Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
488/07.9GCACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DEVERES
Data do Acordão: 10/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 50º E 51º, DO C. PENAL
Sumário: Os deveres condicionadores da suspensão da execução da pena terão de obedecer a um princípio de razoabilidade (cfr. n.º 2, do art.º 51.º, do C. Penal), ou seja, deverão poder ser satisfeitos pelo condenado de acordo com as suas normais possibilidades, devendo, porém, traduzir um sacrifício para o visado, de modo a fazer-lhe sentir a natureza punitiva de um tal dever.
Será na conjugação destes dois vectores - reforço das finalidades da punição e normal possibilidade de cumprimento - que se hão-de definir os deveres condicionadores da suspensão da execução da pena.
Assim, em caso algum devem ser impostos ao arguido deveres, sem que seja viável a possibilidade do seu cumprimento.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, os arguidos:
- A..., casado, reformado, … e residente em …; e
- B..., casado, gerente comercial, residente em … ,
aos quais está imputada;
- Arguido A...: a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de omissão de auxílio, p. e p., respectivamente, pelos artigos 137.º, n.º 1 e 200.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código Penal;
- Arguido B…: a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo artigo 200.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
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2. O Centro Hospitalar de Coimbra, EPE deduziu pedido de indemnização civil contra a Companhia de Seguros “W...”, reclamando o reembolso de despesas decorrentes da assistência prestada a C..., em consequência do acidente de viação de que este foi vítima, ocorrido em 15/12/2007, na Avenida … - tudo nos termos que se alcançam de fls. 229 a 230.

O Instituto de Segurança Social IP - Centro Nacional de Pensões deduziu pedido de indemnização civil contra o Fundo de Garantia Automóvel e os arguidos, reclamando o reembolso de despesas de funeral, no valor de € 1.369,50, que havia pago a D..., filho de C..., em consequência do acidente de viação de que este foi vítima - tudo nos termos que se alcançam de fls. 268 a 271.
Por despacho de fls. 370 a 372, foi o Fundo de Garantia Automóvel absolvido da instância civil enxertada na acção penal, por falta de legitimidade, e formulado convite ao Instituto de Segurança Social IP - Centro Nacional de Pensões no sentido de requerer a intervenção principal provocada da aludida Companhia de Seguros “W...”, convite ao qual aquele Instituto acedeu através de requerimento de fls. 397 a 398, e que foi admitido a fls. 400 a 402.

Por sua vez, os ofendidos D… e sua irmã E..., filhos da vítima C..., formularam pedido de indemnização civil contra a aludia Companhia de Seguros, tendo em vista a condenação desta no pagamento aos demandantes da quantia global de € 429.0006,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros legais a contar da notificação da demandada para contestar o referido pedido e até efectivo e integral pagamento, tudo nos termos que se alcançam de fls. 246 a 255 dos autos.
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Em sede de audiência de discussão e julgamento, foram celebrados os acordos constantes a fls. 427 e 428 [termos de transacção] entre os demandantes D… e sua irmã E... e a demandada “W... Seguros, SA”, e, bem assim, entre os demandantes Centro Hospitalar de Coimbra, EPE e Instituto de Segurança Social IP - Centro Nacional de Pensões e a mencionada Companhia de Seguros, os quais foram devidamente homologados por sentença, proferida a fls. 428, tendo sido julgada extinta a respectiva instância cível relativa a cada um dos pedidos cíveis formulados, por força do disposto no artigo 287.º, al. d), do Código de Processo Civil.
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3. Por sentença de 9 de Fevereiro de 2011, o tribunal proferiu decisão do seguinte teor:
- Absolveu os arguidos A... e B... da prática do crime de omissão de auxílio;
- Condenou o arguido A..., como autor material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, declarada suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, sob condição de o condenado entregar à Associação de Apoio às Vítimas (APAV), no mesmo prazo de 1 (um) ano, fazendo prova no processo, a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros).
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4. Inconformado, o arguido interpôs recurso, tendo formulado na respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
A) Foi dado como provado:
1. No dia 15 de Dezembro de 2007, cerca das 21h15m, na Avenida …, em …, área e comarca de Alcobaça, no sentido IC2-Rotunda em direcção ao centro da Vila da Benedita, o arguido A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, pertencente a F...;
2. A estrada no local é uma recta, sem obstáculos à visibilidade, existindo duas faixas de rodagem, atento o sentido em que o arguido circulava, e duas em sentido contrário, divididas por um separador central com cerca de 1,20m;
3. A via em que o arguido circulava é composta por um sentido único e duas vias de circulação e o piso é asfaltado e encontrava-se em bom estado;
4. Era noite, o tempo estava bom e no local existiam postes de iluminação;
5. A velocidade permitida para o local é de 50 km/h;
6. O arguido A... circulava com uma taxa de álcool no sangue de 1,12g/l;
7. No mesmo local e nas mesmas circunstâncias de tempo seguia a pé C...;
8. No momento em que C... se encontrava a atravessar a passadeira existente no local, o arguido A... não parou o veículo e embateu naquele com a parte lateral direita do veículo por si conduzido, tendo-o projectado cerca de 8 metros;
9. O arguido, não dominou o veículo ou contornou o peão, não obstante inexistir qualquer impedimento de trânsito para a realização de uma manobra de desvio;
10. O arguido A..., não obstante a visibilidade do local lhe permitir, ao início da recta, atentar no posicionamento do peão pelo menos a cerca de 150m, continuou a sua marcha, sem travar, sem abrandar ou sem se desviar;
11. Deste embate e queda que se lhe seguiu resultaram para a vítima lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autópsia de fls. 96 a 102, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente lesões traumáticas meníngeas, torácicas, raqui-meningo-medulares dorsais e dos membros inferiores, complicadas de falência multi-orgânicas, lesões estas que foram causa adequada da morte de C...;
12. Após ter ocorrido o referido atropelamento, o arguido B...deslocou-se ao local num veículo ligeiro, de marca BMW, cuja matrícula não foi possível apurar e por si conduzido;
13. Em momento não concretamente apurado, os arguidos abandonaram o local no veículo automóvel conduzido por B...;
14. O arguido A..., ao agir como o descrito, sabia que, perante a aproximação de um peão em plena travessia da via, deveria ter observado regras de cuidado que era capaz de cumprir e não acatou, designadamente imprimir menor movimento e velocidade à viatura, travando se necessário ou contornando o peão, manobras que sem sequer esboçou fazer, sendo que nenhum obstáculo existia à realização de tais manobras de segurança;
15. Os arguidos agiram de modo livre, deliberada e conscientemente;
16. O arguido A... bem sabia que a sua conduta era proibida por lei;
Mais se provou que:
