Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
622-A/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
PEDIDO
CREDOR
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GARANTIA REAL
NOVOS CRÉDITOS
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 10/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 865º E 920º DO CPC
Sumário: I – Quando a instância executiva seja julgada extinta, na sequência do pagamento extrajudicial da quantia exequenda, e a execução prossiga a impulso dos credores reclamantes, relativamente a um imóvel (ou mais) penhorado, sobre o qual incidam garantias reais invocadas pelos requerentes, assumindo estes a posição de exequentes e aproveitando-se todo o processado (artº 920º, nºs 2, 3 e 4, do CPC, na redacção anterior ao D. L. nº 38/2003, de 8/03, por ser o aplicável ao caso), mantêm-se todos os actos processuais praticados, nomeadamente a penhora e a convocação de credores, mesmo os desconhecidos.

II – Na vigência do CPC na sua redacção anterior à revisão operada pelo D.L. nº 38/2003, passado o prazo estabelecido no artº 865º - para efeito de reclamação de créditos por parte dos credores com garantias reais sobre os bens penhorados – os credores interessados só podiam, sendo caso disso, lançar mão das faculdades previstas nos artºs 869º (direito do credor que tivesse acção pendente ou a propor contra o executado), 870º (suspensão da execução nos casos de falência) e 871º (pluralidade de execuções sobre os mesmos bens).

III – Na versão do CPC resultante da revisão operada pelo D. L. 38/2003 os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente os seus créditos até à transmissão dos bens penhorados – artº 865º, nº 3.

Decisão Texto Integral:               Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

         AAA... C instaurou, em 17/12/2002, execução ordinária para pagamento de quantia certa contra B..., como devedora principal, C... e mulher D... , como fiadores, e E... , como compradora do imóvel dado de hipoteca, visando a cobrança coerciva da quantia de € 105.880,21, acrescida de despesas e juros vencidos, no montante de € 15.323,04.

         Em 26/03/2003 foi efectuada a penhora do prédio dado de hipoteca, assim descrito:

         “Prédio urbano composto de um edifício de rés-do-chão destinado a oficina, estação de serviço, posto de assistência a pneus, pintura e bate-chapas e stand de automóveis, com a superfície coberta de 665,50m2 e a superfície descoberta de 2.706m2 e de outro edifício de rés-do-chão que se destina a café, escritórios, arrecadação e bombas de combustível, com a superfície coberta de 418,50 m2 e a superfície descoberta de 1.500m2, sito em ...., concelho de Pedrógão Grande, a confrontar de norte com Sandra Cristina Conceição Graça Fernandes, sul com estrada n° 350, nascente com caminho e poente com urbano, inscrito actualmente na respectiva matriz sob os art°s 1.499 e 1.500, com o valor patrimonial de 176.427,81 euros e 101.006,57 euros, respectivamente, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Pedrógão Grande sob o n° 01518/180989.”

         A fase da convocação de credores e verificação de créditos iniciou-se com o despacho de fls. 62, mandando cumprir o disposto no artº 864º do CPC, tendo os credores desconhecidos sido citados editalmente, o edital afixado em 25/06/2003 e o último anúncio publicado em 26/06/2003.

         Em 09/07/2003, foram deduzidas reclamações pelo Ministério Público, em representação da Administração Fiscal do Estado e pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, tendo em 22/11/2005 sido proferida, a fls. 47/48 do competente apenso, sentença julgando verificados os créditos reclamados e procedendo à respectiva graduação.

         Em 25/05/2006 e 06/06/2006, o F... apresentou reclamações de créditos, ao abrigo do disposto no artº 871º do CPC, tendo em 31/10/2006 sido proferida nova sentença de graduação.

         Entretanto, tendo a exequente A... levado, em 24/04/2004, ao conhecimento do tribunal que a executada “ E..., Lda” pagara extrajudicialmente a quantia exequenda, foi, em 16/02/2007, julgada extinta a instância executiva, por inutilidade superveniente da lide.

         Contudo, a pedido dos reclamantes F... e Instituto de Segurança Social, I.P. / Centro Distrital de Segurança Social de Leiria (que sucedeu ao IGFSS), foi proferido, em 08/03/2007, o despacho de fls. 209, ordenando o prosseguimento da execução, nos termos e para os efeitos do artº 920º, nº 2 do CPC.

         Em 12/03/2007, o F... apresentou, nos termos do artº 871º do CPC, nova reclamação de créditos, a qual motivou nova sentença de graduação, datada de 09/05/2007.

         E, em 25/09/2007 e 21/04/2008, igualmente ao abrigo do disposto no artº 871º do CPC, o mesmo reclamante apresentou novas reclamações, ambas liminarmente admitidas.

