Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1561/07.9TBCVL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
DÍVIDA
INTERESSADOS
Data do Acordão: 02/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.519, 534, 1348, 1349, 1351 CPC, 236, 238, 2101 CC, 42, 43 C COMERCIAL
Sumário: I. No inventário, não há que notificar os (putativos) devedores do facto de ter sido relacionada uma suposta dívida dos mesmos para com a herança.

II. Pode ser ordenado o exame a determinados documentos de uma sociedade para se apurar o valor de suprimentos que um inventariado tem nessa sociedade (quer ao abrigo do art. 42 quer ao abrigo do art. 43, ambos do Código Comercial).

III. O processo de inventário não se destina à partilha de bens que já tiverem sido partilhados (por todos os interessados e de forma válida).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

                                                          1º agravo

              O 1º recurso, embora relativo aos despachos com as referências 1730442 (fls. 428 a 431) e 1580813 + 1669614, versa apenas o primeiro despacho (a primeira referência), como aliás está decidido por despacho de fls. 9 (deste apenso), sem reclamação.

              Neste primeiro recurso a recorrente, cabeça de casal do inventário, pretende a revogação do despacho que admite e dá sequência instrutória a uma reclamação de um dos interessados no inventário contra a relação de bens apresentada por ela, cabeça-de-casal, reclamação essa que acusa a relação de bens de falta de relacionação de um crédito de suprimentos do falecido sobre uma sociedade comercial.

              Aqui como no seguinte, não houve contra-alegações.

              A Srª juíza titular dos autos mandou subir o agravo – este como o seguinte – entendendo-se que, com isso, sustentou implicitamente a decisão recorrida.

              As questões que as conclusões do recurso da cabeça-de-casal levantam são: a nulidade de tal despacho por ter admitido a reclamação sem previamente notificar aquela sociedade para se pronunciar sobre a existência desses suprimentos; se não devia ter sido ordenada a realização da perícia; a questão da devassa da escrita da sociedade (ou se foram violadas as normas dos arts. 42 e 43 do Código Comercial e arts. 519 e 534 do CPC); do objecto da perícia.

                                                                  I

              A sequência processual à qual se seguiu tal despacho recorrido foi esta, como resulta do teor dos autos, do despacho em causa e do despacho objecto do 2º recurso:

              O interessado veio dizer, a 23/05/2008 (fls. 324 a 330) que faltava relacionar suprimentos feitos à sociedade, no valor de 323.900€.  A cabeça-de-casal respondeu (a 09/07/2008 – fls. 332 a 346) admitindo a existência de suprimentos, mas diz que o crédito actual é apenas de 44.700,63€ e que será esse o valor a relacionar. E a fls. 363 e 364, “em cumprimento do nº. 2 do art. 1349 do CPC, veio aditar à relação de bens os bens confessados nesse articulado” (os tais 44.700,63€). A 20/05/2009 é proferido o despacho com a referência 1730442, no qual pura e simplesmente se determinam as diligências probatórias a ter lugar.  

              Assim, daqui logo decorre que nem sequer existe o despacho recorrido. A admitir-se um despacho implícito de admissão da reclamação, então esse despacho ocorreu antes de 09/07/2008 e não foi objecto de recurso. O despacho de que a cabeça-de-casal recorre não admite a reclamação, dá-lhe apenas uma sequência processual probatória.

              Não é pois do despacho que admite a reclamação aquilo de que a recorrente está a pôr em causa, é sim do facto de, segundo ela, não se ter notificado, apesar de se dever notificar, a devedora do relacionamento de uma putativa dívida da mesma para com a herança.

              A questão é pois esta: a devedora devia ter sido notificada?

              Diz o art. 1348/1 do CPC que, apresentada a relação de bens, são os interessados notificados de que podem reclamar contra ela…

              E o art. 1349/2 do CPC, diz que, tendo o cabeça-de-casal confessado a existência dos bens cuja falta foi acusada, procederá imediatamente […] ao aditamento da relação de bens inicialmente apresentada, notificando-se os restantes interessados da modificação operada.

              Estes interessados são os interessados no inventário, não os interessados na questão que a relacionação das verbas em causa possam levantar.

