIDADE (A MMA JUIZ A QUO I.IMITA A SUA DECISÃO À DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÂO PREVIA, NADA DIZ QUANTO À VALIDAÇÃO), PELO QUE A SENTENÇA É NULA, NOS TERMOS DO ARTIGO 379º, N°1 AL B) DO CPP.

SUBSIDIARIAMENTE:

12. Caso assim se não entenda, a medida da pena do arguido deveria ter sido pautada pela moldura respeitante ao crime de furto simples e não pela moldura penal da qualificação, uma vez que não é de aplicar a alínea b) do artigo 204º do CP (ou outra) aos factos em apreço.

13. De facto, «a qualificativa do artigo 204º, n.º 1, alínea b) do CP apenas abrange as coisas móveis que se encontram numa relação de transporte com um veículo automóvel, e não noutra conexão com este, como sucede quando o objecto foi deixado no veículo» (Acórdão do STJ, datado de 8 de Maio de 2003 e publicado na CJ, Ano XI-2003, Tomo II, pág. 177), o que foi manifestamente o caso.

14. Foram violados os artigos 1º, n.º 1, 203º e 204º, n.º 1, alínea b), todos do CP, os artigos 126º, 338º e 356º do CPP e 32º da CRP.

Nestes termos e nos melhores de direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão que indefere as nulidades arguidas, com todas as consequências legais quanto à prova (proibida) existente nos autos.

Caso assim se não entenda, por falta de validação do Juiz de Instrução da revista operada, se declare a nulidade da revista, com todas as consequências legais;

Declarar-se a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Só subsidiariamente revogar-se a decisão que condena o arguido por um crime de furto qualificado, substituindo-a por outra, face aos factos provados, que o puna pela moldura respeitante ao crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do CP».

            3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando, a final, e em tom conclusivo, que:

             «1. A douta sentença recorrida fez uma correcta subsunção jurídica e aplicação do direito.

2. Designadamente, no que concerne à alegada nulidade da detenção, revista e apreensão de bens ao arguido, entendemos que a mesma não se mostra verificada.

3. Também no que diz respeito à qualificativa da alínea b), do n.° 1 do artigo
204.°, do Código Penal, é para nós inequívoco que a mesma se verifica.

4. Assim sendo, não se vislumbram motivos que justifiquem a alteração da douta sentença recorrida.

5. Termos em que deverá, por isso, manter-se a mesma, negando-se, em consequência, provimento ao recurso».

           

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se, a fls. 262-263, no sentido de que o recurso não merece provimento, aderindo, no essencial, à fundamentação do MP de 1ª instância.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

           

1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, as questões a decidir consistem em saber:

           

- se existe contradição entre a fundamentação e a decisão

- se a revista efectuada ao arguido pelo OPC é nula

- se houve omissão de pronúncia pelo tribunal recorrido

- se o furto praticado pode ser qualificado à luz do artigo 204º, n.º 1, alínea b) do CP.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

a. No dia 29 de Novembro de 2009, cerca das 22.00 horas, o arguido decidiu abrir o veículo automóvel de marca “Rover”, de matrícula …, pertencente CF..., que se encontrava estacionado na Rua A... ..., em C..., a fim de fazer seus os objectos que ali se encontrassem.

b. Em execução de tal propósito, o arguido PS...aproximou-se desse veículo e com o auxílio de um fio com um pedaço de porcelana atada numa extremidade, partiu o vidro da porta traseira do lado esquerdo.

c. Depois do seu interior retirou uma mochila preta, da marca Puma, que continha a uma máquina digital, da marca “Sonny”, modelo DCR, respectivo tripé, carregadores e cabos, no valor aproximado de € 1.000,00.

d. Colocou então a mochila às costas e abandonou o local a pé, em direcção à Avenida G..., onde, pouco depois, veio a ser interceptado pela PSP, ainda com todo o material subtraído em seu poder.

e. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de fazer sua a mochila, bem como a máquina de filmar digital e os restantes componentes, que se encontravam dentro do referido veículo automóvel, bem sabendo que não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do seu legítimo dono.

f. Bem sabia o arguido que aqueles objectos não lhe pertenciam e que tal conduta lhe estava vedada por lei.

g. O arguido foi condenado:

· Em 24.09.2009, por sentença transitada em julgado em 30.10.2009, pela prática de um crime de furto qualificado, ocorrido em 23.09.2009, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;

· Em 29.10.2009, por sentença transitada em julgado em 04.02.2010, pela prática de um crime de furto simples, praticado em 24.09.2009, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;

· Em 27.10.2009, por acórdão transitado em julgado em 29.03.2010, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, ocorrido em 17.02.2007, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 6,00».

            2.2. Inexistindo factos não provados, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

            «Os factos dados como provados assentam numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto.

            Valoramos, assim, e desde logo as declarações do agente da PSP AM..., que, de forma isenta e credível, explicou que no dia a que se reportam os autos, cerca das 22.00 horas, se encontrava ao serviço, quando foi alertado que tinha ocorrido um assalto a um veículo, com a destruição do vidro. Dirigiram-se ao local, tendo encontrado o arguido na Avenida G..., que já era referenciado pela polícia pela prática de assaltos semelhantes. Abordaram-no e os objectos furtados estavam na sua posse.