17. O Arguido A... está actualmente reformado, auferindo, a título de reforma, a quantia mensal aproximada de 379,00€; a sua mulher é doméstica; vive com esta, em casa própria; tem três filhos, já maiores de idade e independentes; possui três viaturas: o identificado nos autos, já reparado, marca “volkswagen”, modelo golf, do ano de 2001, um outro da mesma marca e modelo do ano de 2006, e uma carrinha, marca “Ford”, modelo “Transit”, do ano de 1994;
18. O arguido A... é uma pessoa bem inserida na comunidade, sendo considerado e estimado pelos seus amigos e conhecidos;
19. Como habilitações literárias o arguido A... tem a 4.ª classe de escolaridade…;
20.Os arguidos não têm antecedentes criminais;
B) O arguido A... prestou declarações, negando categoricamente que o peão tenha sido atropelado na passadeira;
C) Na realidade aquando do seu depoimento, (gravado no sistema do Tribunal), esta testemunha apenas referiu um conjunto de circunstancias muito vagas, relativamente ao embate e que o mesmo teria ocorrido na passadeira;
D) No entanto todos os aspectos relacionados com o após acidente, a mesma testemunha não soube esclarecer com clareza o tribunal da forma como os mesmos ocorreram;
E) O Tribunal a quo, valorizou o depoimento desta testemunha, como a única testemunha presencial, sendo que esta mesma testemunha só em alguns aspectos esclareceu o tribunal, sendo que quanto a outros ficou completamente em contradição com a restante prova produzida;
F) Não podemos entender como o tribunal a quo pode valorizar o depoimento de uma testemunha em determinados aspectos e, quanto a outros, a mesma testemunha já não apresenta a mesma credibilidade;
G) O arguido atropelou a vítima na passadeira;
Que o condutor abandonou o local;
Que a vítima foi em cima do capot;
Que após o atropelamento assistiu a tudo através do espelho retrovisor do seu carro, o qual se encontrava estacionado do lado oposto da via de trânsito;
Tal via de trânsito tem em toda a sua largura 14m;
H) Referiu ainda que o arguido abandonou o local, num veículo que circulava na mesma via de trânsito, quando todas as testemunhas afirmaram que a viatura onde o arguido seguiu circulava no sentido contrário;
I) Após presenciar o embate, a testemunha não saiu do seu carro, quer para prestar assistência à vítima, quer para ver o que se tinha passado;
G) Perante este depoimento, eis que para o Tribunal a quo estamos perante uma testemunha credível;
H) Na verdade um acidente é uma dinâmica de factos que, só no seu conjunto, podem ser valorados e nunca individualmente;
I) O depoimento da testemunha F..., não foi credível, em nenhum dos seus aspectos, sendo que a maioria deles se encontram em contradição;
J) Na realidade, a testemunha apenas referiu que o atropelamento foi na passadeira; todos os demais factos a mesma testemunha teve falhas de memória e hesitações;
K) Referiu que a vítima foi alguns metros em cima do capot do carro; ora da dinâmica do acidente, tal não é verosímil;
L) Atento as características da viatura, aos locais de embate e danos na viatura, não é possível que o tribunal, pelo depoimento desta testemunha, possa considerar que a vítima ainda foi alguns metros em cima do capot;
M) Ora se fosse o caso, a vítima teria caído para a frente da viatura e não para o lado como aconteceu neste caso;
N) É visível na viatura o seu espelho retrovisor direito partido, em resultado do embate da vítima;
O) Ora se a vítima foi colhida de frente, como é possível que a mesma tenha partido o espelho do lado direito; não é possível, analisando uma qualquer dinâmica que o acidente possa ter tido;
P) Outro aspecto importante e também resultante das fotos juntas aos autos pelo arguido, a característica do veículo, nunca poderia projectar a vítima para a frente, mas sim para cima do capot, e depois para o lado, ou quando muito para trás;
Q) Outro aspecto que o tribunal a quo não poderia deixar de analisar tem a ver com o depoimento da testemunha F..., que afirmou ver todos os factos após o acidente através do espelho retrovisor da sua viatura, sendo que se manteve dentro da mesma;
R) Neste aspecto tal é de todo impossível; na realidade e conforme consta no croqui, a avenida onde ocorreu o acidente tem 14 metros de largura; foi dado como provado que a testemunha estava estacionada do lado oposto ao local onde ocorreu o acidente;
S) A testemunha, dentro da sua viatura, acompanhou o pós acidente pelo espelho retrovisor da sua viatura; porquanto, tal não era possível ter acontecido, o anglo de visão do espelho retrovisor não permite ver a uma largura de pelo menos 12m, na realidade o espelho retrovisor permite a visibilidade em profundidade e lateral mas nunca a uma largura de 12m;
W) Como pode o tribunal a quo valorar o depoimento desta testemunha, quando do seu depoimento resultam factos que não podem estar em conformidade com a dinâmica de um acidente desta natureza;
T) Na verdade, esta testemunha apenas depôs perante o tribunal num contexto de facilitismo, “o atropelamento foi na passadeira”; quanto aos demais factos associados e necessários para manter a sua credibilidade, dos mesmos resultou serem hesitantes e pouco consistentes;
U) Resulta, pois, que o depoimento da testemunha (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, início da gravação: 00.00:01 - fim da gravação: 00:003:47, não deveria ser valorizado como foi pelo tribunal;
V) Donde resulta necessariamente que o tribunal não deveria dar como provado os pontos 8 e 9 do n.º 1 (factos provados) da douta sentença, e, em consequência, deveria o arguido A... ser absolvido do crime em que foi condenado, o que desde já se requer;
X) Foi o arguido condenado na pena suspensa de l ano, sob a condição de, no prazo de um ano, entregar à Associação de Apoio Às Vitimas de Crimes Violentos - APAV -, fazendo prova no processo, a quantia de € 2,500 (dois mil e quinhentos euros);
Y) Entendemos que os rendimentos do arguido não lhe permitem suportar a quantia de 2,500,00€, como condição de suspensão da pena de prisão;
Z) Os seus rendimentos, de 379,00€, a título de reforma, sem que a sua esposa receba qualquer tipo de rendimento, implica que o arguido fique sem rendimentos para a sua sobrevivência;
AA) Além da pena de prisão em que foi condenado, a imposição decretada pelo Tribunal, impõem ao arguido um agravamento tal, que ultrapassa a medida da pena.
BB) Resulta claro que, esta imposição, como condição da suspensão da pena, é para o arguido uma verdadeira pena de “prisão efectiva”, pois mesmo com muito boa vontade os valores por si auferidos apenas são suficientes para a sua alimentação diária e de sua esposa;
CC) Porquanto, a considerar a prova produzida e assente neste caso concreto, não deveria o arguido ser condenado ao pagamento à APAV, como condição de suspensão da pena, sendo pois que o mesmo é primário, nem consta do seu registo criminal qualquer prática criminal ao longo da sua vida, como não consta do registo a violação das normas estradais.
DD) Foi assim violado o disposto no artigo 127.º do CPP e artigos 50.º, n.ºs 1 e 2, 4 e 5 e 51.º, n.º 1, al. c), do CP.
Pelo exposto, deverá a decisão do Tribunal da 1.ª Instância ser revogada e ser o recorrente absolvido dos factos de que é acusado; caso tal não se entenda, deverá a suspensão da pena não ser condicionada ao pagamento da quantia de 2500,00€ à APAV, com o que farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a já costumada justiça.
