Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3201/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ISAÍAS PÁDUA
Descritores: SEPARAÇÃO DE BENS OU MEAÇÕES
RELACIONAÇÃO DE DÍVIDAS
Data do Acordão: 12/16/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART.º 825 DO CPC
Sumário:
I- No processo de inventário judicial para separação de bens as dívidas de exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges não têm que ser nele relacionadas.
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
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I- Relatório
1- No 1º Juízo do Tribunal de Judicial da Comarca de Anadia correm os seus termos os autos de inventário judicial para separação de meações, autuados com o nº 492-C/96 (por apenso aos autos de execução de sentença autuados como o nº 492-B/96 ) nos quais é requerente, Laurinda J... (desempenhando igualmente as funções de cabeça-de- casal) e requerido, Filipe F... (marido daquela.)
Inventário esse que foi instaurado por aquela requerente na sequência daqueles autos de execução, para pagamento de quantia certa, que foram instaurados pela exequente, Madeice... e Serração de Mad... (e depois de ter sido citada, após a penhora de bens ali levada a cabo, nos termos e para os efeitos do artigo 825 do CPC).

2- Entretanto, a ora aqui agravante foi ali reclamar, da relação de bens apresentada pela cabeça-de casal, por da mesma não constar, no lugar do passivo, o seu crédito no montante total de esc. 1.483.064$00 (cfr. cópia certificada do requerimento ora junto a fls. 12/13, e que ali deu entrada no dia 6/2/2001).
Fundamentou então tal pretensão, alegando, em síntese, o seguinte:
No exercício da sua actividade de indústria e comércio vendeu ao executado-requerido, Filipe Monteiro, diversos materiais, tendo para o seu pagamento sacado 5 cheques que, apresentados, a pagamento, não obtiveram provisão, razão essa por que participou criminalmente contra aquele.
Por sentença, de 17/03/98, foi aquele condenado à pagar à reclamante a quantia total aposta nos aludidos cheques, no valor de esc. 817.516$00, acrescida de juros de mora.
Por o referido devedor não ter pago a quantia a que ficou obrigado por aquela sentença, a reclamante instaurou, em 10/07/95, execução contra o mesmo, nomeando à penhora dois imóveis de que é proprietário o referido Filipe (execução essa com o nº 1024/A/96, do 3º Juízo Criminal da Comarca de Vila Nova de Gaia).
Porém, na sequência da carta precatória que foi expedida, para tal penhora, ao Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, aquela cabeça-de-casal informou nos respectivos autos que se encontrava pendente o sobredito processo de inventário, para separação de meações, na sequência do que foi ordenada a suspensão da sua referida execução.
Só nessa altura é que a reclamante teve conhecimento da existência do aludido processo de inventário.
Todavia, e não obstante ter conhecimento desse seu crédito, a c.c. não o relacionou no aludido inventário, no lugar do passivo, o qual, no momento, com os juros vencidos, atinge já o montante total de esc. 1.483.064$00.


3- No seu despacho, ora certificado de fls. 24, apreciando tal reclamação, o sr. juíz do processo, com o fundamento de que estando em causa uma dívida de exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (do referido Filipe) e como tal incomunicável, entendeu não ter, assim, a mesma de ser relacionada, pelo que indeferiu tal reclamação da ora agravante.

4- Não se conformando com o aludido despacho, a reclamante dele interpôs recurso, o qual foi recebido como agravo e a subir em separado, aquando da convocação da conferência de interessados.
4-1 Nas suas alegações de recurso, a ora agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“1- Se é certo que pelas dívidas incomunicáveis só respondem, de forma subsidiária, os bens comuns, é certo também que cabe ao sr. Juíz do processo onde essa penhora é requerida averiguar da sua possibilidade legal.
2- O sr. juíz da execução onde a recorrente é exequente ordenou efectivamente a penhora e ordenou a suspensão dos autos de execução até à partilha.
3- O inventário para separação de meações tem aplicação precisamente nos casos em que só um dos cônjuges é executado e é penhorado um bem comum do casal, não havendo diferenças na posição da ora recorrente relativamente à exequente dos autos principais por apenso dos quais está o inventário pendente.
4- As normas legais sobre as quais a recorrente fundamentou a reclamação apresentada sobre a relação de bens – artºs 1331º, nº 2, e 1348º por remissão dos arts. 1404 nº 3 e 1406 do C.P.Civil, não impõem que as dividas sejam comuns: o que pressupõem é que seja um encargo dos bens a partilhar.
5- O douto despacho recorrido violou o art. 1331, nº 2, e o art. 1406 do C.P.Civil, na medida em que indeferindo a reclamação contra a relação de bens coarctou o direito da recorrente de intervir no processo e daí exercer as faculdades possibilitadas por lei.
Pelo que terminou pedindo que o despacho recorrido seja substituído por outro que admita a reclamação feita pela ora agravante.

