Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3633/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: ACTOS DE GESTÃO PÚBLICA
CONSTRUÇÃO DE ESTRADAS
Data do Acordão: 12/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL Nº 227/2002, DE 30/10 .
Sumário: I – Para a apreciação da responsabilidade civil do Estado por prejuízos provenientes de actos de gestão pública são competentes os tribunais administrativos .
II – As actividades de concepção, construção e conservação de estradas/auto-estradas são actos de gestão pública .
Decisão Texto Integral: 10

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I- Relatório:
1-1- A... e mulher B..., residentes na Estrada Nacional 8, Vivenda Valadares, Barba Torta, Alfeizerão, Alcobaça, instauraram, no Tribunal Judicial de Alcobaça, a presente acção declarativa com processo ordinário, contra C..., com sede na Praça da Portagem, Almada, D..., com sede na Rua da Serradica, Estaleiro Nova Estrada Ace, apartado 127, Tornada, Caldas da Rainha, E... com sede na Av. Frei Miguel Contreiras, 54, 4º, Lisboa, F..., com sede na Praça da Portagem, Catefica, Torres Vedras, G..., com sede na Rua Alexandre Herculano, 53, Lisboa e H..., com sede na Av. José Malhoa, 9, Lisboa.
1-2- Os RR. C..., E... e D..., na sua contestação, invocaram a excepção absoluta do tribunal em razão da matéria, já que, no seu entender, é competente para conhecer da acção o tribunal administrativo e não o tribunal judicial onde a acção foi intentada.
1-3- Na réplica os AA. sustentaram a não procedência da excepção invocada, mantendo serem os tribunais judiciais os competentes para conhecerem do pleito.
1-4- No despacho saneador, o Mº Juiz considerou procedente a excepção invocada, julgando o tribunal ( judicial ) onde a acção foi instaurada, incompetente em razão da matéria para conhecer do pleito, entendendo serem os tribunais administrativos e fiscais os competentes para o efeito.
1-5- Não se conformando com esta decisão, dele vieram recorrer os AA., recurso que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
1-6- Os recorrentes alegaram, tendo dessas alegações retirado as seguintes conclusões úteis:
1ª- Atendendo à factualidade alegada pelas partes e demais elementos de prova junto aos autos, não seria possível ao tribunal a quo julgar como assente que os prejuízos alegados pelos agravantes decorreram de actos de gestão pública.
2ª- Atendendo na pretensão dos AA., vemos que a mesma assente em questões de deficiente execução do troço da A8, sendo sua convicção que os prejuízos reclamados foram causados directamente, por acção do empreiteiro da obra, a R. Zagope, sendo que a respectiva responsabilidade civil se encontra transferida para a Seguradora também demandada e sendo ambas estas entidades se regem por normas de direito privado, apesar de a primeira actuar ao abrigo de um contrato de empreitada de obras pública.
3ª- Nos termos do regime das empreitadas das obras públicas, é o empreiteiro o responsável por todas as deficiências e erros relativos à execução dos trabalhos, não se estando, neste caso, perante qualquer órgão ou agente da Administração Pública, nem se tratando de exercício de qualquer função pública ou da prática de qualquer acto de gestão pública.
4ª- Os tribunais administrativos são materialmente incompetentes para conhecer da acção de responsabilidade civil extracontratual em relação a um empreiteiro particular, quando tal acção tenha sido intentada conjuntamente contra esse empreiteiro e contra a entidade pública que figura como dona da obra e se funde com actos ilícitos praticados na execução da empreitada.
5ª- As relações jurídicas que se estabelecem entre o dono da obra e o empreiteiro ao abrigo de um contrato de empreitada de obras públicas, são reguladas pelas normas de Direito Administrativo, mas as relações do empreiteiro com terceiros pertencem à esfera do direito privado e são reguladas por este direito.
6ª- Os tribunais administrativos são chamados a decidir questões relacionadas com a interpretação, validade ou execução do contrato de empreitada de obras públicas, mas já não as questões relacionadas com as relações entre o empreiteiro particular e terceiros afectados pela conduta deste.
