Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2184/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NULIDADE FORMAL
Data do Acordão: 09/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.7° N.º 1 DO RAU, ARTS.220.º, 286.º, 289.º DO CC.
Sumário: 1. Celebrado um contrato de arrendamento para habitação, sem que tenha sido reduzido a escrito, nos termos do art.7° n.º 1 do RAU, e não tendo sido apresentado o recibo de renda, único meio para a convalidação do contrato, o mesmo é nulo, por falta de forma legal, sendo a nulidade de conhecimento oficioso (arts.220.º e 296.º do CC ).
2. Se as partes em virtude de um contrato nulo fizerem prestações ou cumpriram durante algum tempo uma obrigação de trato sucessivo, em princípio há lugar a uma "relação de liquidação", cujo objectivo é estabelecer no possível uma situação tal como existisse se não houvesse realizado os actos de cumprimento.
3. Declarada a nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma, o arrendatário fica obrigado, não só a restituir ao senhorio o locado, como também a pagar-lhe uma indemnização pela utilização do mesmo, correspondente, em regra, ao montante das rendas acordadas, enquanto tal utilização se mantiver.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

A Autora – A... – instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande, acção declarativa, com forma de processo sumário, contra os Réus – B... e mulher C....
Alegou, em resumo:
Na qualidade de cabeça de casal e interessada na herança indivisa por óbito de D..., em Outubro de 2001, deu verbalmente de arrendamento aos Réus uma casa, pertencente à herança, pela renda mensal de € 225,00.
Os Réus não pagaram as rendas vencidas de Dezembro/2002 a Junho/2003, no valor global de € 1.350,00, sendo fundamento legal da resolução do contrato ( art.64 nº1 a) do RAU ).
Pediu a condenação dos Réus a despejarem imediatamente o locado, bem como a pagar à Autora as rendas vencidas e vincendas até efectivo despejo.
Citados regularmente, os Réus não contestaram.
Foi proferida sentença que decidiu julgar a acção improcedente a absolver os Réus dos pedidos.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, concluindo, em resumo:
1º) - Para conhecer da nulidade, por falta de forma, de contrato de arrendamento, é necessário que no processo judicial em que a nulidade é apreciada, intervenham todos os contraentes que intervieram no contrato nulo.
2º) - Como os Réus não tiveram intervenção no processo, apesar de devidamente citados, a nulidade do contrato não poderia ser conhecida, sendo a sentença nula ( art.668 nº1 d) e e) do CPC ).
3º) - Mesmo que tal nulidade pudesse ser apreciada e a existir, o tribunal teria que conhecer das restantes questões, ou seja, a condenação do arrendatário a restituir o locado à Autora e pagar-lhe as rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega.
4º) - Ao não conhecer destas questões, a sentença é nula por omissão de pronúncia ( art.668 nº1 d) do CPC ).
Não foram apresentadas contra-alegações.
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O objecto do recurso:
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões, são essencialmente duas as questões essenciais que impor decidir:
a) - Se a sentença é nula, por o tribunal a quo conhecer oficiosamente da nulidade do contrato de arrendamento, por vício de forma, sem que os Réus tivessem intervenção no processo, apesar de regularmente citados;
b) - Se a sentença é nula, por omissão de pronúncia, em virtude de, conhecida a nulidade, não condenar a os Réus a restituírem o locado à Autora e pagar-lhe as rendas vencidas e vincendas até efectiva entrega.
2.2. – Os factos provados:
1)- A autora é interessada e cabeça-de-casal na herança indivisa, aberta por óbito de seu marido, Ernesto da Costa Gréu, falecido em 26 de Março de 1993.
2)- Do acervo hereditário faz parte uma casa térrea, com vários anexos, pátio e quintal, sita no lugar de Pedrulheira, freguesia e concelho da Marinha Grande, descrita na Repartição de Finanças desta cidade.
3)- Por acordo verbal, deu de arrendamento aos réus uma casa térrea denominada de anexo, identificada pelo nº4 da Rua Augusto Costa, no mencionado lugar de Pedrulheira, com início em Outubro de 2001, pelo valor mensal de €225, a depositar em conta da Caixa Geral de Depósitos de que a autora é titular.
4)- Os réus não pagaram esse valor nos meses de Dezembro de 2002, Janeiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2003.
