Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4013/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
SUA VALIDADE E RESPECTIVOS LIMITES
Data do Acordão: 02/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 293º, Nº 1, E 299º, DO CPC .
Sumário: I – As partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor .
II – Não está no âmbito da livre disponibilidade das partes a declaração de inexistência jurídica de negócios formais a que a lei reconhece determinados efeitos, e muito menos está na disponibilidade das partes retirarem ou declararem a não produção de efeitos fiscais a esses mesmos negócios jurídicos .
Decisão Texto Integral: 1

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Relatório
I – A..., com sede na Avenida José Gregório, nº 212, Marinha Grande, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra B..., com sede na Travessa do Município, Lote B – um, 1º andar sul, em Leiria, alegando, em síntese, que:
Em 11/12/2001, celebrou com a ré contrato de permuta, mediante escritura pública, através do qual dava a esta determinado imóvel e esta lhe dava dez fracções devidamente identificadas.
No entanto, foi recusado o registo com base nesse contrato, em virtude da permuta não ter sido acompanhada da constituição da propriedade horizontal.
Na sequência disso, celebraram, em 02/04/2002, escritura pública de distrate dessa permuta e, com vista a formalizar o negócio desde sempre pretendido por ambas, celebraram nova escritura, de constituição da propriedade horizontal e permuta, que é o único negócio, efectivamente, produtor de efeitos jurídicos.
A permuta inicial, nunca concretizada, e o subsequente distrate deram origem a liquidação de imposto de sisa, envolvendo duplicação do também liquidado quando da última permuta.
Com tais fundamentos, concluiu por pedir que sejam declarados inexistentes os negócios titulados pelas escrituras públicas de permuta e de distrate celebradas, no 1º Cartório Notarial de Leiria, a 11/12/2001 e 02/04/2002, respectivamente.
A ré, regularmente citada, não contestou, mas subscreveu a transacção constante de folhas 67 a 69, que não foi homologada, tendo a Mm.ª Juíza a quo proferido sentença a julgar a acção improcedente.
Inconformada, apelou a autora, que concluiu, assim, a sua alegação:
1. A proposta de transacção contida a fls. 67/69 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida não viola qualquer direito indisponível.
2. Com efeito, nem o seu objecto, nem os seus sujeitos, nem o seu conteúdo violam qualquer direito indisponível.
3. Por sua vez, a falta de contestação da ré implica a condenação no pedido.
4. Enquadra-se no poder dos tribunais a declaração de inexistência jurídica das escrituras celebradas em 11 de Dezembro de 2001 e 2 de Abril de 2002.
5. A sentença recorrida violou os art.ºs 1248º e 1249º do Cód. Civil, 299º, n.º 1 e 490º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil.
Não foi oferecida contra-alegação.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II - Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como assentes:
1. No dia 11 de Dezembro de 2001, a autora celebrou com a ré contrato de permuta, outorgado, por escritura pública, no 1º Cartório Notarial de Leiria.
2. Mediante tal convénio, a autora declarou dar à ré o seguinte imóvel, livre de quaisquer ónus ou encargos: lote de terreno para construção, com a área de 3995 m2, sito em Albergaria, freguesia e concelho da Marinha Grande, omisso na matriz mas pedida a sua inscrição em 22/11/2001, descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o nº12780.
3. Em troca, a ré declarou dar à autora 10 fracções, identificadas quanto ao destino, à área e à localização.
4. Para celebração desse negócio, foi lavrado termo de declaração de sisa nº 903/2001 e liquidação pelos serviços de Finanças da Marinha Grande, em 22/11/2001.
5. A autora não logrou proceder ao competente registo junto da Conservatória do Registo Predial, dado a permuta não haver sido acompanhada da constituição da propriedade horizontal e as fracções dela objecto não estarem identificadas segundo essa constituição.
6. Autora e ré celebraram, em 02 de Abril de 2002, escritura pública de distrate do contrato de permuta referido em 1., em todas as suas cláusulas.
7. Foi lavrado termo de declaração de sisa nº 264/2002 e liquidação pelos serviços de Finanças da Marinha Grande, em 26/03/2002.