5- Não foram apresentadas contra-alegações.
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II- Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
1- Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC, bem ainda, a esse propósito, entre muitos outros, Acs da RC de 5/11/2002; do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80, e da RP de 25/11/93, respectivamente, in “CJ, Ano XXVII, T5, pág 15; CJ, Acs. do STJ, Ano II, T3 – 77; Act. Jur. Ano III, nº 17, pag. 3; BMJ nº 359-522 e CJ, Ano XVIII, T5 –232).
Por outro lado, é sabido, como do prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, é dever do julgador resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.).

2- Ora compulsando os autos e calcorreando as conclusões do recurso, verifica-se que única questão que importa que apreciar e decidir consiste em saber se a aludida reclamação (efectuada pela ora agravante contra a relação de bens apresentada no sobredito inventário pela não relacionação do seu ali reclamado crédito) deve ser recebida (tal como defende a agravante) ou ser liminarmente indeferida (tal como se fez no despacho recorrido).
Vejamos então.
Podemos dizer que o processo de inventário para separação de meações ou de bens é um processo (a lei chama “caso” – cfr. título ou epígrafe da secção IX do capítulo XVI do CPC) especial dentro do próprio processo especial que constitui o inventário judicial geral ou normal
Processo ou caso especial esse que se encontra previsto no artº 1406 do CPC – diploma esse ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem -, e ao qual é aplicável o disposto no artigo 1404 (relativo ao inventário ocorrido em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento), o qual, por sua vez, manda, nos termos do seu nº 3, seguir os termos das secções anteriores, relativas ao inventário (normal ou geral) e designadamente o destinado a pôr termo à comunhão hereditária (cfr. artº 1326 e ss), com as alterações ou especialidades previstas naquele primeiro normativo.
Neste tipo de inventário para separação dos bens ou meações, nos termos e à luz do disposto no artº 825, a sua instauração tem fundamentalmente por fim proteger o cônjuge do executado, e só muito mediatamente o interesse do credor-exequente, que viu a sua execução suspensa - por apenso à qual corre o inventário – até à partilha dos bens que compõem as meações, por força do disposto no nº 4 ( nº 3 da primitiva redacção) daquele normativo legal (vidé, por todos, Ac. da RP de 9/5/95, in “CJ, Ano XX, T1 – 188”).
No caso em apreço, verifica-se o seguinte:
No 1º Juízo do Tribunal de Judicial da Comarca de Anadia correm os seus termos os autos de inventário judicial para separação de meações (de bens), autuados com o nº 492-C/96, nos quais é requerente, Laurinda J... (desempenhando igualmente as funções de cabeça-de- casal) e requerido, Filipe F... (marido daquela.)
Inventário esse que foi instaurado por aquela requerente (e depois de ter sido citada, após a penhora de bens ali levada a cabo, nos termos e para os efeitos do artigo 825 do CPC) na sequência dos autos de execução, para pagamento de quantia certa, autuados como o nº 492-B/96 (aos quais aquele processo de inventário se encontra apenso), que foram instaurados pela exequente, Madeice... e Serração de Mad..., contra aquele requerido, Filipe Monteiro, e cuja execução foi, por via disso, suspensa.
Entretanto a ora agravante foi ali reclamar contra a relação de bens apresentada por a mesma não contemplar o seu crédito no início referido.
Crédito esse que lhe foi reconhecido na sequência da prolação da sentença proferida, em 17/3/98, nos autos de processo comum, que correram termos no 3º Juízo Criminal de Vila Nova de Gaia, e da qual resultou a condenação – por factos ocorridos em 1995 - do sobredito Filipe Monteiro a pagar à ora agravante a importância ali referida, e que a última consubstancia agora naquele crédito reclamado.
Crédito esse que a ora agravante alegou que tinha já ido executar no processo de execução acima aludido, mas cuja execução foi entretanto suspensa, pelo sr. juíz do processo, quando se soube da pendência do dito processo de inventário para separação de meações.
Aqui chegados avancemos, mais de perto, para a resolução da caso.
Parece inolvidável que estamos na presença de uma dívida (referindo-nos, claro está, àquela que resulta do crédito reclamado pela agravante) de exclusiva responsabilidade do executado-requerido, Filipe Monteiro, pela qual respondem apenas os seus bens próprios e só subsidiariamente a sua meação nos bens comuns (cfr. artº 1696, nº 1, do C. Civil, na sua anterior redacção – então em vigor na altura da ocorrência dos factos que terão originado a dívida -, muito embora fosse indiferente analisá-lo à luz da actual redacção que lhe foi dada pelo artº 4 do DL nº 329-A/95 de 12/12, já que, para o caso que interessa, mantêm semelhante teor).