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5. O Ministério Público rematou a sua resposta ao recurso nos termos infra transcritos:
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido A... da douta sentença, que o condenou como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de l (um) ano de prisão, cuja execução se suspendeu ao abrigo do disposto nos arts. 50.º, n.ºs l, 2, 4, e 5, e 51.º, n.º l, alínea c), ambos do Código Penal, pelo período de l (um) ano, sob condição de, no prazo de um ano, entregar à Associação de Apoio às Vítimas de Crimes Violentos - APAV -, fazendo prova no processo, a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos Euros).
2. Deve o recorrente ser convidado a completar as suas alegações, porque ao recorrer da matéria de facto omitiu, como legalmente lhe é imposto pela alínea a) do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, pela alínea b), as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e o disposto na alínea c), do mesmo artigo, ou seja, as provas que devem ser renovadas, sob pena de rejeição do recurso, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
3. A factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo mostra-se fixada, pelas razões expostas, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e as regras da experiência comum, nos termos do artigo 127.º, do Código Processo Penal, pelo que nenhuma censura merece a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo na forma como valorizou o depoimento da testemunha F... .
4. Não padece, também, a douta sentença proferida nos presentes autos de erro na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, sendo irrelevante se os factos dados como provados e suas respectivas consequências, tal como vêm descritos na sentença, o foram apenas com base numa testemunha ou em várias.
5. - A douta sentença a quo mostra, de forma clara e evidente, o processo lógico que seguiu, esclarecendo os elementos preponderantes na formação da sua convicção e que levaram a que se tenha decidido pela condenação do recorrente, pelo que, decidirão bem os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra se concluírem que, efectivamente, no tocante à alegada violação do princípio da livre apreciação da prova, bem como relativamente à medida da pena aplicada ao recorrente, nenhuma censura merece a douta sentença proferida nos presentes autos pelas razões por nós aqui aduzidas.
6. A determinação da concreta pena aplicada ao recorrente observou todos os critérios doutrinais, legais e, até jurisprudenciais, pelo que, não deve merecer, também quanto a este ponto, qualquer tipo de censura a douta sentença, proferida pelo Tribunal a quo, ao ter aplicado ao recorrente uma pena de prisão de l (um) ano, suspensa na sua execução pelo período de l (um) ano, sob condição de, no prazo de um ano, entregar à Associação de Apoio às Vítimas de Crimes Violentos - APAV -, fazendo prova no processo, a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos Euros).
7. A pena suspensa aplicada ao recorrente não é uma verdadeira pena de prisão efectiva, como o mesmo alega, pois decorre da factualidade dada como provada que a sua situação económico-financeira lhe permite satisfazer a condição que lhe foi imposta, além de que, a mesma é adequada à reparação do mal do crime, nos termos do disposto no artigo 51.º, n.º l, alínea c), do Código Penal.
8. Pelo que a douta sentença a quo procedeu ao correcto e criterioso enquadramento jurídico-penal da matéria de facto ali dada como provada e, consequentemente, não violou, interpretou ou aplicou qualquer norma legal em desconformidade com o ordenamento jurídico-penal, devendo ser integralmente mantida.
Em consequência, deverá o presente recurso ser julgado manifestamente improcedente, devendo ser integralmente mantida a douta sentença a quo, ainda que, sendo o caso, adoptando fundamentação diversa.
Contudo, Vas. Exas decidirão conforme for de lei e justiça.
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6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
O arguido não exerceu o seu direito de resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Questão prévia:
No ponto de vista do Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância, as conclusões da motivação do recurso não contêm as exigências vertidas no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal (serão deste diploma as normas que se vierem a citar sem indicação de fonte), devendo haver lugar a convite ao aperfeiçoamento, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 3 daquele diploma.
Vejamos se, in casu, se se justifica o referido convite.
Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, há-de cumprir o ónus de impugnação especificada imposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal (redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), de indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que reputa incorrectamente provados e não provados e de alusão expressa às concretas provas que impelem a uma solução diversificada da recorrida e às provas que devem ser renovadas - als. a), b) e c) do n.º 3 -, sendo certo que, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (n.º 4).
A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente, tanto a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença e/ou da acusação, como a referência vaga e imprecisa da matéria de facto que se pretende seja reapreciada pelo Tribunal da Relação.
Diz, a propósito, o Sr. Desembargador Sérgio Gonçalves Poças: «como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas (…) apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo (…).
Assim, nesta especificação – as palavras valem – serão totalmente inconsequentes considerações genéricas de inconformismo sobre a decisão.
(…)
Assim, se, v.g., o tribunal a quo deu como provado no ponto 2 da matéria de facto (provada) que “o arguido tinha no bolso do casaco 20 gramas de heroína”, se o recorrente entende que este facto foi incorrectamente julgado (que deveria ter sido dado como não provado), tem, no mínimo, de dizer clara e expressamente sob o título de “Pontos de facto incorrectamente julgados”: 1. Toda a factualidade descrita no ponto 2 da matéria de facto provada». Revista Julgar, Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, n.º 10, Janeiro-Abril de 2010, págs. 31 e 32.
Por outro lado, a exigência legal de especificação das “concretas provas” impõe a indicação do conteúdo específico do meio de prova. Tratando-se de prova gravada, oralmente prestada em audiência de discussão e julgamento, deve o recorrente individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação.
Ou seja, estando em causa declarações/depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.
Nesta vertente, o recorrente, a par da indicação das concretas provas, há-de proceder de uma das seguintes formas:
- Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;
- Expôr, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou
- Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas, servindo aqui de exemplo a pontual situação aludida, a igual título, no estudo acima referido: o recorrente dirá: «a passagem do depoimento da testemunha B quando responde pela 1.ª vez ao Senhor Procurador».
«Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado» Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1134/1135..
Na verdade, as menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Cotejando a motivação do recurso, vê-se claramente que estão expressamente individualizados, como acima explicitado, os factos que o recorrente tem por indevidamente julgados (8. e 9., conforme fls. 482/4 dos autos), por referência à factualidade dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância, e que pretende sejam erigidos à condição de não provados.
A par, o recorrente referencia pormenorizadamente, na forma exigida na lei, o elemento probatório base da impugnação (depoimento da testemunha F...), com indicação concretizada das passagens desse depoimento, aludindo também aos respectivos suportes de gravação áudio onde estão contidas essas passagens.
Certo é que, tão só a motivação de recurso, e não também as conclusões, contêm, em plenitude, os requisitos legais supra enunciados.
Sendo assim, em bom rigor, haveria que cumprir o disposto no artigo 417.º, n.º 3, do CPP, ou seja, dirigir convite ao recorrente no sentido do aperfeiçoamento das conclusões.
Temos entendido, todavia, o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos ser demasiado formalistas, ao ponto de atrasar a tramitação de um processo, quando existem conclusões que, conjugadas com a motivação propriamente dita, permitem globalmente apreender, sem reservas, as indicações previstas nos n.º 3 e 4 do citado do artigo 412.º do CPP.
Convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm imperiosamente de se manter no âmbito da motivação, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso. Dito de outro modo: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do art. 412.º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Contudo, não é essa situação que se verifica no caso dos autos. Neste, apenas nas conclusões o recorrente não cumpre cabalmente o ónus de impugnação especificada.