8. Autora e ré celebraram nova escritura, para formalização do negócio pretendido, em 02 de Abril de 2002, de constituição de propriedade horizontal e permuta, lavrada a fls.118v-122 do livro 7-L do 1º Cartório Notarial de Leiria.
9. Por essa escritura, o imóvel e as fracções objecto de permuta são os mesmos aludidos em 2. e 3.
10. Para realização dessa escritura, foi lavrado termo de declaração de sisa nº 265/2002 e liquidação pelos serviços de Finanças da Marinha Grande, em 26/03/2002.
11. A transacção não homologada tem o teor seguinte:
Autora e ré reconhecem e declaram que celebraram entre si o contrato de constituição de propriedade horizontal e permuta outorgado por ambas por escritura pública lavrada em 2 de Abril de 2002, iniciada a fls. 118 do Livro de Notas para escrituras diversas 7-C do Primeiro Cartório de Leiria, pelo qual a ré B... recebeu da autora A... o lote de terreno para construção urbana omisso na matriz mas requerida a sua inscrição em 22 de Novembro de 2001, parcela esta que ocupou a totalidade do artigo rústico 10.716 da freguesia e concelho da Marinha Grande. Por sua vez, a autora A... recebeu da ré B... as fracções autónomas a construir no identificado lote designadas pelas letras “B”, “D”, “E”, “F”, “L”, “M”, “N”, “O”, “AL” e “AM”, tudo conforme documento cinco junto com a p.i. e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Em consequência do exposto no ponto antecedente, autora e ré reconhecem e declaram que o contrato de permuta outorgado por ambas por escritura pública lavrada em 11 de Dezembro de 2001, iniciada a fls. 129 do Livro de notas 346-C do Primeiro Cartório de Leiria, junta como documento um com a p. i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido não produziu nem produz quaisquer efeitos jurídicos, incluindo jurídico-fiscais e prediais, sendo um acto jurídico inexistente.
Em consequência do exposto nos dois pontos antecedentes, autora e ré reconhecem e declaram que a escritura de distrate outorgada por ambas por escritura pública lavrada em 2 de Abril de 2002, iniciada a fls. 116 do Livro de notas 7-C do Primeiro Cartório de Leiria, junta como documento três com a p. i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido não produziu nem produz quaisquer efeitos jurídicos, incluindo jurídico-fiscais e prediais, sendo um acto jurídico inexistente.
Autora e ré reconhecem e declaram que apenas a escritura do contrato de constituição de propriedade horizontal e permuta outorgado por ambas por escritura pública lavrada a 2 de Abril de 2002, iniciada a fls. 118 do Livro de Notas para escrituras diversas 7-C do Primeiro Cartório de Leiria, produziu efeitos jurídicos, incluindo fiscais e prediais, tendo o referido contrato sido objecto de registo predial através das apresentações 14 e 15 de 15 de Abril de 2002 as quais incidiram sobre a descrição 12780/Marinha Grande.
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III - Fundamentação de direito
A apreciação e decisão do recurso, delimitado, como se sabe, pelas conclusões da alegação da apelante (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), passam pela análise e resolução das seguintes questões jurídicas por ela colocadas a este tribunal:
1 – validade da transacção celebrada pelas partes.
2 – inexistência jurídica dos dois primeiros contratos por elas celebrados.
Abordemo-las, agora, em separado.
1 – Validade da transacção celebrada pelas partes
É lícito às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objecto da causa (art.º 293º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil). A transacção judicial é um contrato bilateral realizado no âmbito de processo pendente, através do qual as partes terminam o litígio mediante recíprocas concessões (art.º 1248º do Cód. Civil). Não podem, porém, as partes transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor (art.ºs 1249º do Cód. Civil e 299º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil).
A Mmª Juíza a quo entendeu que a transacção celebrada pelas partes neste processo e que consta de folhas 67 a 69 exorbitava da sua livre disponibilidade e recusou a sua homologação. É precisamente contra isso que, em primeiro lugar, se rebela a apelante, por considerar que nenhum obstáculo existe à auto-regulação da matéria objecto da transacção.