              A lei tem perfeita consciência da existência de devedores, tal como de credores da herança e, no entanto, só trata estes como interessados. Nos dizeres de Lopes Cardoso (Partilhas Judiciais, Vol. I, Almedina, 4ª edição, 1990, págs. 522/523):
         “como vem da técnica do diploma processual vigente, neste distingue-se entre ‘pessoas directamente interessadas na partilha’ e simples ‘interessados’. Naquela expressão compreende a lei os herdeiros, o meeiro, o usufrutuário de parte da herança sem determinação de valor ou de objecto, e neste vocábulo não só aqueles como ainda os legatários, donatários e credores”.

              Os (putativos) devedores, ao contrário dos (efectivos) credores não são citados para o inventário, nem são notificados da relação de bens (que, aliás, como princípio, deve ocorrer ao mesmo tempo que a citação: art. 1348/3 do CPC).

              E, por isto, é que Lopes Cardoso (obra citada, págs. 558/559) diz, a propósito do art. 1346, equivalente ao art. 1351 do CPC, que:
         “Esta norma corresponde à que se continha no art. 1386 do diploma de 1939 e agora, como então, continuamos entendendo de alcance estreito [em nota acrescenta: […] Simões Pereira […] propôs que os devedores das dívidas relacionadas fossem notificados de que podiam impugnar a obrigação…, mas esta proposta não logrou aceitação]. Praticamente, poucas ou nenhumas vezes poderá ter aplicação, porque os devedores não são citados para o inventário, não têm conhecimento dele e muito menos da descrição da dívida da sua responsabilidade. A aplicação da regra surgirá principalmente no caso do pretenso devedor ser um dos interessados no inventário, hipótese em que lhe ficará consentido tomar a posição aludida no art. 1344 [= 1349 ao vigente no caso dos autos], isto no mesmo requerimento em que, porventura, requeira a exclusão de bens.
         Claro está que, nem pelo facto de não ter vindo ao inventário negar a aprovação à dívida relacionada, ela se tornará certa para o pretenso devedor. E, assim, quando demandado por via dela, ou pelo cabeça-de-casal enquanto indivisa a herança ou pelo interessado a quem foi aformalada no caso contrário, sempre lhe ficarão lícitos os meios de defesa que a lei faculta a todo e qualquer demandado” (no mesmo sentido veja-se Domingos Carvalho de Sá (Do inventário, Descrever, Avaliar e Partir, Almedina, 1993, págs. 83/84).

            É certo que, contra isto tudo, existe o acórdão deste TRC de 20/01/2004, de que está publicado apenas o sumário (3698/03 da base de dados do ITIJ), invocado pela recorrente, com o seguinte teor:
            I. Num processo de inventário em que seja relacionada uma dívida activa, o devedor, ainda que estranho ao processo, deverá ser notificado da apresentação da relação de bens, devendo ser-lhe enviada uma cópia da dita – art. 1348º, nºs 1 e 2, do CPC.
            II. Se uma dívida activa, relacionada pelo cabeça de casal, for negada pelo pretenso devedor, há-de a respectiva descrição manter-se ou eliminar-se depois de ouvidos todos os interessados e de obtidos todos os esclarecimentos necessários. Sendo mantida a descrição, a dívida reputa-se litigiosa; sendo eliminada, entende-se que fica salvo o direito de se exigir o seu pagamento pelos meios comuns.
            III – É em função dos esclarecimentos prestados, mormente pelo cabeça de casal, que o Juiz terá de decidir pela manutenção ou pela eliminação da dívida activa que seja negada pelo devedor, não havendo lugar a qualquer produção de prova com vista à decisão deste tipo de incidente.

              Ora, contra isto diga-se, primeiro, que é o único acórdão que se conhece neste sentido. Segundo, como só está publicado o sumário, não se conhece a respectiva fundamentação. Terceiro, este acórdão faz uma interpretação da lei ao arrepio daquilo que decorre da respectiva letra (a lei fala de interessados, não de estranhos), daquilo que decorre da história do preceito (veja-se a referência feita acima à posição de Simões Pereira, feita por Lopes Cardoso) e daquilo que a doutrina e a prática vem entendendo sobre a questão.

              A seguir-se este acórdão, está-se a criar um imposição de notificação que não consta da lei e que a lei não quis que fosse feita. Tanto que, depois, o acórdão tem que criar uma norma que regule o incidente e o faz em sentido contrário ao que a lei expressamente prevê na norma que regula a questão suscitada na norma invocada pelo acórdão. Dito de outro modo, o art. 1349 do CPC regula a decisão do incidente suscitado pela reclamação apresentada ao abrigo do art. 1348, e para ela prevê a produção de prova, enquanto que o acórdão diz que não há lugar à produção de prova.