No entanto, em face do que ficou exposto, é manifestamente perceptível, pela leitura da totalidade da peça recursória, o cumprimento do ónus imposto pelo citado artigo 412.º do CPP. Daí que o convite que se fizesse, no referido sentido, se traduziria numa exigência de natureza puramente formal.
Posto o que ficou dito, rejeitamos a questão prévia suscitada.
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2. Poderes de cognição do tribunal ad quem e determinação do objecto do recurso:
Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
No caso sub judice, as questões postas à consideração deste tribunal ad quem circunscrevem-se ao seguinte quadro:
- Se ocorrem os erros de julgamento em matéria de facto invocados pelo recorrente;
- Se alterada a matéria de facto, em consonância com os desígnios do recorrente, este deve ser absolvido da prática do crime de homicídio por negligência que lhe está imputado;
- Em caso de condenação, se a suspensão da execução da pena fixada pelo tribunal a quo não deve ficar subordinada à condição imposta na sentença sob recurso.
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3. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 15 de Dezembro de 2007, cerca das 21h15m, na Avenida …, em …, área e comarca de Alcobaça, no sentido IC2-Rotunda em direcção ao centro da Vila da Benedita, o arguido A... conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, pertencente a F....
2. A estrada no local é uma recta, sem obstáculos à visibilidade, existindo duas faixas de rodagem, atento o sentido em que o arguido circulava, e duas em sentido contrário, divididas por um separador central com cerca de 2 metros.
3. A via em que o arguido circulava é composta por um sentido único e duas vias de circulação e o piso é asfaltado e encontrava-se em bom estado.
4. Era noite, o tempo estava bom e no local existiam postes de iluminação.
5. A velocidade permitida para o local, o qual se localiza dentro da localidade da Benedita, é de 50 km/h.
6. O arguido A... circulava com uma taxa de álcool no sangue de l,12g/l.
7. No mesmo local e nas mesmas circunstâncias de tempo seguia a pé C....
8. No momento em que C... se encontrava a atravessar a passadeira existente no local, o arguido A... não parou o veículo e embateu naquele com a parte lateral direita do veículo por si conduzido, tendo-o projectado cerca de 8 metros;
9. O arguido, não dominou o veículo ou contornou o peão, não obstante inexistir qualquer impedimento de trânsito para a realização de uma manobra de desvio.
10. O arguido A..., não obstante a visibilidade do local lhe permitir, ao início da recta, atentar no posicionamento do peão pelo menos a cerca de 150 metros, continuou a sua marcha, sem travar, sem abrandar ou sem se desviar.
11. Deste embate e queda que se lhe seguiu resultaram para a vítima as lesões examinadas e descritas no auto e relatório de autopsia de fls. 96 a 102, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente lesões traumáticas meníngeas, torácicas, raquimeningo-medulares dorsais e dos membros inferiores, complicadas de falência multi-orgânicas, lesões estas que foram causa adequada da morte de C....
12. Após ter ocorrido o referido atropelamento, o arguido B... deslocou-se ao local num veículo ligeiro, de marca BMW, cuja matrícula não foi possível apurar e por si conduzido.
13. Em momento não concretamente apurado, os arguidos abandonaram o local no veículo automóvel conduzido por B....
14. O arguido A..., ao agir como o descrito, sabia que, perante a aproximação de um peão em plena travessia da via, deveria ter observado regras de cuidado que era capaz de cumprir e não acatou, designadamente imprimir menor movimento e velocidade à viatura, travando se necessário ou contornando o peão, manobras que sem sequer esboçou fazer, sendo que nenhum obstáculo existia à realização de tais manobras de segurança.
15. Os arguidos agiram de modo livre, deliberada e conscientemente.
16. O arguido A... bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
17. O Arguido A... está actualmente reformado, auferindo, a título de reforma, a quantia mensal aproximada de 379,00€; a sua mulher é doméstica; vive com esta, em casa própria; tem três filhos, já maiores de idade e independentes; possui três viaturas: o identificado nos autos, já reparado, marca “volkswagen”, modelo “Golf”, do ano de 2001, um outro da mesma marca e modelo do ano de 2006, e uma carrinha, marca “Ford”, modelo “Transit”, do ano de 1994;
18. O arguido A... é uma pessoa bem inserida na comunidade, sendo considerado e estimado pelos seus amigos e conhecidos;
19. O arguido B... é gerente comercial de uma pastelaria e de três sapatarias, declarando, a título de vencimento mensal, a quantia equivalente ao salário mínimo nacional; a sua mulher é empregada de balcão e declara, igualmente, a título de vencimento mensal, a quantia equivalente ao salário mínimo nacional; vive com a sua mulher e com duas filhas do casal, uma de 17 e outra de 13 anos de idade, ambas a estudar, numa casa pertencente ao seu pai; utiliza diariamente uma viatura de marca “Volkswagen”, modelo “Golf” do ano de 2005, e a sua mulher uma viatura de marca “Opel”, modelo “Astra”, do ano de 2002, encontrando-se ambas as viaturas registadas em nome da empresa para a qual o arguido presta as suas funções de gerente comercial.
19. Como habilitações literárias o arguido A... tem a 4.ª classe de escolaridade e o arguido B... tem o 6.º ano de escolaridade.
20. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
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3. Relativamente aos factos não provados, é referido na sentença:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
1. Que, logo após o atropelamento, quando o arguido B... se deslocou ao local do embate, ambos os arguidos verificaram que C... se encontrava prostrado no chão, tendo abandonado o local no veículo automóvel conduzido por B....
2. Que o arguido A..., não obstante se ter apercebido e para isso ter contribuído, até pela violência do embate, que a vítima teria sofrido traumatismos graves, estaria em risco de vida e que necessitaria de urgente socorro médico, quis e conseguiu deixar a vítima prostrada e inanimada no solo, sem ajuda, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-a abandonada à sua sorte, prosseguindo a sua marcha indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda.
3. Que o arguido B..., apesar de ter verificado que C... estaria em risco de vida e que necessitaria de urgente socorro médico, quis e conseguiu deixar a vítima prostrada e inanimada no solo, sem ajuda, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-a abandonada à sua sorte, prosseguindo a sua marcha indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda.
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4. Quanto à motivação da decisão de facto, ficou consignado:
Os factos dados como provados resultaram do conjunto da prova testemunhal produzida em julgamento e documentos juntos, nos termos que a seguir se explicitam, prova que se encontra registada, e da directa percepção que o Tribunal teve da mesma, observando o comportamento e postura das testemunhas e valorando toda a prova à luz dos critérios de experiência comum e do princípio da livre apreciação da prova.
Foram determinantes os documentos que se encontram juntos aos autos, designadamente:
- Participação do acidente e croquis de fls. 4 a 6;
- Resultado [talão] da pesquisa de álcool no sangue ao arguido A... de fls. 7;
- Certificado de óbito reproduzido a fls. 25;
- Documentação clínica [resumo do internamento de C... no Serviço de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar de Coimbra] de fls. 55 e 56;
- Relatório de autópsia de fls. 96 a 104;
- Relatório de estimativa de velocidade de fls. 178 a 181, e relatório fotográfico do local do atropelamento de fls. 183 a 189;
- Fotografias juntas pelo arguido José Henriques de fls. 325 a 327, referentes ao veículo interveniente no atropelamento, após a ocorrência deste.