            A testemunha CF..., proprietário dos bens furtados, explicou que quando chegou ao seu carro, já lá estava a polícia, que havia recuperado os seus bens. Explicou também que o seu carro tinha o vidro partido e que os bens recuperados eram seus, e o valor dos mesmos (a máquina valeria cerca dos € 900,00 ao que acresce o valor dos demais objectos). 

            Valoramos, ainda, os autos de apreensão de fls. 33 e 34 (referente aos bens do queixoso) e de fls. 40, com fotografias de fls. 41 e 42 (objectos encontrados na posse do arguido e que, como é consabido, são usados na prática de furtos).

            Assim, tendo o arguido sido interceptado pela PSP, logo após a comunicação a este organismo de um assalto, com os objectos que se encontravam no interior do veículo assaltado, concluímos que só ele podia ter sido o autor do furto.

            Quanto aos factos relatados em V e VI, a sua prova resulta da conjugação dos restantes factos dados como provados. Como se refere no Ac. da R.P. de 23.02.93, in B.M.J. 324/620 “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.

            As condenações criminais do arguido estão provadas pelo certificado de registo criminal de fls. 149 a 152».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. DA MATÉRIA DE FACTO

O arguido não impugna a matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, mas alude a um dos vícios do artigo 410º do mesmo diploma.

É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem:

- primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada;

- e, depois e se for o caso, dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.

Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.

A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.

A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.

Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.

Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).

Ora, analisando a decisão recorrido, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2, alínea b) do CPP, na medida em que inexiste a alegada contradição entre a fundamentação e a decisão.

De facto, o tribunal entendeu que tinha havido uma entrega voluntária do bem furtado ao OPC (razão pela qual entendeu não ter existido um efectiva «revista»). Contudo, em sede de determinação da medida da pena, pondera, contra o arguido, o facto de a recuperação dos objectos furtados não ter sido levada a cabo por um seu acto voluntário.

A contradição é meramente aparente.

Na realidade, uma coisa é considerar que o arguido, pressionado pela presença do OPC, ter decidido entregar os bens, numa altura em que sobre ele recaia uma mais do que fundada suspeita. Outra, bem diferente, é ter-se considerado que seria bem mais atenuante – e não nos esqueçamos que aqui estamos em sede de dosimetria da pena - o facto de o arguido, longe da presença da Polícia, e por vontade própria, ou seja, arrependido de ter cometido o acto ilícito em causa, ter decidido entregar os bens furtados ao OPC ou ao queixoso (após a sua consumação).

No fundo, valoram-se perspectivas diversas de uma mesma realidade:

- não é revista pois o arguido acedeu a mostrar o que levava consigo;

- a recuperação do bem não pode ser totalmente assacada a uma vontade expressa do arguido na medida em que só o mostrou à Polícia por se ver pressionado e descoberto.

Como tal, inexiste a alegada contradição (conclusões 8 e 9).

Inexistindo qualquer outra impugnação factual, só nos resta validar o acervo factual constante da sentença recorrida.

3.2. DA REVISTA

Ao requerimento de fls 160-163, entrado em juízo pelo arguido já após o início da audiência de julgamento, respondeu assim o tribunal recorrido, como QUESTÃO PRÉVIA decidida na sentença dos autos:

            Questão prévia

            Veio o arguido alegar que foi efectuada uma revista e uma apreensão de bens no âmbito dos presentes autos que são ilegais.

            Para tanto defendeu o arguido que no momento em que foi efectuada a revista não existia ainda qualquer denúncia quanto à prática do crime de furto, pelo que não existiam indícios da prática de um crime. Só podem ser efectuadas revistas sumárias, sem prévia autorização da autoridade judiciária, quando exista um suspeito, esteja em fuga iminente ou haja sido detido.

            Defende, então, o arguido que, no caso em análise, não ocorre nenhuma destas circunstâncias, pelo que a revista e apreensão de objectos são nulas.

            Caso assim não se entenda, a revista não foi ordenada por juiz de instrução criminal, pelo que sempre seria nula.

            O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes da douta promoção de fls. 167 e 168, pugnando pelo indeferimento do peticionado, referindo, entre o demais, que, no seu entender, não chegou a ser efectuada qualquer revista, já que foi o arguido que confessou ter os objectos na sua posse e procedeu à entrega dos bens.

            Cumpre apreciar e decidir.

            Refere o artigo 174º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista”.

            Nos termos do artigo 174º, n.º 3 do Código de Processo Penal, as revistas são autorizadas ou ordenadas por despacho emitido pela autoridade judiciária competente.

            Nas circunstâncias previstas no n.º 5 do citado artigo 174º, os órgãos de polícia criminal podem efectuar revistas sem que tal ordem seja emitida pela autoridade judiciária.

            Antes de analisar estes artigos, voltemos ao caso dos autos.

            Da análise do expediente elaborado pela PSP não consta que tenha sido efectuada qualquer revista. Com efeito, consta de tal expediente (cfr. fls. 4) que o arguido foi abordado pela polícia tendo sido questionado quanto à proveniência da mochila que tinha em seu poder, tendo o mesmo confessado que a tinha furtado, indicando o local onde tal ocorrera. No seguimento desta confissão, os agentes apreenderam a mochila, com diversos objectos no seu interior (certamente ao abrigo do disposto no artigo 178º do Código de Processo Penal), que posteriormente vieram a ser entregues ao seu proprietário.

