Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3669/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
HERDEIRO
PRÉMIO DE SEGURO
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2024.º; 2025.º E 1345; 1346.º E 1347.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Nascido, de imediato, o direito do terceiro beneficiário, com o acto de celebração do contrato de seguro, embora sujeito à condição potestativa da sua revogação, por parte do estipulante, presume-se, porém, que, só após o falecimento deste, o terceiro adquire esse direito, porquanto a prestação apenas tem que ser efectuada, após a morte do promissário.
2. Dependendo do falecimento do segurado a aquisição do direito do beneficiário, é manifesto que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja génese, ainda que presuntiva, depende da sua morte, razão pela qual o valor do capital seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora.

3. Inexistindo herdeiros legitimários, não há que relacionar as quantias que a inventariada despendeu com o pagamento dos prémios do seguro de vida.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


A..., marido e outros, nos autos de processo de inventário, instaurados por óbito de B..., em que foram requerentes, e inventariante C..., todos, suficientemente, identificados, interpuseram recurso de agravo da decisão que indeferiu o não relacionamento, pela cabeça-de-casal, de uma aplicação financeira, designada “Top Seguro poupança”, contratada entre a inventariada e a Companhia de Seguros D..., terminando as suas alegações com o pedido da sua revogação e substituição por outra que determine que o cabeça-de-casal relacione o valor de 2322,03 €, pagos pela seguradora á interessada, ou, se assim se não entender, que o cabeça-de-casal relacione o valor do prémio único dispendido pela «de cujus», no contrato “Top Seguro poupança”, formulando as seguintes conclusões:
1ª – A «de cujus» fez uma aplicação financeira a prazo designada “Top Seguro Poupança”, com as condições gerais que constam dos autos, entre elas a garantia de reembolso do capital investido acrescido da remuneração constante da cláusula 4º no final do prazo convencionado e, bem assim, a possibilidade de em qualquer altura reaver esse mesmo capital acrescido das remunerações que até essa data se houvessem vencido, promovendo unilateralmente a resolução do contrato;
2ª – Independentemente da designação, a «de cujus» e a seguradora não celebraram um contrato de seguro de vida mas sim um contrato inominado de aplicação financeira a prazo;
3ª – Independentemente da designação constante das condições gerais do contrato, a entrega que a «de cujus» fez não constitui o pagamento de um prémio característico de um contrato de seguro, uma vez que o valor entregue podia ser reavido em qualquer altura e sê-lo-ia necessariamente no termo do contrato;
4ª – Tal entrega deve antes ser havida por aplicação financeira. Independentemente disso,
5ª – O valor em causa, ou seja, o capital inicialmente investido (dito “prémio”) acrescido das mais valias ocorridas por força da cláusula 4ª das condições gerais da apólice, sempre se manteve na disponibilidade e na titularidade da «de cujus» até à sua morte (em razão, designadamente, do disposto nas cláusulas 2ª e 6ª das condições gerais ditas), pelo que faz parte tal valor do acervo hereditário, devendo ser relacionada a quantia de 2322,03 € que a seguradora pagou à beneficiária E...,
6ª – Se, diversamente, viesse a entender-se estar-se perante um contrato de seguro de vida, deveria ele ser classificado como contrato misto e de prazo fixo de seguro em caso de vida e seguro em caso de morte, tendo-se como prémio a importância investida pela «de cujus»; nesse caso,
7ª – As regras do artigo 450º do Código Civil imporiam que o prémio de seguro devesse ser relacionado a título de doação à dita beneficiária do “Top Seguro Poupança”, titulado pela apólice 12/404.320 da Companhia de Seguros D....
8ª – O douto despacho recorrido, considerando estar em causa tão só uma indemnização paga pela seguradora a um terceiro alheia ao acervo hereditário e decidindo não dever relacionar-se o valor em causa, terá violado o disposto nos artigos 455º do Código Comercial, 450º, 2024º e 2025º nº 1 do Código Civil e 1345º do CPC.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exº Juiz sustentou a decisão questionada, entendendo não ter causado qualquer agravo aos recorrentes, porquanto a indemnização paga pela seguradora constitui um direito próprio do terceiro, a beneficiária designada, E..., e não um direito da herança, sendo certo que aquela não é interessada nos autos de inventário, onde inexistem herdeiros legitimários do «de cujus».
Para além da factualidade que resulta da tramitação processual acabada de relatar, importa, também, destacar, com interesse relevante para a apreciação do mérito do agravo, que se consideram provados os seguintes factos:
1 - Em 23 de Julho de 1996, a inventariada B... subscreveu uma modalidade de contrato de seguro, designada por “Top Seguro Poupança”, com a Companhia de Seguros D..., SA, a que respeita a apólice nº 12/404.320, pelo prazo de oito anos, que contemplava a situação de a pessoa segura ser viva, no fim do prazo de cobertura, ou de morrer, entretanto, com possibilidade, em qualquer delas, de o contrato ser resolvido, por iniciativa do segurado, pagando o segurador, como valor de resgate, um montante igual ao que pagaria pelo falecimento, tendo sido anulado, por falecimento daquela, e paga a indemnização de 2322,03 €, em favor da beneficiária designada, E... – Documentos de folhas 48 a 50.
2 - A beneficiária designada, E..., não é herdeira, legítima ou legitimaria, da inventariada B....