7ª- A questão objecto do recurso, enquadra-se neste último caso, sendo que é forçoso concluir que o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar o pedido do A., é o tribunal judicial de Alcobaça.
8ª- Ao contrário do que se refere na decisão recorrida, o art. 51º nº 1 al. h) do ETAF não é a norma através da qual deve ser delimitada a competência dos tribunais administrativos e fiscais.
9ª- Esta disposição pressupõe que tal competência se ache já delimitada, nos termos fixados nos arts. 212º nº 3 da CRP e arts. 3º e 4º do ETAF, conforme decorre da própria organização sistemática do ETAF e das regras gerais da interpretação das normas jurídicas.
10ª- Respeitando estes critérios chegaríamos à conclusão de que nunca seriam os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para apreciar o pedido dos autos, já que dispõe, expressamente, o art. 4º nº 1 dal f) do ETAF que estão excluídos da jurisdição administrativa e fiscais, os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado ( o que é o caso desta acção ) ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
11ª- Pode verificar-se também, da documentação junta aos autos, designadamente dos contratos, que o dono da obra não se acha investido da posição de supremacia em face das entidades com quem contrata ( cuja disciplina não é o direito público, mas sim a estabelecida pelo CSC ).
1-7- Os RR., recorridos, C..., E..., D..., responderam a estas alegações sustentando o não provimento do recurso e a confirmação da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Como se vê, a única questão que se coloca nesta instância é a de saber se o tribunal judicial onde a acção foi proposta é ou não materialmente competente para conhecer do objecto da acção. O Mº Juiz na douta decisão recorrida entendeu que não ( atribuindo a respectiva competência aos tribunais administrativos e fiscais ), os recorrentes, em oposição ao decidido, entendem que sim. Daí o presente recurso.
Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” ( in Com. 1º, 110 ). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelos demandantes.
Compulsando a p.i. verifica-se que os AA. alegam que são donos do prédio que identificam e que foram expropriados de uma parcela dele para a construção da auto-estrada A8. Esta via ficou, após a sua construção, a passar encostada à sua casa de habitação. No decurso das obras começaram a surgir inúmeros problemas ( tais como fissuras e inundações ) na sua casa derivadas dessa construção, circunstâncias que lhe determinaram danos ( que identificam ) de que se querem ver ressarcidos. Alegam que o IEP, é responsável por ser o dono da obra, sendo igualmente responsáveis, nos termos do art. 483º nº 1 do C.Civil os RR. Ace Nova Estrada e a Zagope. A R. Ace Nova Estrada havia transferido a responsabilidade civil para a R. Império e a 4ª R. Auto-estradas do Atlântico, responsável enquanto concessionária da via, transferiu a sua responsabilidade civil para a R. ICI. Terminam pedindo, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofrerem, a condenação dos RR. no pagamento da quantia de 102.457,56 Euros, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde citação e até integral pagamento.
Quer isto dizer que os AA. fundamentam a sua acção e os prejuízos que reclamam, na construção incorrecta e defeituosa da auto-estrada A8, mandada efectuar pelo IEP e cuja execução foi realizada pela R. Zagope.
Colocada a causa sobre este prisma, somos em crer que carecem os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para conhecer do pleito.
Vejamos:
Como se sabe, decorre dos arts. 209º, 211º e 212º da CRP, existirem duas ordens de tribunais, uma delas encabeçada pelo Supremo Tribunal de Justiça e com jurisdição em todas as áreas não atribuídas às outras e a outra que tem como cúpula o Supremo Tribunal Administrativo, com competência para o julgamento das acções e recursos emergentes e que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas e administrativas.
Nos termos do art. 18º da LOFTJ ( Lei da Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ) estabelece-se que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais. É que os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, ou seja, os tribunais especiais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais judiciais determina-se por pois um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiveram conferidas aos tribunais especiais. Haverá pois de determinar se existe qualquer norma, designadamente do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Dec-Lei 129/84 de 27/4 -, em vigor na propositura da acção ) que atribua competência aos tribunais administrativos e fiscais para a presente acção, caracterizada, como já se disse, pelo pedido e causa de pedir já acima indicados.