              A necessidade de criação de numa norma em sentido contrário àquele que a lei expressamente segue, revela que tal incidente seria uma criação jurisprudencial, sem base legal, a criar um inesperado alçapão, onde se perderiam inúmeros processos (como a lei não diz que os devedores são notificados e a lógica do sistema não implica a sua notificação, a imposição do acórdão nunca seria cumprida espontâneamente e por isso estar-se-iam sempre a praticar nulidades), enredados em nulidades artificiais e sem interesse substancial que o justificasse, dado aquilo que a própria recorrente diz quanto às consequências da relacionação para o putativo devedor: nenhumas.

              Por tudo isto, segue-se a posição doutrinal correcta (correspondente à prática corrente) de que não há que notificar os (putativos) devedores do facto de ter sido relacionada uma suposta dívida dos mesmos para com a herança e, por isso, conclui-se que não foi praticada a nulidade invocada.

                                                                 II

              O juiz decidiu a realização de uma perícia. Poderia não o ter feito (visto que o apuramento do valor do putativo crédito da herança pouco relevo tem; e é isso que justifica a posição final do acórdão do TRC citado acima; e é também isso que justifica a solução prevista no art. 1351 do CPC).

              Mas fê-lo e fê-lo em cumprimento do disposto no art. 1349/2 do CPC e portanto não pode deixar de se entender que o fez bem (até porque revela a tentativa de decidir tudo, sem fugir às questões), juízo que se faz sobre esse despacho, para já ao menos enquanto despacho que determina a produção de uma prova.

              A recorrente entende que o juiz não a devia ordenado, visto que a análise dos documentos que importariam para o efeito não careceria de qualquer conhecimento técnico.

              Os documentos em causa eram: balanços relativos a um exercício anual de duas sociedades; balancetes analíticos de um ano relativos a um mês e ao mês de fecho do exercício dessas sociedades; relatórios de contas dessas sociedades.

              Pretender que a análise destes documentos – matéria que pode ser objecto uma licenciatura universitária – está sempre e necessariamente ao alcance de um entendimento claro e sem dúvidas por um licenciado em Direito, é uma afirmação sem suporte nas regras da experiência comum das coisas.

              Se o juiz entende que não tem conhecimentos suficientes para decidir bem a questão com base na análise daqueles documentos (a que a aliás a recorrente entende que o juiz não devia aceder…), impunha-se que recorresse à perícia e foi isso que fez e, por isso, agora já pode ser dito em termos substanciais, decidiu bem.

                                                                 III

              Quanto à questão da verificação dos pressupostos nos arts. 519 e 534 do CPC e 42 e 43 do Código Comercial.

              O art. 42 do CCom diz que
         A exibição judicial da escrituração mercantil e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade, e no caso de insolvência.

              O art. 43 do CCom diz que:
         1. Fora dos casos previstos no art. anterior, só pode proceder-se a exame da escrituração e dos documentos dos comerciantes, a instâncias da parte ou oficiosamente, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida. 2. O exame da escrituração e dos documentos do comerciante ocorre no domicílio profissional ou sede deste, em sua presença, e é limitado à averiguação e extracção dos elementos que tenham relação com a questão.

              Os casos típicos que têm sido adiantados como concretização de questões de sucessão universal ou de sociedade, têm sido precisamente os casos de morte de um comerciante ou sócio, querendo os herdeiros saber o valor dos bens do falecido (estabelecimento, quotas).

              Neste sentido, veja-se Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, vol. I, pág. 522, citado em Abílio Neto, CCom e Contratos Comerciais, Set2008, Ediforum, pág.48):
         ao aludir às questões de sucessão universal, o art. 42 refere-se ao caso de falecimento do comerciante, em que, para a partilha da herança, se torna necessário conhecer o valor representado pelo estabelecimento, pela exploração mercantil ou pela quota, como elemento do património do falecido.

              e Pinto Furtado (Disposições Gerais do CCom, Almedina, 1984, págs. 115 e 116):
         4.1: sucessão universal: abrange o caso de morte do comerciante em nome individual, podendo a exibição ser requerida não só pelos herdeiros como pelos próprios legatários […];
         4.3: sociedade: “compreende naturalmente todas as situações em que se torne necessário fixar o valor do direito social de qual ou quaisquer sócios” Pinto Coelho, ob. citada, 3ª edição, pág. 573; é admissível a exibição em proveito dos herdeiros ou meeiro no caso de morte de um sócio de sociedade comercial […]) o que logo permitiria o enquadramento do caso no disposto no art. 42 do CCom.