A estes factos, descritos na sentença, acrescem ainda os seguintes, os quais também se consideram confessados ( arts.483 e 484, por remissão do art.463 nº1 do CPC ):
5)- Os contadores da electricidade e da água da casa arrendada mantiveram-se em nome da Autora.
6)- Foi acordado entre as partes que os respectivos consumos seriam pagos pelos Réus.
7)- A Autora teve de pagar do seu bolso os consumos de electricidade dos Réus, vendo-se obrigado a requerer a cessação do fornecimento de tal serviço.
8)- A Autora tentou verbalmente, na pessoa de sua filha, junto dos Réus, a entrega das chaves da casa ou o pagamento das rendas, regularizando a situação, mas sem êxito.
9)- Em Maio de 2003, a Autora tentou, através da sua mandatária, o pagamento extra-judicial das rendas em dívida.

2.3. – 1ª QUESTÃO:
A sentença recorrida considerou nulo, por vício de forma, o contrato de arrendamento ( art.7º nº1 do RAU e arts 220 e 286 do CC ).
Sustenta a apelante que o tribunal não podia conhecer oficiosamente da nulidade do contrato, sem intervenção dos Réus no processo, o que implica a nulidade da sentença ( art.668 nº1 d) e e) do CPC ).
Sobre a forma do contrato de arrendamento, o RAU ( aprovado pelo DL 321-B/90 de 15/10 ) introduziu duas alterações significativas:
Sujeitou a forma escrita todos os contratos de arrendamento ( art.7º ), com excepção dos arrendamentos de “ regime especial “, previstos no art.5º nº2;
Relativamente aos novos arrendamentos, revogou o artigo 1º do DL 13/86 de 23/1 e o nº3 do art.1029 do Código Civil, que constituíam aplicações do princípio do melhor tratamento do arrendatário, que desde há muito, enformava o direito do arrendamento predial.
A nulidade do arrendamento por falta de forma reconduz-se, em princípio, à nulidade de direito comum ( art.286 do CC ), podendo ser invocada a todo o tempo e declarada oficiosamente ( cf. PEREIRA COELHO, RLJ ano 126, pág.196, Ac da RP de 29/5/2003, C.J. ano XXVIII, tomo III, pág.182 ).
Nos arrendamentos para habitação por prazo igual ou inferior a seis anos, devem ser celebrados por escrito, como dispõe o nº1 do art.7º do RAU.
A inobservância de forma só pode ser suprida pela exibição de recibo de renda e determina a aplicação do regime de renda condicionada, sem que daí possa resultar aumento de renda ( art.7º nº3 ).
A sentença recorrida, na esteira de determinada orientação doutrinária e jurisprudencial, entendeu que com a exibição do recibo de renda opera-se a conversão ope legis do contrato verbalmente convencionado num arrendamento de renda condicionada, ou seja, dá-se a convalidação do contrato nulo ( cf., por ex., JANUÁRIO GOMES, Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., pág.62, ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado II, 4ª ed., pág.498, PINTO FURTADO, Manual do Arrendamento Urbano, pág.347 ).
Uma vez que não foi apresentado o recibo de renda, único meio para a convalidação do contrato, o contrato de arrendamento celebrado entre as partes é nulo, por falta de forma legal, sendo a nulidade de conhecimento oficioso ( arts.220 e 296 do CC ).
A objecção do apelante, no sentido de que a revelia dos Réus obsta ao conhecimento oficioso da nulidade, não tem qualquer consistência jurídica, tanto mais que nem a justifica legalmente.
Por isso, estava o tribunal a quo legitimado a conhecer da nulidade do contrato, por falta de forma, logo não se verifica a pretensa nulidade da sentença.

2.4. - 2ª QUESTÃO:
Quanto à segunda questão, é por demais evidente a omissão de pronúncia ( art.668 nº1 d) do CPC ), visto que a sentença recorrida não declarou o contrato nulo e deveria tê-lo feito, com as implicações inerentes, face ao Assento do STJ de 28/3/95 ( DR 1ª Série A de 17/5/95 ) – “ Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no nº1 do art.289 do Código Civil “.
Este Assento, agora transformado em acórdão de uniformização de jurisprudência, tem aplicação às acções de despejo fundadas em contrato cuja nulidade seja decretada ( cf. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol I, 2ª ed., pág.52 ).
Afirmada a nulidade formal do contrato de arrendamento, ela opera retroactivamente, o que implica haver lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio ( art.289 do CC ).