Dívida essa que, assim, é incomunicável ao cônjuge do devedor, ou seja, à requerente do aludido inventário.
E sendo assim, e tendo em conta a natureza e o fim do aludido inventário (e a que atrás já fizemos referência) parece-nos claro que a referida dívida não tem de ser relacionada no sobredito processo de inventário.
E no mesmo sentido vai o Mestre Lopes Cardoso (in “Partilha Judiciais, Vol. III, pág. 390”), quando a esse propósito escreve o seguinte:
“...Ao cabeça de casal competirá também relacionar o passivo.
Mas que passivo?
Em primeiro lugar o que onera o património comum, isto é, o que se considere como de responsabilidade de ambos os cônjuges....
...As dívidas da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges (incomunicáveis), essas não têm que relacionar-se...” (sublinhado nosso).
Ora a não entender-se assim, e considerando que nesse tipo de inventários se visa essencialmente proteger o interesse do cônjuge do executado, permitindo-lhe, desse modo, proceder à separação dos bens do casal, para que os seus bens (comuns até aí) não fiquem afectados ou onerados com a penhora levada a efeito na execução instaurada contra ao seu marido, não se perceberia ou faria, quanto a nós, qualquer sentido que, num processo que tem por fim separar os bens ou meações do casal, se tivesse de relacionar uma dívida que é da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (o executado) e que não se comunica ao outro (exactamente àquele que requereu a partilha para separação dos bens) e perante a qual (a tal dívida) só irão responder os bens que couberem, em tal partilha, ao interessado-executado.
Logo, nessas situações, e tal como sucederá no caso em apreço com a agravante, o credor apenas terá que aguardar que nos autos de inventário seja feita a partilha, para ficar a saber quais os bens que efectivamente ficaram a pertencer ao executado e depois executá-los, sem qualquer tipo de constrangimentos, semelhantes àquele que motivaram a suspensão da sua execução.
E nem se diga ainda que a agravante com tal solução ficaria prejudicada, e nomeadamente por não poder promover os termos da execução. Mesmo não sendo tal argumento decisivo, todavia, sempre se dirá, por um lado, que as diversas especialidades ou alterações introduzidas no citado artigo 1406 foram precisamente para acautelar os interesses dos credores (por forma a não ficarem defraudados nesses seus interesses), e, por outro lado, e tal como resulta do nº 1 do citado normativo, a lei atribui ao exequente o direito de promover o andamento do inventário (medida essa que é precisamente uma das formas ali previstas de os credores defenderem os seus interesses).
Por fim, diremos ainda, que não deve ser chamado à “colação” o disposto no artigo nº 2 do artº 1331, para justificar a reclamação da agravante e a obrigatoriedade da relacionação do seu crédito no sobredito inventário.
É que, em nossa opinião, e tendo em conta a especialidade do aludido inventário que vimos analisando, entendemos não ser tal normativo aplicável ao caso em apreço.
E, por outro lado, entendemos que tal normativo refere-se aos titulares activos de “encargos da herança”, conceito ou realidade esses que não existem no caso do inventário em apreço. E nem se diga que bem poderia adaptar-se tal conceito à expressão “encargos de bens a partilhar” – tal como defende a agravante - porque tal não seria possível dada a especificidade do caso em apreço. É que no processo de inventário normal os créditos atingem (em termos de garantia), em princípio, todos os bens que compõem a massa da herança a partilhar, o que não sucede no processo de inventário para separação de meações, quando já se sabe, à partida, que por tais dívidas só responderão os bens que vierem a ser adjudicados, pela partilha, ao interessado-executado.
Por tudo o exposto, afigura-se-nos que bem andou o sr. juíz do tribunal a quo ao não admitir a sobredita reclamação da ora agravante – indeferindo-a liminarmente -, pelo que o recurso de agravo terá de ser julgado improcedente.
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III- Decisão
Assim, face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso (de agravo), confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pela agravante.
Coimbra,