Foi igualmente relevante o resultado da inspecção judicial feita no decurso da audiência ao local do atropelamento, que permitiu a percepção directa da configuração da via, características, composição e situação onde se desenrolaram os factos constantes da acusação.
Ambos os arguidos prestaram declarações.
O arguido A..., nas declarações que prestou, quanto ao que refere lembrar-se, apresenta uma versão que mitiga, de alguma forma, a sua responsabilidade ou a transfere, inclusivamente, para o peão. Assumiu que o tempo, à data, estava bom, e que a via configura uma recta com boa iluminação, apresentando a configuração que actualmente possui, à excepção das lombas nas passadeiras que, à data, ainda não existiam. Referiu que, antes de iniciar a condução, tinha estado a beber, mas sentia-se bem e não seguia a muita velocidade, entre 30 a 40 Km/hora, nunca superior a 50 km/hora. Referiu ainda que, após ter passado a passadeira, o peão veio contra o seu carro, só se tendo apercebido do mesmo após o embate, depois de o colher, pelo que, só então travou o carro. Retomando as declarações do arguido José Henriques, o mesmo referiu que o peão devia ter surgido do lado direito da via por onde seguia, vindo do meio de carros que aí se encontravam estacionados, foi embater na parte lateral direita do carro, subiu o capot, tendo inclusivamente partido o pára-brisas do carro, tendo ocasionado na viatura os danos visíveis nas fotografias por si juntas a fls. 325 a 327. Mais referiu que, após ser colhido pelo carro por si tripulado, o peão não foi projectado do modo referido na acusação, que ficou logo ali no local onde acabou prostrado e reproduzido no croqui anexo à participação do acidente elaborado pelos agentes policiais. Após o atropelamento, não procedeu a qualquer sinalização. Desconhece quem chamou os bombeiros ao local, assumindo que não foram chamados por si e afirmando não possuir telemóvel. Referiu ainda que o co-arguido B... passou ocasionalmente pelo local do acidente, já os Bombeiros se encontravam a socorrer o peão, e, como sabia que o arguido havia sofrido um AVC há poucos meses, encontrando-se inteirado sobre os seus problemas de saúde, lhe ofereceu para o levar ao Hospital, ao que acedeu porque começou a sentir dores no coração e teve receio que lhe sucedesse alguma coisa. Pensa que o co-arguido viu a vítima prostrada no chão.
Por sua vez, o co-arguido B... negou este facto, referindo que não se apercebeu, quando passou ocasionalmente no local do acidente, de qualquer vítima. Aliás, referiu que, na altura, quando passou com o seu carro no local, no sentido contrário ao do acidente, isto é, no sentido Rotunda da Benedita - IC2, viu lá a ambulância dos Bombeiros e viu umas pessoas, tendo também avistado o co-arguido, mas nem sequer se apercebeu nesse momento que tinha havido um acidente em que este estivesse envolvido. Retomando o seu relato dos acontecimentos, referiu que reparou que este estaria no passeio atento o seu sentido de marcha, abrandou para lhe falar e reparou que este se queixava de dores no peito, ao que, sabendo que este tinha tido um AVC há cerca de três meses, perguntou-lhe se precisava de ajuda ao que aquele lhe pediu para o levar à policlínica. Assim fez, tendo contudo seguido da policlínica para o hospital de Alcobaça uma vez que a primeira já se encontrava encerrada. Frisou que, no local do acidente, nunca chegou a sair do carro e não se apercebeu do atropelamento, que, à data, quando avistou a ambulância pensou que alguém talvez se tivesse sentido mal. Só no hospital de Alcobaça, quando apareceu um dos filhos do arguido A... é que soube do atropelamento.
Ouvida a testemunha G..., pertencente ao corpo de Bombeiros que, à data dos factos, acorreu ao local a fim de prestar assistência à vítima, confirmou a posição da vítima por confronto ao croqui anexo à participação policial, referindo não se encontrar qualquer sinalização na via. Mais referiu que, após o telefonema, demoraram poucos minutos a chegar ao local, não mais de cinco, não se tendo apercebido se o condutor do veículo envolvido no embate estava lá quando chegaram. H..., cabo da G.N.R. responsável pela elaboração da participação do acidente, e J..., guarda da G.N.R. que, juntamente com o primeiro, compunha a patrulha da polícia que, à data, foi chamado ao local para tomar conta da ocorrência, ambos referiram que, quando aí chegaram, já se encontrava no local a ambulância a prestar auxílio à vítima, tendo a preocupação imediata de ambos sido a de libertar o caminho por forma a que as pessoas que estavam a prestar socorro à vítima pudessem trabalhar à vontade e, acto contínuo, tomar conta da ocorrência, para o que, foi procurado o condutor do veículo envolvido. Confirmaram a posição deste e, bem assim, da vítima por confronto ao croqui elaborado pelo primeiro dos referidos agentes, e afirmaram de forma concordante que o condutor, o arguido A..., já se havia deslocado do local do acidente quando o tentaram localizar. Referiram ainda terem chegado cerca de 10 minutos após a chamada telefónica que os levou ao local e que foi um dos filhos do arguido A... que os informou que este estava no Hospital de Alcobaça, ao que se deslocaram a este local e só aí contactaram o arguido.
J..., cunhado da vítima, referiu ter estado com esta até momento antes do atropelamento. Afirmou que esteve com ele na sua barbearia, localizada perto da Avenida …, e o acompanhou até dado passo, tendo depois seguido em direcção ao seu carro. A certa altura, já se encontrava a conduzi-lo, ouve um grande estrondo, sendo que, quando chegou ao local do mesmo, já o seu cunhado se encontrava prostrado no chão e o condutor, o arguido A..., fora da viatura. Chamou os Bombeiros, que acorreram ao local, tendo deixado de ver aquele no local em momento que não logrou precisar, designadamente se já teriam ou não chegado os Bombeiros.
Já por sua vez, as testemunhas K... e L..., ambos conhecidos dos arguidos, afirmaram terem estado no local já após o embate, tendo ambos afirmado que chegaram a falar no local com o arguido A..., tendo o primeiro referido que quando chegou ao local já aí se encontravam os Bombeiros a prestar auxílio à vítima e que se ausentou do local depois de falar com aquele arguido, tendo este permanecido ainda lá, e tendo o segundo referido que chegou a passar com a sua viatura entre o local onde a vítima se encontrava prostrada e o separador central da Avenida, tendo os Bombeiros chegado depois do depoente, tendo aí permanecido durante cerca de 15/20 minutos, período durante o qual chegou a falar com o arguido A..., tendo depois abandonado o local e, ao que julga, tendo ainda nesse momento aquele arguido aí permanecido.
Ora, nenhuma destas testemunhas presenciou pois o acidente propriamente dito, já que a percepção directa que tiveram dos factos acorreu após o mesmo já ter ocorrido.