De harmonia com o art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ( Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Dec-Lei 129/84 de 27/4, hoje já revogado mas aplicável ao caso vertente ), compete os tribunais administrativos conhecer “das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”. Isto é, para apreciação de responsabilidade civil do Estado ( e demais entes públicos e titulares dos seus órgãos e agentes ) por prejuízos proveniente de actos de gestão pública, são competentes os tribunais administrativos. Não se levantando qualquer dúvida em relação ao facto de o demandado IEP ser um ente público ( como melhor iremos ver à frente ) haverá assim que apurar se o facto gerador da responsabilidade em que fundamenta o demandante o seu pedido, reveste ou não um acto de gestão pública.
À falta de definição legal relativamente a actos de gestão pública, teremos que nos socorrer sobre o que se tem entendido sobre isso, doutrinal e jurisprudencialmente.
Gestão pública, nas palavras do Prof. Marcelo Caetano “é a actividade da administração regulada pelo direito público ( Manual, 10ª edição, 2º vol. pág. 1222), ou como refere Vaz Serra ( RLJ 110º, 315 ), actos de gestão pública “são os praticados no exercício de uma função pública para os fins de direito público da pessoa colectiva, isto é, o regido pelo direito público e, consequentemente, por normas que atribuem à pessoa colectiva pública poderes de autoridade”. Ainda conforme se refere no Ac. do Tribunal de Conflitos de 5-11-81 ( BMJ 311º, 195 ) “actos de gestão pública são os que se compreendem no exercício de um poder público, integrando eles mesmos, a realização de uma função pública de pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coerção e independentemente ainda, das regras técnicas ou de outra natureza, que na prática dos actos devem ser observados”. Poder-se-á portanto dizer que, quando a Administração Pública pratica um acto no exercício de um poder público, munida de uma posição de superioridade e no prosseguimento do interesse público, pratica um acto de gestão pública. Autoridade e satisfação de um interesse público, são pois os elementos caracterizadores dos actos de gestão pública.
Aos invés actos de gestão privada serão aqueles em que a entidade colectiva, despida de poder público, actua numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam e, portanto, nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado ( neste sentido Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4-3-2004 in www.dgsi.pt, Acs. do STA ), ou como diz Marcelo Caetano actos de gestão privada “são os que são exercidos pela administração pública despida do seu poder de autoridade, numa posição de paridade com os particulares a que os actos respeitam, logo com submissão às normas de direito privado” ( in Manual de Direito Administrativo, Tomo I, pág. 44 - 10ª edição ).
Face àquela disposição ( art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ) haverá pois que determinar se, face à forma como a acção foi delineada na petição inicial, os prejuízos que os demandantes fazem derivar da obrigação de indemnizar por parte dos RR. (designadamente do R. IEP- entidade pública - ), resultaram ou não de uma actividade deste qualificável como de gestão pública, sendo que só nesta circunstância os tribunais administrativos serão os materialmente competentes para conhecer da acção.
Portanto tudo se reduz a saber se o acto violador dos direitos dos AA. pode ser entendido ou não como um acto de gestão pública.
Como se viu, os AA. pretendem ser indemnizados pelos os prejuízos sofreram em razão da construção incorrecta e defeituosa da auto-estrada A8, mandada efectuar pelo IEP.
Não existem dúvidas que o IEP é um instituto público. Com efeito, o art. 2º nº 1 do Dec-Lei 227/2002 de 30/10, expressamente estipula que “o IEP ( Instituto de Estradas de Portugal ) é um instituto público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio ...