              Para além disso, quem é dito ser devedor de uma herança, tem responsabilidade para com ela, entendida a expressão no sentido que Lopes Cardoso a utilizou acima.

              Mais, depois de no primeiro argumento utilizado no seu recurso a recorrente ter defendido afincadamente que a sociedade tinha interesse na questão (“esta é interessada directa”) e que por isso devia ser notificada da relação da dívida, não faz qualquer sentido que agora também defenda afincadamente a afirmação contrária: “nenhuma das sociedades tem interesse nas questões suscitadas no processo de inventário”.

              Pelo contrário, é evidente o interesse da sociedade na questão.

              Nem se diga que este acórdão cai no vício inverso, pois que neste acórdão não se disse que a sociedade não tivesse interesse na questão da dívida invocada, mas apenas que não era considerada interessada no inventário e por isso não tinha que ser notificada para tal relacionação.

              E, assim, quer pelo lado do interesse, quer pelo lado da responsabilidade, o caso também pode ser enquadrado no art. 43 do CCom.

              De qualquer modo, diga-se ainda que a ré diz que o art. 534 do CPC dispõe sobre a possibilidade de realização de inspecções ou exames às escriturações comerciais, mas este artigo apenas dispõe, como resulta do seu teor, sobre a exibição, por inteiro, da escrituração comercial. Ora, no caso, não se trata de tal, já que o despacho judicial teve o cuidado de limitar a análise à documentação em causa (“elementos da contabilidade, que [o requerente] identifica”). Trata-se pois de um exame parcial, perfeitamente a coberto, também, do art. 43 do CCom, dado o interesse e responsabilidade assinalados, embora também do art. 42 do CCom, dado que se trata de uma questão de sucessão universal e de uma questão de sociedade.

              Os acórdãos citados pela recorrente (do TRC de 29/01/12008 – 2087/03.5TBPBL.C1, e do TRL de 05/05/2005 – 2431/2005-2), que também podia ter citado o ac. de fixação de jurisprudência nº 2/98, de 22/04/1997, publicado no DR, IA, de 08/01/1998, ou sob 087158 da base de dados do ITIJ, nada dizem contra o que se acima se conclui.

              Diz a recorrente que a morte do inventariado não conduziu a uma sucessão dos seus herdeiros na universalidade dos direitos e obrigações das sociedades. Pressupõe pois, a ré, que o art. 42 do CCom só se aplica a questões de sucessão nos direitos e obrigações das sociedades. Mas não é isso o que está em causa no art. 42, artigo que não liga a sucessão universal à sociedade. São duas hipóteses distintas.

              Por outro lado, diz que o reclamante não tem aí sociedade ou comunhão. Esquece que o que está em causa são antes os suprimentos do inventariado na sociedade.

              E assim improcede, no seu todo, o recurso contra o primeiro despacho recorrido.

                                                                IV

              Por fim, diz a recorrente que a perícia visa comprovar ou infirmar factos alegados pelas partes.

              O argumento não tem qualquer valor, pois que, no caso, o reclamante até disse precisamente qual o valor – na sua versão - dos suprimentos e a recorrente, aceitando afinal de contas a sua existência (apesar de não os ter relacionado inicialmente…), deu outro valor. Por isso é que a perícia foi necessária, para se tentar ver qual das duas afirmações era verdadeira.

                                                                 *

                                                       Do 2º agravo

              O 2º recurso versa sobre o despacho de fls. 619 e segs (referência 1998400) na parte em que decidiu a exclusão da verba nº. 3, uma quota do inventariado numa sociedade, e isso com o fundamento de que essa quota já tinha sido partilhada, por todos os interessados e por escritura notarial (depois do óbito e antes de requerido o inventário) e de que não se podem partilhar bens já partilhados.