            Temos, assim, que não foi efectuada qualquer revista ao arguido, que possa estar ferida de nulidade e que afecte a própria apreensão. Com efeito, e como já dissemos, da leitura do expediente elaborado consta que o arguido confessou um crime perante a autoridade policial e esta apreendeu os bens objecto de tal crime.

            Ainda que assim não se entendesse, sempre seria de concluir que a revista era válida, atento o disposto no artigo 174º, n.º 5, alínea c) do Código de Processo Penal, pois a PSP deteve o arguido em flagrante delito, pois “reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime (...) encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar” – cfr. artigo 256º, n.º 2 do Código de Processo Penal. O agente de autoridade AM..., ouvido em sede de julgamento, explicou que tiveram a notícia do crime, via rádio, e que se encontravam perto do local onde os factos tinham ocorrido. Como viram o arguido no local e já o conheciam pela prática de crimes semelhantes, abordaram-no acabando este por confessar o crime, tendo na sua posse os objectos de que se apoderara.

            Verifica-se, assim, que era legitima a revista (sendo certo que em nosso entender ela não foi realizada, sendo que os factos descritos apontam para uma entrega voluntária dos objectos por parte do arguido), por ter sido efectuada em flagrante delito, sendo inequívoco que o crime de furto é punido com pena de prisão – artigo 203º e 204º do Código de Processo Penal.

            Improcede, assim, na íntegra o requerimento apresentado pelo arguido.

            Notifique.

É desse segmento que o arguido vem também recorrer, entendendo que foi produzida uma prova nula (a revista) durante o inquérito, o que pode inquinar esta sentença, apesar de se considerarem como provados os factos narrados na decisão recorrida na medida que a nulidade da prova proibida prejudica a sentença se a prova proibida tiver sido utilizada na fundamentação da decisão (a sentença é nula, nos termos do artigo 122º/1 do CPP, se fundada em provas nulas, ou seja, em provas insanavelmente nulas ou provas cuja nulidade é sanável, mas não deva considerar-se ainda sanada).

Vejamos.

Consta de fls 2 que foi feita uma denúncia por CF..., proprietários dos bens furtados, a qual foi apresentada no dia 29/11/2009, pelas «22h46m», contra desconhecidos.

Tal auto de denúncia foi redigido pelas «22h49m» desse dia por VS..., agente da PSP.

A fls 4, surge um aditamento a tal auto, agora redigido por AM..., agente da PSP.

Aí se deixou escrito que:

«Por cerca das 22h30m, quando me encontrava de serviço normal de patrulha ter interceptado o suspeito PS…, o qual tinha na sua posse uma mochila, a qual continha no seu interior uma máquina de filmar digital. Ao ser-lhe perguntado a proveniência, o mesmo disse ser o proprietário.

Ao circular pela área, o mesmo acabou por confessar que tinha feito um furto no interior de uma viatura estacionada na Rua A... ..., junto à M. Nesse local, constatei que a viatura marca Rover, de matrícula …, tinha o vidro da porta traseira, lado direito partido, sendo confirmado pelo suspeito ser aquela viatura.

Contactado o proprietário, o mesmo apresentou a denúncia, foi-lhe entregue os itens furtados, conforme termo de entrega, com registo n.º 801/09PFCBR».

Surge a fls 5 o auto de apreensão da mochila e da máquina de filmar, o qual tem o horário das 23h13m.

O termo de entrega dos bens furtados à pessoa do CF... surge com o horário das 23h21m do dia 29/11.

 Foi o PS...constituído como arguido pelas 00h04m do dia 30/11/2009 (fls 16).

Consta de fls 1 e 21 a validação pelo MP das apreensões feitas.

Aqui chegados, há que dizer que os horários não batem certo – de facto, pela leitura do auto de denúncia, depreende-se que o mesmo foi feito antes da intercepção do PS...pelos guardas da PSP, não se compreendendo o teor de fls 4 quando se diz que só após a «confissão» do PS...como sendo o autor do furto é que foi feita a denúncia pelo proprietário, tanto mais que é claro que quando a queixa é feita ela é formulada contra desconhecidos (se ele tivesse sabido após a intercepção do Paulo, com toda a certeza que falaria nesse suspeito).

Lida a sentença e o rol de factos provados, apura-se que:

a. No dia 29 de Novembro de 2009, cerca das 22.00 horas, o arguido decidiu abrir o veículo automóvel de marca “Rover”, de matrícula …, pertencente CF..., que se encontrava estacionado na Rua A... ..., em C..., a fim de fazer seus os objectos que ali se encontrassem.

b. Em execução de tal propósito, o arguido PS...aproximou-se desse veículo e com o auxílio de um fio com um pedaço de porcelana atada numa extremidade, partiu o vidro da porta traseira do lado esquerdo.

c. Depois do seu interior retirou uma mochila preta, da marca Puma, que continha a uma máquina digital, da marca “Sonny”, modelo DCR, respectivo tripé, carregadores e cabos, no valor aproximado de € 1.000,00.

d. Colocou então a mochila às costas e abandonou o local a pé, em direcção à Avenida G..., onde, pouco depois, veio a ser interceptado pela PSP, ainda com todo o material subtraído em seu poder.

Ora, o assalto foi feito às 22 horas, tendo pouco tempo depois sido o PS...interceptado pela PSP.

Quanto tempo depois, eis a questão.

O aditamento de fls 4 fala em «cerca das 22h30m» como sendo a hora da intercepção do PS...pelo guarda AM....