Com efeito, um contrato nulo não o torna inexistente, já que o negócio existe como acto realizado, fundando-se, assim, uma “ relação de liquidação “.
A restituição é devida com fundamento na nulidade e não com base no enriquecimento sem causa, dado o seu carácter subsidiário ( cf., por ex., ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª ed., pág.263 e 264, Ac STJ de 10/12/85, BMJ 352, pág.417, Ac RC de 6/11/84, C.J. ano IX, tomo V, pág.56 ).
A restituição abrange tudo o que haja sido prestado, ainda que pelo valor correspondente, se não for possível a restituição em espécie, de modo a que as partes sejam colocadas na situação objectiva que tinham antes da celebração do contrato ou como se este não tivesse sido realizado.
Se as partes em virtude de um contrato nulo fizerem prestações ou cumpriram durante algum tempo uma obrigação de trato sucessivo, em princípio há lugar a uma “ relação de liquidação “, cujo objectivo é estabelecer no possível uma situação tal como existisse se não houvesse realizado os actos de cumprimento ( LARENZ, Derecho Civil, Parte General, pág.624 e 625 ).
Como refere MOTA PINTO, a propósito da nulidade do contrato de arrendamento, o senhorio deve restituir as rendas recebidas e o inquilino deve o valor objectivo do uso e fruição do prédio, compensando-se nesta medida os deveres de restituição ( Teoria Geral, pág.475, nota 1 ).
Assim, no caso de nulidade do contrato de arrendamento, a obrigação do locatário de restituir ( art.289 nº1 do CC ) abrange não só a entrega do locado, como o pagamento do valor correspondente à sua utilização ( rendas acordadas e não pagas ) ( cf., por ex., Ac RL de 28/11/96, C.J. ano XXI, tomo V, pág.113 ).
Ou seja, declarada a nulidade do contrato de arrendamento, por falta de forma, o arrendatário fica obrigado, não só a restituir ao senhorio o locado, como também a pagar-lhe uma indemnização pela utilização do mesmo, correspondente, em regra, ao montante das rendas acordadas, enquanto tal utilização se mantiver.
Também VAZ SERRA, embora partindo do pressuposto de que a restituição de prestações feitas em execução de um contrato nulo é um caso de restituição do indevido, opina que o valor do uso obtido deve coincidir com as prestações convencionadas ( RLJ ano 109, pág.313 ).
Pois bem, a sentença recorrida, apesar de conhecer da nulidade do contrato de arrendamento, não a declarou e muito menos aplicou a norma do art.289 nº1 do CC, argumentado, em síntese, não estar provado que os Réus detivessem o gozo do imóvel.
Com o devido respeito, não concordamos com esta posição, pois não se teve em conta todos os factos alegados na petição inicial, os quais se consideram confessados, em virtude da revelia dos Réus ( cf. arts.11º a 17º ).
Na verdade, se o contrato se iniciou em Outubro de 2001, se o Autor teve de pagar o consumo da electricidade, nos termos acordados, e tendo providenciado, sem êxito, pela entrega das chaves ou pelo pagamento das rendas, isto só pode significar que os Réus detiveram o local arrendado.
Por conseguinte, procede a apelação e em substituição da sentença recorrida ( art.715 nº1 do CPC ), impõe-se declarar nulo o contrato e condenar os Réus a pagarem ao Autor, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, as rendas vencidas em dívida, no valor global de € 1.350,00 e as vincendas até efectiva entrega.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida.
2)
Declarar a nulidade, por falta de forma, do contrato de arrendamento celebrado verbalmente entre a Autora e os Réus, tendo por objecto uma casa térrea denominada de anexo, identificada pelo nº4 da Rua Augusto Costa, no lugar da Pedrulheira.
3)
Condenar os Réus a pagarem à Autora, a título de indemnização pela ocupação do imóvel, a quantia de € 1.350,00 ( mil trezentos e cinquenta euros ), correspondente ao valor das rendas vencidas e não pagas relativamente aos meses de Dezembro de 2002 até Junho de 2003 ( inclusive ) e o valor das rendas vincendas, à razão de € 225,00 ( duzentos e vinte e cinco euros ) por mês, até à efectiva entrega.
4)
Condenar os Réus nas custas, em ambas as instâncias.
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COIMBRA, 28 de Setembro de 2004.