Assim, para formar a sua convicção quanto aos factos assentes no que tange à dinâmica do acidente, relevou o testemunho de F... , o qual, neste particular, manteve um depoimento credível, sem ligações à vítima e/ou aos seus familiares, e transparecendo estar a reviver um acontecimento, traumático, realmente presenciado. Concretizando, a testemunha confirmou as circunstâncias de tempo e lugar mencionadas na acusação (o que, de resto, o arguido A... também o fez), afirmando, contudo e ao contrário das declarações deste arguido, que a vítima se encontrava a atravessar a passadeira quando foi colhida pelo veículo tripulado por este. Referiu que se encontrava no interior do seu veículo, veículo este que era o primeiro estacionado após a passadeira que atravessa a Avenida …, encontrando-se posicionado no sentido Rotunda da Benedita - IC2, a ver antecipadamente o caminho de regresso a sua casa, sita em Algés, quando viu a vítima a passar, justamente, na passadeira localizada à sua frente, sendo que, após transpor o separador central que divide os dois sentidos de marcha, a atravessar a passadeira no sentido de marcha IC2 - Rotunda, foi atropelada por aquele. Referiu que o barulho do embate, um estrondo, seco, lhe ficou gravado na memória, tendo o carro colhido a vítima sem que o seu condutor fizesse qualquer travagem ou manobra de desvio - o que, de resto, vai ao encontro das próprias declarações do arguido A.... Mais referiu que, após o carro ter colhido o peão na passadeira, viu a vítima subir para a parte de cima do carro - também aqui, a par do que havia sido referido pelo arguido A... -, tendo o carro seguido ainda uns metros em movimento com a vítima em cima do capot e sendo esta projectada uns metros adiante da passadeira onde foi colhida, já mais próximo da passadeira seguinte, como assinalado no croqui da participação policial, tendo estes últimos factos percepcionado através do espelho retrovisor do seu veículo. Referiu ainda que o condutor saiu do carro e que, pouco depois, passou um outro veículo, no mesmo sentido de marcha daquele, o qual passou entre a vítima e o separador central, tendo o condutor abandonado o local do acidente. Neste ponto, o seu depoimento foi já mais hesitante na medida em que não teve a certeza se este facto ocorreu já depois de os Bombeiros terem chegado ao local, uma vez que estes tardaram poucos minutos, e não teve a certeza se foi este o único carro a passar, após o embate, entre a vítima já prostrada no chão e o separador central. Tal hesitação pareceu, no entanto, justificada e legítima já que, atendendo ao depoimento da acima indicada testemunha L..., esta testemunha chegou ela própria a fazê-lo, já após o embate e antes de chegarem os Bombeiros, o que, tendo os factos ocorrido à noite, ponderada a perturbação que o assistir ao atropelamento poderá ter causado à testemunha F... e sendo os intervenientes seus desconhecidos, todas estas circunstâncias podem perfeitamente contribuir e/ou conduzir a tais hesitações, não tendo ficado gravado na sua memória os acontecimentos subsequentes ao atropelamento da mesma forma que o ficaram os referentes ao atropelamento propriamente dito. Na verdade, e como já referido, a aludida testemunha transpareceu ao longo do seu depoimento estar a reviver um acontecimento, traumático, realmente presenciado, motivo pelo qual permaneceu no local sem sair do seu veículo, como também referiu, só tendo seguido para casa depois de verificar a presença dos Bombeiros a socorrer a vítima.
Aqui chegados temos as circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreu o acidente, as condições da via/recta em que o mesmo se deu - as quais permitiam, atenta a sua configuração e iluminação, visualizar a passadeira onde a vítima foi colhida a uma distância de, pelo menos, 150 metros -, as condições atmosféricas e de luminosidade, assim como a forma como a travessia terá sido efectuada. Sem poder concretizar, como normalmente sucede, o depoimento é impressivo quanto à velocidade desadequada, por excessiva, que o arguido imprimiria ao veículo considerando a velocidade de aproximação para uma passadeira, localizada esta numa recta. O acidente é, contudo, um acontecimento dinâmico, de sons, imagens e conclusões lógicas extraídas de pedaços da realidade apreendida pelos sentidos, enformada pelos critérios de experiência comum. Para formular a conclusão de que a velocidade era “excessiva” não constitui factor essencial a sua determinação exacta, a sua quantificação numérica. O juízo valorativo acerca desse excesso tem a ver com as circunstâncias concretas de lugar, de tempo, do tráfego e também com os efeitos provocados pelo embate do veículo, distância aproximada percorrida por este, etc., tudo factos que a testemunha F... percepcionou directamente, e que se mostra corroborado parcialmente pelas próprias declarações do arguido A... [só assim não sucede quanto ao local em que veio a colher o peão, o qual o arguido A... afirma que foi entre as duas passadeiras e não na passadeira, e quanto à projecção da mesma a cerca de 8 metros, a qual o mesmo nega ter ocorrido] e pelo relatório de velocidade constante a fls. 187 a 181, do qual resulta que o arguido A... circulava a uma velocidade aproximada de 54,04 Km/h, isto é, um pouco acima da permitida no local. Note-se que, para além da credibilidade que a indicada testemunha mereceu ao tribunal pelas razões que se deixaram explanadas, as declarações do arguido A... no que concerne ao local em que veio a colher a vítima e ainda ao facto de esta não ter sido projectada a cerca de 8 metros, não se afiguram verosímeis, nem compatíveis, com a dinâmica do acidente por si assumida - de que o peão foi colhido pela parte lateral direita do seu veículo, subiu o capot e partiu o pára-brisas do carro, só tendo travado o veículo após o embate -, dinâmica esta confirmada nesta parte não só pelo relato da indicada testemunha, como também pelos próprios danos exibidos pelo veículo após o acidente e que se atestam das fotografias por si juntas aos autos a fls. 325 a 327, e dos quais resulta que o veículo enquanto não foi imobilizado - o que só veio a acontecer após a travagem, a qual por sua vez acorreu só após o embate/atropelamento e enquanto a vítima subia no capot do veículo -, este teve que ter estado ainda em andamento, donde, a vítima teve que ter sido projectada pelo menos 8 metros, atenta a violência do impacto demonstrado pelos próprios danos visíveis no veículo após o acidente e atenta a distância entre a passadeira onde aquela foi colhida e o local onde veio a ficar prostrada.
Por seu lado, dos depoimentos das várias testemunhas ouvidas, cotejados com as próprias declarações prestadas pelos arguidos, resulta, contudo, não ter o Tribunal logrado apurar o concreto momento em que ambos os arguidos abandonaram o local do embate, designadamente, se o fizeram já quando os Bombeiros aí se encontravam a prestar socorro à vítima.
Assim, aqui chegados, pela prova assim produzida, justificam-se os factos assentes relativamente às circunstâncias em que se verificou o acidente, a autoria e actuação do arguido A... e as consequências do evento para a vítima, sendo que as lesões e o óbito foram atestadas pela prova documental acima elencada.