Lida a motivação de facto da decisão recorrida, retira-se que foram valoradas «as declarações do agente da PSP AM..., que, de forma isenta e credível, explicou que no dia a que se reportam os autos, cerca das 22.00 horas, se encontrava ao serviço, quando foi alertado que tinha ocorrido um assalto a um veículo, com a destruição do vidro. Dirigiram-se ao local, tendo encontrado o arguido na Avenida G...[2], que já era referenciado pela polícia pela prática de assaltos semelhantes. Abordaram-no e os objectos furtados estavam na sua posse».

Ora esta versão não coincide com a existente no auto de denúncia e correspondente aditamento.

Mas veja-se que o tribunal recorrido não teve como fonte directa e imediata de fundamentação o auto de denúncia ou o aditamento de fls 4 – fala apenas nas declarações do guarda AM..., do lesado CF..., nos autos de apreensão de fls 33, 34 e 40 e nas fotografias de fls 41 e 42.

Como tal, foi a prova testemunhal que condenou este arguido e não o auto de denúncia ou o seu aditamento, valendo o que o guarda AM... disse em julgamento, não obstante os documentos poderem não confirmar inteiramente essa prova viva feita em julgamento (e é crível que os guardas da PSP se tenham enganado nas horas exactas quando elaboram os respectivos autos).

Foi nessas declarações que a Exmª Juíza a quo se fundamentou para dar como provada a prova condenatória deste arguido.

Significa isto que se acredita que a intercepção do arguido só foi feita após o guarda AM... ter sido informado[3] que tinha ocorrido um assalto a um carro na Rua A... ... – dirigiu-se então tal agente para o local, tendo encontrado o PS...na G..., repete-se, muito próxima artéria do locus delicti, o qual foi abordado pelo facto de já ser suspeito de outros furtos ocorridos nas imediações.

E se assim é, não custa acreditar que não houve, de facto, uma efectiva revista, à luz do artigo 174º, n.º 1 do CPP - «quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quais objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada REVISTA».

Em regra, as revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária competente (art. 174°, nº 3, do C. Processo Penal).

Porém, os órgãos de polícia criminal podem efectuar revistas e buscas sem aquela autorização ou ordem, nos casos, a) de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoas, b) em que o visado consinta desde que o consentimento fique, por qualquer forma, documentado, c) e aquando de detenção em flagrante delito por crime a que corresponda pena de prisão (nº 5 do art. 174°, do C. Processo Penal).

Nos casos previstos em a), a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada a fim de a validar, ou não (n° 6 do art. 174°, do C. Processo Penal).

Diga-se ainda que no âmbito das medidas cautelares e de polícia - que não são actos processuais mas de polícia, embora possam ser anteriores ou contemporâneos do processo (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 63 e ss.) aos órgãos de polícia criminal compete, mesmo antes de qualquer ordem da autoridade judiciária para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova designadamente, compete-lhes proceder a exames dos vestígios do crime e assegurar a sua manutenção, colher as informações que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição, e proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas (art. 249°, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).

Já o art. 251° do C. Processo Penal disciplina as revistas no âmbito das medidas cautelares e de polícia. Assim, também aqui os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autoridade judiciária, à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objectos relacionados com o crime, susceptíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se (alínea a), do nº 1, do art. 251°, do C. Processo Penal) e ainda nos casos em que as pessoas na qualidade de suspeitos, devam ser conduzidos a posto policial, sempre que houver razões para crer que ocultam armas ou outros objectos com os quais possam praticar actos de violência, sendo nestes casos, correspondentemente aplicável o disposto no nº 6 do art. 174°, do C. Processo Penal.
A nossa situação dos autos é muito paralela à narrada no Acórdão desta Relação de 14/10/2009 (Pº 63/09.3PECBR.C1):
«Dos autos resulta que um dos agentes policiais em patrulha, conhecendo o arguido e os seus antecedentes policiais e vendo-o com um saco isotérmico que parecia conter um objecto pesado, abordou-o num café perguntando-lhe o que levava consigo e o arguido, voluntariamente, mostrou-lhe um computador portátil no interior daquele saco.
Até esse momento não ocorreu qualquer revista ao arguido. A revista é posterior e teve como resultado a apreensão de objectos diferentes.
Não há, pois, qualquer nexo naturalístico ou jurídico entre a revista e o computador. Este surge antes daquela.
Naturalmente que o arguido poderia ter recusado exibir o que continha no saco e acompanhar os agentes à esquadra policial, em função da previsão do nº 2 do art. 250º do CPP.
A partir do momento em que o arguido exibe o computador estão verificados os pressupostos previstos nos artigos 174º, nº 1 e 249º do CPP: há indícios de que o arguido ocultava objecto relacionado com um crime (um computador portátil no interior de um saco isotérmico (!!!) com os antecedentes conhecidos).
Assim, os dados de facto existentes no processo são contrários aos alegados pelo recorrente e não foi praticada qualquer nulidade na apreensão do computador ao arguido».

Deu-se como apurado então que a PSP só se aproximou do arguido pelo facto de já ter tido conhecimento de que tinha havido um assalto na zona.

Vêem-no com uma mochila que se torna suspeita pelo facto de o arguido ser conhecido como usual praticante de crimes semelhantes (sem que isto tenha de ser um estigma sobre ele, mas factos são factos, e suspeitas criam-se com base em ilações e suposições que muitas vezes têm de partir de bases voláteis e meramente intelectuais) – cfr. CRC do arguido e certidões juntas aos autos.