Dentre outras atribuições, compete ao IEP “assegurar a concepção, a construção, a conservação e exploração da rede rodoviária nacional”, “assegurar a fiscalização, o acompanhamento e assistência técnica nas fases de execução de empreendimentos rodoviários” e “zelar pela qualidade técnica e económica dos empreendimentos rodoviários em todas as suas fases de execução” ( art. 4º nº 1 als. g), h) e i) dos estatutos do IEP publicados em anexo ao Dec-Lei 237/99 de 25/6, na redacção introduzida pelo Dec-Lei 227/2002 de 30/10 ).
Como tem vindo a ser entendido, pacificamente, pela jurisprudência, as actividades de concepção, construção ( e conservação ) de estradas/auto-estradas (tarefas atribuídas por lei ao IEP, como acabámos de ver ), são actos de gestão pública (neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 4-3-2004 supra mencionado). Na verdade, como se assinala neste acórdão “a construção e manutenção de vias rodoviárias é uma das mais antigas tarefas da função administrativa, tradicionalmente exercida através da administração indirecta do Estado”. Aliás, o próprio preâmbulo do mencionado Dec-Lei 227/2002 aponta no mesmo sentido, ao referir que “perante as exigências da sociedade moderna e tendo em vista a prossecução do interesse público, no quadro de uma organização administrativa racionalmente ordenada, é imperativo reconduzir a Administração Pública a uma dimensão adequada, norteada por princípios de qualidade, economia e eficiência. Nesta perspectiva, com intuito de melhor assegurar o exercício dos deveres do Estado no domínio do planeamento estratégico e operacional da rede rodoviária nacional e na procura de gestão de recursos, a presente fusão tem a vantagem de concentrar num só organismo a administração da rede rodoviária, cabendo ao Instituto das Estradas de Portugal garantir a unidade intrínseca do planeamento, da concepção, da execução e da gestão da rede rodoviária concessionada e não concessionada ( sublinhado nosso ).
É pois claro que, ao conceber e executar a rede rodoviária nacional, o IEP prossegue interesses públicos ( estando, patentemente, munida de uma posição de superioridade, dado que está investido de um poder público ), donde se deve concluir que esta entidade pública, ao empreender a obra em causa ( construção de uma auto-estrada ), praticou um acto de gestão pública. Por outras palavras, a actividade desenvolvida pelo IEP no caso vertente, é de molde a poder-se integrar no âmbito das competências administrativas que lhe são deferidas por lei, o que vale por dizer que tal actuação reveste a natureza de gestão pública.
Abra-se aqui um parêntesis para sublinhar que, nos termos da petição inicial da acção, os AA., não deduziram pedidos distintos para cada um dos RR., tendo até afirmado, peremptoriamente, em relação ao R. IEP, que este R. é responsável por ser o dono da obra, razão por que achamos impróprio virem agora, em alegações ( com vista a defender a competência material do tribunal judicial onde a acção foi proposta ) tentar atribuir toda a responsabilidade pelos prejuízos sofridos, ao empreiteiro da obra.
Nos termos da salientada disposição ( art. 51º nº 1 al. h) do ETAF ) serão pois os tribunais administrativos, os competentes para conhecer do pleito.
Acrescente-se ainda que também o art. 7º nº 1 do aludido Dec-Lei 227/2002 atribui competência aos tribunais administrativos em relação às acções “tendentes à efectivação da responsabilidade deste Instituto ou dos seus órgãos, emergentes de actos de gestão pública” ( sublinhado nosso ).
Esta competência não sofre alteração pelo facto de intervirem,, junto do R. IEP, as entidades privadas a que acima se aludiu ( neste sentido Ac. do STA de 16-3-2004 in www.dgsi.pt, Acs. do STA ).
Para terminar salientaremos e respondendo, de forma sucinta, à objecção dos recorrentes no que toca ao que dispõe o art. 4º nº 1 dal f) do ETAF ( disposição que exclui da jurisdição administrativa e fiscal, os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público ), que os actos de gestão pública que o IEP realizou, não podem, obviamente, ser reputados como questões de direito privado, pelo que o dispositivo não pode ser aplicado no caso vertente.
A douta decisão recorrida merece pois confirmação.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se provimento ao recurso, mantendo a douta decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.