Para dilucidação da equacionada problemática importa ter presente o conteúdo da transacção em causa. Analisando-a, vê-se que as partes reconhecem e declaram a inexistência jurídica de um contrato de permuta bem como do distrate desse mesmo contrato e a não produção de quaisquer efeitos jurídicos, incluindo jurídico fiscais e prediais, desses actos outorgados em escrituras públicas. Além disso, reconhecem e declararam ainda que somente um terceiro contrato - o de constituição da propriedade horizontal e permuta – produziu efeitos jurídicos.
Ora, não está, no âmbito da livre disponibilidade das partes a declaração de inexistência jurídica de negócios formais a que a lei, necessariamente, reconhece determinados e certos efeitos e muito menos está na disponibilidade das partes retirarem ou declararem a não produção de efeitos fiscais a esses negócios jurídicos.
Não cabe às partes determinar se aqueles actos assumem ou não relevância tributária e se produzem ou não efeitos jurídicos. Tal só da lei poderá resultar. O espaço deixado à autonomia privada tem limites (art.ºs 405º e 280º do Cód. Civil) e a aludida transacção contém, em função do seu objecto, a afirmação da vontade das partes em matéria indisponível. Estas não podem contornar a relevância tributária desses actos e defraudar a lei, recorrendo ao expediente da transacção.
Daí, pois, a invalidade da transacção concretizada no processo, que não podia ser homologada, como bem ajuizou e decidiu a 1ª instância.
2 – Inexistência jurídica dos dois primeiros contratos celebrados pelas partes
Em segundo lugar, insurge-se a apelante contra a não procedência da sua pretensão de ver julgados juridicamente inexistentes os dois primeiros contratos celebrados com a ré.
Como se sabe, a inexistência de negócio jurídico é figura não prevista, em termos genéricos, no nosso direito civil, surgindo, apenas, expressamente referida em relação ao casamento (art.º 1628º do Cód. Civil) Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos, 4ª edição, pág. 356.. Aliás, a inexistência como categoria jurídica autónoma de invalidade é negada por parte da doutrina que a considera apenas uma forma rigorosa de nulidade Cfr., neste sentido, Heirich Ewald Hoster, A Parte Geral do Código Civil, 1992, pág. 518, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, tomo 1, pág. 653.. Contudo, é geralmente aceite na doutrina e jurisprudência como figura autónoma daquela, reservando-a para os actos afectados por vício ainda mais gravoso do que a nulidade Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1973, pág. 697, e Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, pág. 574. .
A inexistência respeita a actos de tal modo viciados na forma ou no fundo que se apresentam, por isso, destituídos de qualquer relevância jurídica. Assim, fala-se de inexistência de um acto jurídico “quando nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a materialidade que corresponde à noção de tal negócio) ou, existindo embora na aparência, a realidade não corresponde a tal noção” Cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1973, pág. 696.
O acto inexistente não produz quaisquer efeitos, não havendo sequer necessidade de um reconhecimento judicial da sua invalidade, como acontece com os actos nulos ou anuláveis. Assim, o acto, a que falta um elemento essencial à sua própria configuração, por não ter acontecido, e a que corresponde a denominada inexistência ôntica Cfr., a este propósito, Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 573., não produz quaisquer efeitos e a sua inexistência pode ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, independentemente de declaração judicial. O mesmo sucedendo relativamente ao acto materialmente existente (por ter na realidade acontecido), mas que revestindo total hostilidade ao Direito é por este ignorado, fazendo-o equivaler à inexistência e considerando-o um nada em consequência de vícios particularmente graves de que enferma Cfr., neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, págs. 574/575..
A noção de inexistência jurídica atrás enunciada em qualquer das suas vertentes parece não se ajustar aos contratos questionados nos autos, que não enfermam de tão gravoso vício. Desde logo, ambos tiveram existência material e foram validamente celebrados, segundo a forma legal exigida (ou seja, estando em causa a transmissão da propriedade de imóveis, mediante escritura pública – art.ºs 875º e 939º do Código Civil) e até de harmonia com a vontade dos contraentes.