No decorrer da conversa havida entre o arguido e o OPC, o arguido acaba por lhes dizer que tinha sido ele o assaltante do automóvel na Rua A... ..., acercando-se todos do carro danificado (não havendo que classificar esta abordagem como sendo uma «conversa informal»[4], proibida ao abrigo do artigo 129º do CPP).

Logo ali se apreenderam os objectos em causa – mochila e máquina de filmar -, ao abrigo do artigo 178º do CPP, bens esses que mostrados voluntariamente pelo suspeito e que foram depois legalmente entregues ao seu proprietário.

Como tal, estamos de acordo em que não foi feita prova de qualquer revista que até tivesse de ser validada por despacho judicial (as apreensões foram validadas, essas sim).

Contudo, e mesmo a considerar-se estar perante uma revista, haverá que opinar o seguinte:

1º- não se pode falar em revista validada pela letra da alínea c) do artigo 174º, n.º 5 do CPP, na medida em que aqui o arguido não foi sequer detido;

2º- a existir nulidade, ela já deveria ter sido arguida, no prazo do artigo 120º, n.º 3, alínea c) – nulidade respeitante a inquérito – do CPP, ou seja, até 5 dias após a notificação do despacho de acusação, não o tendo sido feito em tempo útil (foi-o durante o julgamento)[5].

Inexiste nulidade de prova, pois então; mas a ter existido, a mesma está sanada pelo decurso do tempo.

Improcedem, assim, as conclusões 1 a 7.

3.3. DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA

Entende o arguido que:

- A REVISTA NÃO FOI VALIDADA PELO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL, NULIDADE QUE SE ARGUI E ARGUIU.

- EXISTE AINDA OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUANTO A ESSA ALEGADA NULIDADE (A Mª JUIZ A QUO LIMITA A SUA DECISÃO À DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÂO PREVIA, NADA DIZENDO QUANTO À VALIDAÇÃO),

motivo pela qual defende que a sentença é nula, nos termos do artigo 379/1 b) do CPP.

Mas não lhe assiste razão.

Na realidade, a Exmª Juíza «a quo» não tinha sequer que se pronunciar sobre esta parte do requerimento de fls 160 a 163, atenta a lógica da sua decisão sobre tal alegada «revista».

De facto, se não se considera estar perante uma efectiva revista – e é esse o seu primeiro e decisivo argumento -, não há que abordar a questão da sua validação judicial (note-se que, na sentença, e em sede de resolução de questão prévia, a julgadora apenas alude à hipótese subsidiária de se estar perante uma revista – e mesmo assim, para entender que tal revista teria sido válida porque efectuada à luz do artigo 174º, n.º 5, alínea c) do CPP, situação em que nem sequer se exige validação judicial dessa revista – cfr. artigo 174º, n.º 6 «a contrario sensu»).

Sem mais, improcede esta argumentação (conclusões 10 e 11).

3.4. DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DA CONDUTA DO ARGUIDO

E foi bem condenado o arguido pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203º e 204º, n.º 1, alínea b) do CP?

Tal qualificação opera-se no caso em que alguém «furta coisa móvel alheia colocada ou transportada em veículo ou colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais».

Note-se que esta redacção da lei resulta da revisão do CP operada em 2007 (Lei 59/2007 de 4/9), tendo sido acrescentado no início da frase o «colocada».

Por esse motivo, somos defensores da tese segundo a qual a previsão qualificativa contida no art. 204º, nº. 1, b), do Código Penal, após as alterações introduzidas pela Lei nº. 59/2007, de 4/9, contém uma nova situação típica: furto de coisa móvel alheia colocada em veículo.

Pretendeu o legislador com tal alteração um alargamento do âmbito de protecção da norma em apreço - tutelando penalmente a conduta típica do furto de bens deixados no interior do veículo, tal como já resultava do art. 1º do DL nº. 44.939, de 27/3/1963 (entretanto revogado pelo art. 6º, nº. 2, do DL nº. 400/82, de 23/9, que aprovou a actual Código Penal).

É essa a razão pela qual não se pode agora defender, na senda da jurisprudência do STJ, erigida antes da revisão de 2007[6], que «A agravante qualificativa do artigo 204º, nº 1, alínea b), do Código Penal, se restringe às situações em que as coisas móveis se encontram numa relação de transporte com o veículo, não abrangendo, portanto, aquelas em que a coisa foi, simplesmente, deixada no seu interior».

Façamos um pouco de história.

E para isso recorramos ao douto Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2010, datado de 4/2/2010, que doutrinou que: «a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 204º do Código Penal, no segmento “transportada por passageiros utentes de transporte colectivo”, abrange as coisas que esses passageiros trazem consigo, constituam ou não bagagem»:

«(…)

Mas a norma da alínea b) do nº 1 do artigo 204º, se tem o seu fundamento histórico próximo na do nº 5 do artigo 426º do Código Penal de 1886, tem um campo de aplicação distinto. E a distinção não reside apenas, como já se acentuava no citado acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 1990, na deslocação da «mesma protecção legal da via para o meio de transporte», tendo antes criado, «com o inequívoco propósito de ampliar o âmbito de protecção das coisas móveis em transporte», novos casos de agravação.