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Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir no presente agravo, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), consiste em saber se constitui objecto de sucessão a importância respeitante a uma aplicação financeira efectuada pela inventariada, designada por “Top Seguro Poupança”, ou, o valor do prémio do seguro despendido.

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DO OBJECTO DA SUCESSÃO

Constituindo a sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam, não fazem parte do seu objecto, isto é, a cuja titularidade ninguém é chamado, aquelas relações jurídicas que devam extinguir-se, por morte do respectivo titular, necessariamente, quer em razão da sua natureza, quer por força da lei ou, por vontade deste, facultativamente, tratando-se de direitos renunciáveis, atento o disposto nos artigos 2024º e 2025º, do Código Civil (CC).
Porém, o âmbito da sucessão não se confina às relações jurídicas do falecido, nem o destino posterior destas se esgota na área de regulamentação contida na disciplina do Direito das Sucessões, propriamente dita.
Assim, nomeadamente, para certos casos de aquisição por morte, como acontece na transmissão por morte do direito ao arrendamento e na aquisição do valor do seguro de vida do «de cujus», pelo respectivo beneficiário, existem regras distintas que fogem ao regime geral sucessório.
No que concerne a esta última situação, estipula o artigo 406º, do Código Comercial, que “no caso de morte…daquele que segurou, sobre a sua própria vida…, uma quantia para ser paga a outrem que lhe haja de suceder, o seguro subsiste em benefício exclusivo da pessoa designada no contrato, salvo, porém, com relação às quantias recebidas pelo segurador, as disposições do Código Civil relativas a colações, inoficiosidade nas sucessões…”, e, coerentemente, na linha do mesmo dispositivo, o artigo 450º, nº 1, do CC, que “só no que respeita à contribuição do promissário para a prestação a terceiro são aplicáveis as disposições relativas à colação, imputação e redução das doações…”.
Por esta razão, entende-se que o valor do seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora, não havendo, por isso, lugar, quanto a este bem, à aplicação das regras gerais da sucessão, designadamente, em matéria de cálculo do valor total da herança, de inoficiosidade e de colação, exceptuando a situação dos prémios de seguro pagos à seguradora, que se encontram sujeitos ao regime civilístico da colação e da inoficiosidade, porquanto a lei comercial os considera como doações indirectas (Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 1992, 163 e ss.; R. Capelo Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, 2000, 4ª edição renovada, 314 e 315; Galvão Teles, Direito das Sucessões, 1991, 78 e ss.; Oliveira Ascensão, Direito das Sucessões, 2000, 250; RLJ, Ano 41º, 39 e 40; Ano 50º, 391 e 392; RT, Ano 52º, 340 e 347.).
Revertendo à situação factual dos autos, importa reter que a inventariada subscreveu uma modalidade de contrato de seguro, denominada “Top Seguro Poupança”, com a Companhia de Seguros D..., SA, pelo prazo de oito anos, que contemplava a hipótese do seu decesso, no decurso do referido período, designando, então, como beneficiária da respectiva indemnização, a pessoa de um terceiro, que não era seu herdeiro legítimo ou legitimário e, igualmente, a hipótese da sua sobrevivência, no fim do aludido prazo de cobertura, pertencendo-lhe, então, o direito à correspondente indemnização.
Por outro lado, o referido contrato de seguro não foi resolvido, nem o segurado procedeu à alteração da designação da beneficiária, E....