Já no que concerne à actuação dos arguidos após o acidente, isto é, quanto aos factos não provados da acusação, os mesmos derivam do facto de, conforme análise dos depoimentos prestados, ter soçobrado a dúvida sobre os mesmos, sendo que esta dúvida não pôde ser ultrapassada através da produção de outros meios de prova. Assim, porque nesta parte ficaram sérias dúvidas ao tribunal quanto aos factos imputados aos arguidos, no estrito cumprimento do princípio in dubio pro reo, foram tais factos dados como não provados.
Interessou ainda o depoimento abonatório da personalidade do arguido A..., prestado por M..., profissional de seguros, o qual o conhece já há alguns anos uma vez que, para além de amigo, aquele arguido é seu cliente.
Relativamente às condições pessoais e económicas dos arguidos, foram valoradas as suas declarações que, nesta parte, se afiguraram credíveis, inexistindo nos autos quaisquer elementos que as infirmem.
Interessou ainda o teor dos certificados de registo criminal dos arguidos juntos aos autos.
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6. Com a impugnação, nos termos supra assinalados, pretende o recorrente que este tribunal ad quem proceda à modificação da matéria de facto em termos de serem dados como não provados os pontos 8. e 9. do acervo factológico dado como provado.
Analisaremos primeiramente se a prova produzida no âmbito destes autos permite concretizar o sentido de atravessamento da faixa de rodagem por parte da vítima C..., cabendo depois determinar, em função dos elementos de prova relevantes: em que preciso local da via de trânsito aquela procedeu à travessia da mesma, se por passagem especialmente sinalizada para esse efeito, vulgo “passadeira”, ou se em diversa zona; se a vítima, por ter sido embatida pelo veículo 37-09-SL, conduzido pelo arguido, foi projectada cerca de 8 metros.
Tal como consta expressamente da motivação da decisão de facto, para formar o seu juízo de avaliação crítico sobre a dinâmica do acidente, o julgador do tribunal de 1.ª instância concedeu decisiva relevância ao depoimento da testemunha F..., pelas razões já acima expostas.
Na exegese do recorrente, a referida testemunha não se revelou isenta e credível, com base, em suma, na seguinte ordem de argumentos:
- Apenas referiu um conjunto de circunstâncias muito vagas quanto ao embate e que este evento teria ocorrido na passadeira;
- Todavia, à luz das regras da experiência comum de vida, a testemunha não poderia ter visto, ao contrário do que disse, através do espelho retrovisor do veículo em que se encontrava, os demais factos por si relatados, nomeadamente que a vítima foi levada pelo veículo 37-09-SL, alguns metros, em cima do capot; aliás, se assim tivesse acontecido, o peão cairia inevitavelmente para a frente da viatura e não, como efectivamente sucedeu, para o lado, e o espelho retrovisor direito do veículo atropelante não teria ficado partido;
- Referiu que o arguido abandonou o local num veículo que seguia na hemi-faixa de rodagem utilizada, momentos antes, também pela viatura atropelante, quando todas as outras testemunhas disseram que os dois veículos em causa circularam, um relativamente ao outro, em sentido contrário;
- Após o embate, a testemunha não saiu do seu veículo, quer para prestar assistência à vítima, quer para verificar o que efectivamente se tinha passado.
No entanto, adiantamos já, não só a análise complexiva desse depoimento dará resposta sobre o des(acerto) do juízo de avaliação do tribunal a quo. Torna-se também indispensável ponderar as declarações prestadas em audiência de julgamento pelo ora recorrente e o depoimento da testemunha J....
Dito isto, retira-se das declarações do arguido, nos segmentos que importa ter em conta:
Nas circunstâncias de local e tempo descritas na matéria de facto provada, conduzia o veículo de matrícula … na Av. Padre Inácio Antunes, em Benedita, no sentido de trânsito IC2-Rotunda, em direcção ao centro daquela Vila. Circulava a uma velocidade inferior a 50 Km/hora. O peão surgiu do meio dos veículos que se encontravam estacionados na direita da via de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, fora da passadeira. Utilizando as próprias palavras do arguido, «estavam lá muitos carros estacionados na faixa direita e o peão surgiu entre os carros. Os veículos não estavam estacionados na passadeira. Por isso é que eu digo que o peão não passou na passadeira».
Só viu a pessoa acidentada quando lhe bateu. Esta não foi projectada. Caiu no preciso local em que foi embatida.
Só abandonou o local depois de terem chegado os Bombeiros e, depois, os elementos da GNR.
O peão ficou prostrado no asfalto, relativamente próximo do separador central que divide a faixa de rodagem. «Ficou mais perto do separador do que do passeio».
O arguido B...passou na hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido Rotunda-IC2 e transportou o recorrente ao Hospital, porquanto este, após o acidente, sentiu dores no peito.

A testemunha J..., cunhado da vítima, deu a saber o percurso pedonal tomado pela mesma, no momento imediatamente anterior ao do acidente. Referiu que a acompanhou, tendo ambos caminhado no sentido Rotunda-IC2. Quando se separaram, J… dirigiu-se ao seu veículo automóvel, que estava estacionado nas proximidades. Nesse entretanto, ouviu um “estrondo” e, decorrido cerca de um minuto, transportando-se na sua viatura, já estava no local do acidente.

Por sua vez, a testemunha F... prestou depoimento do seguinte teor:
- Foi à Benedita com a finalidade de se encontrar com um amigo de longa data. Estacionou a sua viatura na Av. Padre Inácio Antunes, no sentido de marcha Rotunda-IC2, com o objectivo de determinar a saída para Lisboa. Ficou dentro da viatura uns minutos. Nesse período de tempo, passou uma pessoa à frente do seu veículo, pela passadeira destinada ao atravessamento da via pelos peões. Acompanhou o trajecto da pessoa em causa, a qual veio a ser colhida, já na hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito no sentido IC2-Rotunda, por um veículo automóvel. Viu o embate, o qual se verificou na referida passadeira.
O acidente ocorreu quando o peão já tinha percorrido sensivelmente 2/3 da via de rodagem.
O peão foi embatido pela parte frontal direita do veículo, considerando o sentido de marcha deste.
Através do espelho retrovisor, verificou que o peão foi projectado “uns bons metros”, “mais ou menos a distância assinalada no croqui de fls. 6”; «o corpo percorreu uns metros em cima do capot e depois caiu. Houve o embate, o corpo veio para cima do capot, o carro ainda andou e o corpo depois caiu».
Supõe que o condutor do veículo atropelante foi transportado, pouco tempo após o acidente, por uma viatura que circulava no sentido IC2”-Rotunda.
Não chegou a sair do seu veículo automóvel. Dirigiu-se a Lisboa quando chegaram os Bombeiros e também porque, nessa altura, já estavam pessoas no local do acidente.
A justificação para o seu surgimento, como testemunha, no âmbito deste processo foi dada nestes termos: «na última vez que estive na Benedita a perguntar pelo meu amigo, …, comentei: noutra ocasião, até presenciei um acidente (…), como (…) ficou? Então o Sr. do café me disse “olhe, estão ali uns familiares da vítima (…)”. E foi a partir daí que me envolvi nisto (…)».