Esse propósito legislativo parte da nova realidade social, em que o desenvolvimento que se operou ao nível dos meios de transporte, com a sua multiplicação e utilização massiva por parte das pessoas, deu lugar a novas vulnerabilidades e à correspondente necessidade de tutela acrescida para os bens que por aí transitam. Nestes novos tempos, não são apenas as coisas que estão a ser transportadas em veículo que estão numa situação de maior fragilidade, mas também as que os passageiros utentes dos meios de transporte colectivo trazem consigo.

De facto, como se nota no referido acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Fevereiro de 2008, “a normal aglomeração de gente e ambiente de confusão que tantas vezes se regista dentro dos meios de transporte ou nas estações, o desconhecimento e incerteza de muitos passageiros quanto à localização, o horário ou o concreto meio de transporte a escolher e, nas viagens longas, o cansaço inevitável que se apodera da generalidade dos passageiros são tudo factores que propiciam a delinquência contra as coisas transportadas pessoalmente pelos passageiros, nomeadamente por parte dos ‘carteiristas’, que se movem particularmente à vontade nestes ambientes”.

Segundo esse acórdão, “subjacente à previsão do artigo 204º, nº 1, al. b), do Código Penal (…) existe uma clara intenção, por parte do legislador, de garantir uma confiança generalizada nos transportes e comunicações, por meio de um reforço da tutela penal da segurança na sua utilização, e que se funda numa ideia de maior exposição ou vulnerabilidade das coisas transportadas ou depositadas à apropriação ilícita, quer porque elas não estão sob a guarda do seu proprietário ou possuidor, quer porque este último, embora podendo vigiá-las, está submetido a circunstâncias em que o exercício dessa vigilância pode ser perturbado ou seriamente reduzido”.

Também para o Prof. Faria Costa é nessa maior fragilidade que reside o fundamento da agravação:

“Pensamos que a razão de ser deste normativo se prende com uma menor vigilância exercida sobre as coisas nas circunstâncias descritas. Dir-se-ia que há uma maior fragilidade na guarda. Fragilidade essa resultante do entrecruzar de vários factores: a) rarefacção da atenção sobre as coisas na medida em que o centro da preocupação, não poucas vezes, é canalizado, justamente, para as preocupações do próprio acto de viajar; b) diminuição também da atenção sobre a guarda das coisas por mor do cansaço, da azáfama e da própria dispersão do ir em viagem; c) aumento, em geral, da tensão dispersiva; d) incremento da intensidade das acções contra o património, precisamente devido ao conhecimento das manifestas diminuições anteriormente delineadas. É, por conseguinte, o cruzar daquelas variáveis – diminuição das defesas e incremento dos ataques – que faz crescer, em raiz exponencial, o efeito de fragilidade na guarda das coisas transportadas segundo os parâmetros descritos na lei” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, página 59).

Como parece evidente, essa “maior fragilidade na guarda”, decorrente da “diminuição das defesas” e do “incremento dos ataques”, existe tanto em relação a uma pasta que um passageiro utente de um meio de transporte colectivo leva num autocarro, separada de si, pousada, por exemplo, num suporte para bagagens (o acórdão fundamento, como se viu, aceita que o furto de uma pasta, nessa situação, é qualificado pela circunstância em apreciação) como no que se refere à carteira que se encontra no interior da bolsa que traz a tiracolo ou num dos bolsos do vestuário, numa situação em que segue de pé, rodeado de várias outras pessoas, algumas em contacto físico consigo, devido ao elevado número de passageiros.

É por ser assim que aquele autor, depois de assim caracterizar a razão de ser da norma, ao delimitar o alcance dos conceitos “estação”, “gare” e “cais”, acaba por marcar posição no sentido do acórdão recorrido, considerando qualificado o furto por A da carteira de B, desde que ocorrido dentro de uma estação: “Imaginemos que A furta a B a carteira nas escadas que dão acesso à estação. Comete A um furto qualificado ratio materiae que se analisa? Cremos que não. As escadas são ainda lugares de acesso que não devem ser consideradas integrantes da própria noção de estação. E se tal facto tiver acontecido no átrio? Neste caso, a nossa resposta vai indesmentivelmente no sentido afirmativo” (ob. cit., página 61).

Note-se que a alínea b) do nº 1 do artigo 204º, na versão aplicada por ambos os acórdãos em confronto, a anterior à vigência da Lei nº 59/2007, contempla a subtracção de coisa móvel alheia em três situações distintas: «transportada em veículo», «colocada em lugar destinado ao depósito de objectos» e «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais». E esta última situação, como claramente decorre do uso da locução mesmo que, abrange quer o caso de subtracção de coisa transportada pelo passageiro dentro do meio de transporte quer o de subtracção de coisa transportada pelo passageiro na estação, gare ou cais. Ora, se, como decidiu o acórdão fundamento, na terceira situação coubesse apenas “o que se transporta”, a bagagem, ainda que “de mão”, como uma pasta, “mas sempre algo que seja exterior (…) ao seu detentor”, então teríamos de concluir pela completa inutilidade da inclusão na norma da previsão da subtracção de coisa transportada por passageiro dentro do meio de transporte, na medida em que a previsão dessa subtracção já constaria do segmento «transportada em veículo», e, em consequência, que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, quando devemos presumir exactamente o contrário, em obediência à regra do nº 3 do artigo 9º do Código Civil.