Daí que se entenda que existiram e produziram os seus efeitos próprios – o primeiro dos quais (a permuta) até ao seu distrate (que não torna aquele primeiro contrato inexistente, mas apenas o extingue) e o segundo tendo por efeito próprio a destruição do primeiro.
O distrate ou revogação do contrato assenta no mútuo consenso dos contraentes e consiste na extinção do contrato, através de manifestação da autonomia privada de sentido oposto àquele que o constituiu Cfr., neste sentido,Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume II, pág. 99, . Aqueles que constituíram o vínculo contratual decidem posteriormente extinguir esse mesmo vínculo Cfr. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (parte especial), Almedina, 1ª edição, pág. 201, e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8ª edição, pág. 283.. Significa isto que “o poder jurígeno da autonomia privada, assim como permite a constituição da vinculação negocial, permite também e do mesmo modo a desvinculação. As pessoas podem, em princípio, desvincular-se de um negócio jurídico do mesmo modo, pela mesma forma e nas mesmas condições em que se vincularam”, nisso consistindo a revogação do contrato Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, obra citada, pág. 607.. Assim “como deram vida ao contrato no exercício da sua autonomia, também lha tiram, no exercício da mesma autonomia” Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, pág. 380., destruindo os seus efeitos.
Foi precisamente isso que sucedeu no caso vertente, que nada tem a ver com inexistência jurídica, vício de que de modo algum enfermam os questionados contratos celebrados entre a apelante e a ré.
Nem, contrariamente ao pretendido pela apelante, se pode – com o mínimo de fundamento sério ou razoabilidade – dizer que somente o terceiro contrato foi, efectivamente, “celebrado e existe”; ao invés, os três contratos foram celebrados – como a própria apelante alegou – e existem – quer à luz do ordenamento jurídico, quer em termos meramente materiais, naturalísticos ou não jurídicos – com os efeitos jurídicos que lhes são próprios – quanto ao primeiro desses contratos, afastados pela outorga do segundo (o de distrate/revogação). Nem, por outro lado, existe qualquer “duplicação de negócios” – uma vez que o primeiramente celebrado foi destruído pelo segundo (perdendo, por conseguinte, os seus efeitos próprios) e o terceiro se revelou como aquele que, efectivamente, veio a transmitir a propriedade dos imóveis, nos moldes pretendidos.
As partes optaram, no fundo, por percorrer caminho sinuoso na prossecução do seu escopo, que levou a que tivessem de formalizar não um, mas três contratos. E não é pela vontade das partes que tais contratos, que deixaram de lhes interessar, se podem “apagar” quer da realidade natural, quer da realizada jurídica (que é a que aqui interessa), e se pode pretender que nunca ocorreram ou que se encontram contaminados pelo gravoso vício jurídico da inexistência.
O que as partes pretendem é evitar a dupla tributação desses actos. Só que isso é questão a suscitar perante a Administração Tributária e eventualmente perante a jurisdição fiscal, a quem cabe avaliar e decidir da relevância tributária dos diversos actos negociais levados a cabo pelas partes. Estas não podem contornar isso e defraudar a lei, recorrendo ao expediente da inexistência jurídica dos contratos celebrados, quando, como sucede no caso, os mesmos não se encontram eivados desse vício.
Uma última nota ainda, para salientar que, diferentemente do que sustenta a apelante, a falta de contestação não implica a condenação no pedido, mas tão só a confissão dos factos articulados por ela (art.º 484º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil). Na actual versão do Código Processo Civil, ao invés do que sucedia na anterior, a revelia absoluta apenas conduz à admissão dos factos, os quais são depois subsumidos juridicamente e podem levar à rejeição das pretensões que não encontrem no sistema jurídico o necessário fundamento legal.
Improcedem, assim, todas as conclusões da apelante, o que implica o total inêxito do recurso e a consequente confirmação da decisão recorrida, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais por ela indicadas.
IV - Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Coimbra, 15 de Fevereiro de 2005