Na maioria dos seguros de vida, em caso de morte, a prestação prometida pelo segurador não se destina ao segurado contratante, mas antes a terceiros beneficiários, a quem devem ser pagas as importâncias seguras.
Efectivamente, preceitua o artigo 455º, do Código Comercial, que “os seguros de vida compreenderão todas as combinações que se possam fazer, pactuando entregas de prestações ou capitais em troca da constituição de uma renda, ou vitalícia ou desde certa idade, ou ainda do pagamento de certa quantia, desde o falecimento de uma pessoa, ao segurado, seus herdeiros ou representantes, ou a um terceiro, e outras quaisquer combinações semelhantes ou análogas”.
Constitui-se, assim, um verdadeiro contrato a favor de terceiro, a que se reconduz o contrato de seguro, a benefício de terceiro, definido pelo artigo 443º, do CC, como aquele em que um dos contraentes, o promitente, atribui, por conta e á ordem de outro, o promissário, uma vantagem a um terceiro, o beneficiário, estranho á relação contratual, mas titular definitivo e autónomo do direito de crédito de exigir do promitente o cumprimento da prestação, e não um simples destinatário da prestação (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 251 e 252; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e actualizada, 134; STJ, de 21-6-97, BMJ nº 468, 384.).
O contrato a favor de terceiro é, essencialmente, o instrumento de que o promissário se serve para efectuar uma atribuição patrimonial indirecta, porquanto obtida através da prestação do promitente, em benefício de terceiro.
Como assim, exceptuando a hipótese de revogação do contrato pelo promissário, o que não ocorreu, no caso em apreço, o terceiro beneficiário adquire o direito á prestação, como efeito imediato do contrato, independentemente da aceitação, ou até do conhecimento da celebração do contrato, excepto se a prestação houver de ser efectuada, após a morte do promissário, caso em que o seu nascimento é diferido para momento posterior à celebração do contrato, porquanto, nesta situação, se presume que, só depois do falecimento deste, o terceiro adquire o direito à prestação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 444º, nº 1, 448º, nºs 1 e 2, e 451º, nº 1, todos do CC, presunção esta que tem como objectivo evitar que a prestação prometida possa vir a ser penhorada ou apreendida, em processo de insolvência do terceiro, em vida do promissário (Vaz Serra, Contratos a Favor de Terceiro, Contratos de Prestação por Terceiro, BMJ, nº 51, nº 15; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 251, nota 166; 257, 259 e nota 183.) .
Deste modo, na hipótese em análise, a aquisição do direito à prestação do seguro, pelo terceiro beneficiário, estava dependente da morte do segurado, facto esse através do qual se torna operante, e em que consiste o risco a cobrir pelo seguro, de cujo evento depende a exigibilidade daquela prestação, como termo suspensivo da sua atribuição.
Por consequência, nascido, de imediato, o direito do terceiro beneficiário, com o acto de celebração do contrato de seguro, embora sujeito à condição potestativa da sua revogação, por parte do estipulante, presume-se, porém, que, só após o falecimento deste, o terceiro adquire esse direito, porquanto a prestação apenas tem que ser efectuada, atento o estipulado pelo artigo 451º, nº 1, do CPC, após a morte do promissário.