(…)

Como última nota sobre este ponto, a indicada alteração introduzida no texto da alínea b) do nº 1 do artigo 204º pela Lei nº 59/2007, não incidindo embora directamente sobre o segmento em análise, não deixa de constituir um dado que dá conforto à posição assumida no acórdão recorrido, na medida em que a extensão do âmbito de aplicação da norma à coisa «colocada» em veículo pode ser vista como a manifestação do propósito de conferir protecção acrescida, pela via da agravação, a todas as coisas que se encontrem em meio de transporte, colectivo ou não[7].

Deve, pois, concluir-se, como no acórdão recorrido, que essa norma, no segmento «transportada por passageiros utentes de transporte colectivo», abrange a coisa que o passageiro traz consigo e com a qual tem contacto físico, como a que transporta na mão, num bolso do vestuário, a tiracolo, ao pescoço ou à cintura».

Nesta linha de argumentação, lógico nos parece considerar que o novo termo «colocada» na alínea b) em causa só pode significar, de facto, a qualificação do furto em veículo de coisa móvel alheia aí deixada.

Quer isto significar que hoje na previsão de tal normativo estão previstas quatro – e já não três - hipóteses distintas quanto à coisa móvel apropriada, todas elas, por si só, constituindo circunstâncias qualificativas:

· A coisa móvel está - a que ali está para ser utilizada e não para ser transportada[8] - ou é colocada – a que ali é posta sem estar ligada fisicamente à estrutura ou às funcionalidades da máquina - no veículo;

· A coisa móvel é transportada em veículo;

· A coisa móvel está colocada em lugar destinado ao depósito de objectos;

· A coisa móvel é transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação, gare ou cais.

Estamos certos que o desiderato da lei reformulada foi o de fazer equivaler as situações de transporte de coisa às situações de colocação de coisas em veículos, «pois trata-se de condutas identicamente graves e censuráveis» (cfr. Exposição de motivos da proposta de lei n.º 98/X).

As próprias actas das reuniões do Conselho da Unidade de Missão para a Reforma Penal lançam luz sobre esta questão:

Veja-se a Acta n.º 14, atinente à reunião de 6/3/2006, que refere que "o Dr. Rui Pereira referiu que (...) no artigo 204.º, com o intuito de qualificar o furto no interior de veículo, foi acrescentada a palavra «colocada» no início da alínea b) do n.º 1".
Resolveu esta nova letra de lei o problema suscitado à luz da anterior redacção do CP – estamos a pensar nas dificuldades em provar que um objecto estava a ser transportado e não tinha simplesmente sido colocado ou deixado num veículo (caso em que, à luz de alguma jurisprudência, a que já se aludiu, deixava o furto de ser qualificado).
Como é bem de ver, esta visão das Actas e da Exposição de Motivos lança uma preciso e decisiva luz sobre a nova redacção da alínea controvertida e sobre a melhor interpretação a dar-lhe.
Maia Gonçalves defende que a actual alínea b) do n.º 1 do artigo 204.º do Código Penal «abrange o transporte em quaisquer veículos, motorizados ou não, ainda que não estejam em movimento, como é o caso do furto de um fato de dentro de um automóvel estacionado na via pública", mais opinando que "a questão sobre a colocação em veículos que não se encontrem em movimento suscitou algumas dúvidas, mas acabou por ser resolvida, no sentido que sempre defendemos, através do aditamento introduzido na aludida alínea b) de «colocada ou» pela Lei [n.º 59/2007]».
Por este motivo, defendendo que a alteração da al. b) do n.º 1 do art. 204.º do CP, tem o significado de fazer equiparar a tutela da apropriação ilícita de coisa alheia em veículo, quer seja nele transportada ou se encontre nele colocada, ainda que sem estar em marcha (cfr. ainda Acórdão da Relação de Guimarães de 16/3/2009 (Pº 740/07.3GCVCT-A).

Em consequência, bem fez o tribunal recorrido em qualificar a conduta ilícita do arguido (furto de mochila que se encontrava no interior de um carro estacionado), subsumindo-a à letra do artigo 294º, n.º 1, alínea b) do CP, improcedendo as conclusões n.ºs 12 e 13 (na medida em que invocam jurisprudência datada e prejudicada pela nova letra de lei).

3.5. Aqui chegados, só nos resta fazer improceder o recurso do arguido, assente que ele não coloca em causa a medida da pena encontrada pela moldura do furto qualificado, apenas pugnando, e já vimos sem razão, pela perfectibilização do crime de furto simples.

Dir-se-á, não obstante, que a pena de multa – primeiro escolhida, depois, doseada - nos parece justa e adequada.

III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso intentado pelo arguido PS..., mantendo-se os termos da sentença recorrida.

 

            Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs [artigos 513º/1 do CPP revisto pelo DL 34/2008 de 26/2 e 8º/5 do RCP, este remetendo para a Tabela III).


Paulo Guerra (Relator)
Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringi8r o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).

[2] Sabemos como a Rua A... ... é muito próxima da G....