              O que foi decidido na sequência de uma reclamação de um dos interessados, participante na partilha (e não divisão como lhe chama a recorrente) parcial notarial que se encontra junta aos autos a fls. 121 a 126, da qual resulta que ela foi elaborada expressamente como tal (partilha de apenas um dos bens que compunham a herança).

              A recorrente defendia que não tinha sido feita partilha dessa quota, o que havia era um acordo verbal de partilha de toda a herança do inventariado e que, não sendo respeitado tal acordo verbal, então é como o reclamante tivesse rescindido o acordo verbal.

              E é isto que no essencial continua a defender neste recurso que assim levanta apenas as questões de saber se a quota foi ou não partilhada e qual o valor dessa partilha, bem como qual o valor do acordo verbal de partilha da herança ou da eventual rescisão deste.

                                                                 *

              Sendo todos os interessados (herdeiros, cônjuges dos herdeiros e meeira) maiores e capazes, eles podiam partilhar voluntariamente, sem necessidade do processo de inventário, todos os bens (art. 2102/1 do CC), como podiam partilhar apenas um bem e deixar para um inventário os restantes (quem pode o mais pode o menos).

              Se essa partilha fazia parte de um acordo que não está a ser respeitado, o que a recorrente tinha que fazer era alegar a existência desse acordo e pedir o seu cumprimento em acção própria. Ou, também em acção própria, se tivesse fundamentos para isso, pedir a anulação ou a resolução do acordo global e da partilha parcial e depois então instaurar o processo de inventário.

              O que  ela não podia fazer era dar andamento a este inventário e relacionar todos os bens, como se quer aquela partilha parcial quer o acordo global não existissem ou como se o processo de inventário fosse o meio próprio para anular uma partilha parcial validamente celebrada e validamente formalizada.

              Por outro lado, invocar a rescisão de um acordo verbal por um dos contraentes, não implica que também se esteja a invocar implicitamente a rescisão tácita, e muito menos com eficácia, de uma partilha notarial que faria parte daquele acordo verbal (mas que se diz nem sequer existir), pelo que tem razão a decisão recorrida quando diz que não há razões [no sentido de que não foram invocadas] para pôr em causa a partilha da quota (partilha cuja existência, repete-se, se negava).

              Ainda: não há qualquer possibilidade de interpretação, de acordo com as normas do art. 236 do Código Civil, das declarações que compõem a partilha da quota com o sentido que a recorrente agora pretende (“não visavam partilhar a quota mas definir os seus proprietários…”), nem que mais não fosse porque ela em algum momento o alegou (ao menos segundo o que ela agora diz) e por isso não podia provar, e porque, para além disso, tal não tinha o mínimo de correspondência com o declarado (art. 238 do CC).

              Por fim, não faz também sentido:

              - Pretender que, porque o processo de inventário deve englobar todos os bens de que o falecido era titular à data da sua morte, a quota também devia integrar este inventário, porque aquela afirmação só é verdadeira se se tiver em conta a ressalva formulada correctamente pela sentença: excepto aqueles que já tenham sido validamente partilhados por todos os interessados.

              - Ou pretender que, decidindo-se que pela exclusão da quota, se estará a postergar o direito de algum interessado em vir futuramente optar pela composição do seu quinhão com a entrega de outros bens da herança,  pois que de novo se está a esquecer aquela ressalva, que decorre do facto de ter sido partilhado um bem, de forma válida, por todos os interessados, todos eles maiores e capazes, que livremente criaram a eventual impossibilidade agora invocada pela recorrente.

              Pelo que improcede o recurso.

                                                                 *

              Sumário:

              I. No inventário, não há que notificar os (putativos) devedores do facto de ter sido relacionada uma suposta dívida dos mesmos para com a herança.

              II. Pode ser ordenado o exame a determinados documentos de uma sociedade para se apurar o valor de suprimentos que um inventariado tem nessa sociedade (quer ao abrigo do art. 42 quer ao abrigo do art. 43, ambos do Código Comercial).

              III. O processo de inventário não se destina à partilha de bens que já tiverem sido partilhados (por todos os interessados e de forma válida).

                                                                 *

              Pelo exposto, improcedem os dois recursos de agravo, mantendo-se as decisões recorridas.

              Custas dos recursos pela agravante.


              Pedro Martins ( Relator )
              Virgílio Mateus
              António Carvalho Martins