E, não fazendo parte do património do estipulante o capital segurado, antes visando protegê-lo contra as pretensões de herdeiros e credores, consoante o carácter previdente dos seguros, no contrato de seguro a favor de terceiro, as disposições relativas á colação, imputação e redução das doações por inoficiosidade só são susceptíveis de aplicação aos prémios pagos pelo promissário, consoante decorre do disposto pelos artigos 460º, do Código Comercial, e 450º, nº 1, do CC, já analisados, porquanto se trata dos únicos valores que aquele retira do seu património para obter o capital seguro.
Assim sendo, designado o beneficiário pelo estipulante, os herdeiros deste apenas podem socorrer-se das disposições relativas á colação, imputação e redução das doações, não pelo valor da prestação da seguradora, ou seja, em relação a todo o benefício percebido pelo terceiro, mas, tão-só, pela importância dos prémios pagos, isto é, quanto ao seu custo no património do promissário e até ao limite destes (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 265, Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, 361; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 1987, 431 e 432). .
Com efeito, o cabeça-de-casal deve relacionar todos os bens da herança que hão-de figurar no inventário, ainda que a respectiva administração lhe não pertença, nos termos das disposições combinadas dos artigos 1345º, nº 1, 1346º, nº 1, 1347º, nº 1 e 1348º, nº 3, do CPC.
Mas, não se encontrando as importâncias dos seguros, em poder do autor da herança, não podem reputar-se como bens da mesma, porquanto a esta só pertencem os bens e direitos que estão na posse do «de cujus».
Ora, presumindo-se que o capital nasce com a morte do segurado, com o fim da sua personalidade jurídica, dependendo do falecimento deste a aquisição do direito daquele, é manifesto que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja génese, ainda que presuntiva, depende da sua morte.
Daqui resulta que, inexistindo herdeiros legitimários, e, aliás, nem sequer legítimos, não há que relacionar as quantias que a inventariada despendeu com o pagamento dos prémios do seguro, quer para serem conferidas pelo herdeiro porventura beneficiado com o seguro, quer para os demais efeitos previstos no artigo 450º, do CC (Vaz Serra, Contratos a Favor de Terceiro, Contratos de Prestação por Terceiro, BMJ, nº 51, 197.).
Como assim, impõe-se declarar, como conclusão necessária, que o valor da aplicação financeira contratada pela inventariada não faz, com o devido respeito, parte do acervo hereditário e, consequentemente, não tem que ser relacionado pelo cabeça-de-casal, nem, no caso em apreço, o valor do prémio único do seguro despendido.

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CONCLUSÕES:

I - Nascido, de imediato, o direito do terceiro beneficiário, com o acto de celebração do contrato de seguro, embora sujeito à condição potestativa da sua revogação, por parte do estipulante, presume-se, porém, que, só após o falecimento deste, o terceiro adquire esse direito, porquanto a prestação apenas tem que ser efectuada, após a morte do promissário.
II - Dependendo do falecimento do segurado a aquisição do direito do beneficiário, é manifesto que uma pessoa não pode adquirir um direito cuja génese, ainda que presuntiva, depende da sua morte, razão pela qual o valor do capital seguro não transita pelo património do segurado para o património do beneficiário, não é recebido, pelo beneficiário, do «de cujus», mas, directamente, da seguradora.
III - Inexistindo herdeiros legitimários, não há que relacionar as quantias que a inventariada despendeu com o pagamento dos prémios do seguro de vida.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar não provido o agravo e, em consequência, em confirmar, inteiramente, a douta decisão recorrida.

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Custas, a cargo dos agravantes.