[3] Demo-nos ao trabalho de ouvir a gravação das declarações do guarda AM... na sessão de 11/10/2010 – e aí é tudo muito claro: estava ele de serviço junto aos serviços de Urgência dos HUC, quando foi avisado, via rádio, que tinha sido avistado por uma senhora um indivíduo a assaltar um carro na Rua A... .... Logo se dirigiu para o local, tendo então avisado o arguido, em atitude suspeita, munido de uma mochila, logo tal gerando a suspeita de que poderia ser ele o autor do crime de furto em acusa. Abordado, o arguido mostrou voluntariamente o conteúdo da mochila (não havendo, pois, qualquer revista), dizendo que tudo aquilo era seu. Chegados junto ao carro assaltado, e chegado o proprietário do mesmo, acabou o PS...por admitir que tinha sido ele o autor do facto.
O proprietário dos bens furtados, também ouvido em audiência no dia 18/10/2010, referiu que naquele dia tinha nascido o seu filho na Maternidade K..., tendo ainda referido que só fez a queixa na PSP depois de já ter sido encontrado o culpado.
Pelo exposto, concluímos que a versão aposta na sentença, retirada da prova testemunhal, é a correcta, prevalecendo sobre qualquer outra versão, menos correcta, que resulte dos autos de denúncia ou de outros aditamentos policiais (e só podemos dizer que é muito frágil e falaciosa a redacção dos respectivos autos, que em muito pouco espelham «a verdade das coisas», sendo certo que, como já se referiu, o tribunal, no seu prudente critério, não se baseou no teor de tais documentos para aferir a culpabilidade deste homem que, acreditamos piamente, furtou uma máquina de filmar do interior de um carro que não era seu).
[4] Cfr. Acórdão do STJ de 15/2/2007, citado a fls 244 (mas não lido até ao fim com o exigível cuidado):
«I - Relativamente ao alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
II - Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
III - Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
IV - De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249.º do CPP).
V - Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.
VI - Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.
VII - O que o art. 129.º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249.º do CPP»
No desenvolvimento do aresto, diz-se:
«Muito discutido tem sido a questão do alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” que o CPP consagra no art. 129º. A jurisprudência não tem sido uniforme. Mas podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial devam praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1).
Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).
Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.
O que o art. 129º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP.
Clarificado, assim, o alcance do art. 129º do CPP, cabe agora analisar se foi violado pelo acórdão recorrido.
Segundo o recorrente, o tribunal recorrido teria dado como provado que o estupefaciente e a balança de precisão eram sua pertença com base no depoimento da testemunha CC, agente da PSP, que seria um depoimento de “ouvir dizer”, uma vez que se reporta a afirmações por si proferidas extraprocessualmente.
Analisada a fundamentação da matéria de facto, acima transcrita, constata-se que as afirmações a que o recorrente se refere foram feitas logo no acto de apreensão do estupefaciente, ou seja, na fase prévia à instauração do inquérito, na fase de aquisição da notícia do crime (detenção de estupefaciente), em que as autoridades policiais devem, nos termos do citado art. 249º do CPP, recolher todas as informações possíveis para assegurar os meios de prova.
Foi precisamente o que aquele agente policial fez: perante a descoberta do estupefaciente dentro da casa onde o recorrente morava, sendo certo que outro indivíduo ali residia, impunha-se a pergunta ao recorrente, que se encontrava presente e só ele, sobre a propriedade da droga. Não se tratou uma “conversa informal”, mas de uma recolha de informação, já que o recorrente não tinha ainda o estatuto de arguido.
Acresce que o depoimento daquela testemunha de acusação não serviu propriamente de base à convicção do tribunal quanto à propriedade da heroína por parte do recorrente, mas antes de elemento confirmativo de outros elementos de prova, como resulta da motivação da matéria de facto, onde, depois de se considerar assente aquele facto, se acrescenta: “Se dúvidas existissem, o que não é o caso do tribunal, elas seriam dissipadas pelas declarações dos agentes policiais que efectuaram a busca à residência do arguido”.
Incontestável é, pois, que este depoimento nem sequer serviu como elemento de prova essencial do facto referido».
Ora, também aqui na situação dos autos ainda não havia inquérito quando é tida essa conversa entre o PS...e o agente AM..., não havendo, pois, qualquer violação do art. 129º do CPP, assente que não foi essa «confissão» referida como fundamental para se dar como provada esta autoria criminosa, resultando a mesma apurada do facto de ter sido abordado pela PSP um homem perto de um carro danificado e assaltado, tendo ela na sua posse os bens que foram identificados pelo proprietário do carro como tendo estado dentro da viatura e tendo sido furtados. Isto é o essencial, nunca essa pretensa «confissão!

[5] Corroboramos a tese de Paulo Pinto de Albuquerque (cfr. Comentário do CPP, p. 319), seguindo a qual, a existir a nulidade relativa de prova prevista no n.º 3 do artigo 126º do CPP (a aplicável ao caso, ao contrário do que sustentam Germano Marques da Silva e Manuel Guedes Valente - «Processo Penal», Tomo I, 2010, 3ª edição, Almedina427-433, posição com a qual não concordamos), ela teria de ser arguida pelo interessado – o arguido – no prazo do artigo 120º/3 d) do CPP (cfr. Acórdãos do STJ de 8/1/1995, in CJ-STJ-III,1-194, e de 27/1/1998, in BMJ 473/166).
[6] Cfr. entre outras, Ac. STJ de 28/6/2000, CJACSTJ, VIII, T. II, pág. 230, de 8/5/2003, CJACSTJ, XI, T. II, pág. 177; Ac. RP 30/4/2003, CJ, XXVIII, T. II, pág. 214.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Triângulo de pré-sinalização; emblema da marca do veículo, GPS, auto-radio, estofos, etc.