Passando à análise das declarações do arguido, elas são desde logo infirmadas pelas declarações, consonantes, das testemunhas acima indicadas, as quais revelam, sem qualquer reserva de credibilidade, que o peão procedeu à travessia da via de rodagem partindo do lado esquerdo e visando atingir o passeio do lado direito da mesma, tendo em conta o sentido de trânsito IC2-Rodunda.
Daí que, numa primeira análise, as objecções contrapostas pelo recorrente à credibilidade da testemunha F... assentem num erro de avaliação. Ou seja, o recorrente parte do pressuposto, para si indiscutível, de que o peão iniciou o atravessamento da via no sentido contrário ao supra indicado, dado este contrariado, nos termos expostos, pela prova acima individualizada.
E seguindo essa premissa incorrecta, considera que, tendo em conta a zona do veículo … onde se registaram danos (parte dianteira direita, com quebra do espelho retrovisor), não era naturalisticamente possível a projecção da vítima cerca de oito metros; ao invés, segundo acrescenta, a vítima, colhida logo no início do atravessamento, teria de cair no solo no próprio momento do embate.
O acidente de viação constitui uma realidade complexa e dinâmica, marcada por um conjunto indeterminado de variáveis que influenciam decisivamente tanto a sua ocorrência como as suas consequências.
Não obstante, sendo dado adquirido que o peão foi colhido quando fazia a travessia da faixa de rodagem nas condições acima consideradas, de acordo com a razoabilidade das percepções permitidas pelas regras da experiência, é de todo lógico o processo revelado pela testemunha F..., acolhido na matéria de facto provada, de que o vítima foi transportada, depois de embatida, no capot do veículo …, cerca de 8 metros.
E como se justifica a quebra do espelho retrovisor da viatura atropelante?
Evidentemente, não existe uma resposta inequívoca para esta questão.
Mas não se pode chegar ao ponto de se considerar, por aí, impossível a verificação do acidente, como foi relatado pela testemunha F.... No campo das probabilidades, é conjecturável a situação configurada pela testemunha H..., cabo da GNR, traduzida na queda do corpo, ao cair, sobre o espelho, partindo-o.
A par, também não vemos como incrível a observação, pela testemunha, a partir do espelho retrovisor do seu veículo, do aludido circunstancialismo decorrente do embate.
Tudo depende do ângulo de visão proporcionado pelo espelho, a partir da sua concreta colocação, e da posição da testemunha no interior da viatura.
No mais, o provável equívoco da testemunha sobre um facto não essencial, como é o que se relaciona com o sentido de trânsito do veículo conduzido pelo arguido Mário, não retira, como foi bem entendido pelo julgador de 1.ª instância, credibilidade ao depoimento da mesma sobre os elementos essenciais acima analisados.
O mesmo cabe dizer quanto à circunstância de a testemunha ter abandonado o local, porque o fez depois de estar assegurada a assistência imediata à vítima.
Aliás, a testemunha expôs racionalmente como veio ao processo na referida qualidade.
Em síntese conclusiva: a análise crítica e global da prova produzida em julgamento, sobre os pontos concretamente especificados pelo recorrente, não determina a formulação de juízo valorativo diferente do assumido pelo tribunal a quo. Assim, mantemos, nos seus precisos termos, a matéria de facto que o mesmo tribunal deu por provada e não provada.
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7. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão do recorrente, de ser absolvido do crime de homicídio por negligência que lhe está imputado, assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada.
Pelo que, mantendo-se os pressupostos de facto que determinaram a sua condenação, passaremos de imediato à outra questão que cumpre decidir.
O tribunal a quo declarou a suspensão da pena de 1 ano de prisão imposta ao arguido A..., por igual período, sob condição de o mesmo, no prazo de 1 ano, entregar à Associação de Apoio às Vítimas de Crimes Violentos (APAV), fazendo prova no processo, a quantia de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros).
O recorrente insurge-se contra o assim decidido, argumentando a indisponibilidade de rendimentos que lhe permitam pagar a referida quantia, constituindo, deste modo, a imposição da referida condição uma verdadeira pena de “prisão efectiva”.
Vejamos.
De acordo com o disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, do CP, o poder-dever de condicionar a suspensão da execução da pena rege-se pelo critério da conveniência e adequação à realização das finalidades da punição, sendo que, no caso de imposição de deveres, a condicionante deve ser reportada às exigências de reparação do mal do crime, e a subordinação pode consistir na entrega a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, de um contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.
Porém, «a decisão de suspensão da execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo artigo 50.º, n.º 2, do CP, tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre a natureza das imposições à pessoa condenada, e a eficácia e integridade da medida de substituição, já que a natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução» Cfr., Ac. do STJ de 11/02/2004, proc. n.º 4033/03 - 3.ª Secção..
Os deveres condicionadores da suspensão terão de obedecer, assim, a um princípio de razoabilidade (n.º 2 do artigo 51.º, do CP), ou seja, deverão poder ser satisfeitos pelo condenado de acordo com as suas normais possibilidades. Mas que traduzam um sacrifício para o visado, de modo a fazer-lhe sentir a natureza punitiva de um tal dever.
Será na conjugação destes dois vectores - reforço das finalidades da punição e normal possibilidade de cumprimento - que se hão-de definir os deveres condicionadores da suspensão da pena.
O princípio da razoabilidade «tem sido entendido pela jurisprudência como querendo significar que a imposição de deveres condicionadores da suspensão da pena deve ter na devida conta as “forças” dos destinatários (ou seja, as suas condições pessoais e patrimoniais e o nível de rendimentos de que dispõe) de modo a não frustrar à partida o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para que possa desenvolver diligências que lhe permitam obter os recursos indispensáveis à satisfação da condenação» Cfr., Ac. do STJ de 19/05/2006, proc. n.º 770/05 - 5.ª Secção..
Em suma, em caso algum devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o ora em causa, sem que seja viável a possibilidade do seu cumprimento. Como pondera Germano Marques da Silva Direito Penal Português, III, pág. 208., prática contrária significaria apenas adiar a execução da pena de prisão.
De acordo com os factos provados, o recorrente está actualmente reformado, auferindo, a título de reforma, a quantia mensal aproximada de 379.00 €; sua mulher é doméstica; não tem filhos a seu cargo; vive em casa própria e possui três viaturas automóveis.
Como se vê, embora os rendimentos do arguido sejam escassos, a venda de uma das três viaturas automóveis permitir-lhe-á, sem afectação dos meios indispensáveis ao sustento próprio e de sua mulher, o cumprimento da obrigação decretada pelo tribunal de 1.ª instância.
Pelo exposto, com meio de obtenção da paz social, posta em causa com a conduta ilícita do arguido, e como forma de o arguido se mostrar merecedor da confiança que o tribunal, como intérprete da comunidade social, depositou nele, justifica-se plenamente a suspensão da pena nos termos determinados pelo tribunal a quo.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida,
Custas pelo arguido, fixando-se em 4 UC´s a taxa de justiça [artigos 515.º, n.º 1, alínea b) do CPP, e 87.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, do CCJ].
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(Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário)
Coimbra, 12 de Outubro de 2011

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(Alberto Mira)

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(Elisa Sales)