         Entretanto, em 09/10/2007, G... e H... apresentaram, “ao abrigo do disposto no artº 865º do CPC”, a reclamação de créditos de fls. 185 a 187 do pertinente apenso, pretendendo o reconhecimento e graduação de um crédito de € 500.000,00, sobre a executada “B...”, garantido por hipoteca voluntária sobre o imóvel penhorado nos autos, constituída em 22/04/2005 e registada em 28/04/2005.

         Após admissão liminar da reclamação, o crédito reclamado foi objecto de impugnação por parte do F...vindo a ser proferido o despacho de fls. 229º e 230º, do qual se transcreve, pela sua relevância, o trecho seguinte:

         “É pacífico que a garantia real apenas tem de existir à data da reclamação, podendo não existir à data da penhora ou da citação do credor, salvo se a garantia real, como é o caso, for constituída por acto de vontade do executado posterior à penhora, dada a sua ineficácia relativa, que o torna inoponível á execução (artigo 819. ° do Código Civil).

         No caso dos autos resulta que o bem sobre o qual foi constituída a hipoteca ora em causa foi penhorado em 26/03/2003 (fls. 40, dos autos de execução), tendo a hipoteca sido registada em 28/04/2005.

         Assim, não obstante ter sido admitida liminarmente a reclamação apresentada, constato agora, que estava legalmente vedado às requerentes, nesta execução, reclamar um crédito fundado em garantia real voluntariamente constituída após a penhora, pelo que é inoponível à presente execução.

         Pelo exposto, indefiro liminarmente a reclamação de créditos apresentada a fls. 185-187.”

         Inconformadas, as reclamantes G... e H...interpuseram recurso, que foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos da reclamação, e com efeito suspensivo deste incidente.

         Na alegação de recurso que apresentaram as agravantes formularam as conclusões seguintes:

(…………………………………………………………………………………)

          

O F.... respondeu, defendendo a manutenção do julgado.

Foi proferido despacho de sustentação.

Colhidos os pertinentes vistos, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se a reclamação de créditos apresentada pelas agravantes G... e H...era ou não admissível.


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         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         A factualidade e incidências processuais com relevo para a decisão do recurso são as constantes do relatório antecedente, que aqui se dá por reproduzido e ainda as seguintes:

         a) A penhora efectuada nos autos principais (execução ordinária) foi registada em 08/04/2003;

         b) Em 28/04/2005 foi registada hipoteca voluntária sobre o prédio penhorado, a favor das agravantes G... e H...;

         c) Em 2006/02/07 foram registadas três penhoras sobre o mesmo prédio, tendo como sujeito activo o I... (incorporado no F...).

         d) Em 2007/01/23 foi registada uma penhora sobre o mesmo prédio, tendo como sujeito activo o I..., S.A.

         e) Em 2008/01/10 foi registada uma penhora sobre o mesmo prédio, tendo como sujeito activo o I..., S.A.


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         2.2. De direito

         Tendo em conta as datas quer da instauração da acção executiva, quer da apresentação das reclamações de créditos e o disposto no artº 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 38/2003, de 08/03, é aplicável ao processo que nos ocupa o Cód. Proc. Civil na versão anterior à revisão operada pelo citado Decreto-Lei nº 38/2003[1].

        

         A única penhora efectuada nos autos é a que consta do termo de fls. 40, realizada em 26/03/2003 e registada em 08/04/2003, e que recaiu sobre um “Prédio urbano composto de um edifício de rés-do-chão destinado a oficina, estação de serviço, posto de assistência a pneus, pintura e bate-chapas e stand de automóveis, com a superfície coberta de 665,50m2 e a superfície descoberta de 2.706m2 e de outro edifício de rés-do-chão que se destina a café, escritórios, arrecadação e bombas de combustível, com a superfície coberta de 418,50 m2 e a superfície descoberta de 1.500m2, sito em ....., concelho de Pedrógão Grande, a confrontar de norte com Sandra Cristina Conceição Graça Fernandes, sul com estrada n° 350, nascente com caminho e poente com urbano, inscrito actualmente na respectiva matriz sob os art°s 1.499 e 1.500, com o valor patrimonial de 176.427,81 euros e 101.006,57 euros, respectivamente, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Pedrógão Grande sob o n° 01518/180989” que havia sido dado de hipoteca à primitiva exequente (CCAM de Figueiró dos Vinhos, C.R.L.).

         Apesar de a instância executiva ter sido julgada extinta em 16/02/2007 (fls. 198), na sequência do pagamento extrajudicial da quantia exequenda, a execução prosseguiu a impulso dos credores reclamantes F... e Instituto de Segurança Social, I.P. / Centro Distrital de Segurança Social de Leiria (sucessor do IGFSS), relativamente ao bem penhorado, sobre o qual incidiam as garantias reais invocadas pelos requerentes, assumindo estes a posição de exequentes e aproveitando-se todo o processado (artº 920º, nºs 2, 3 e 4).

         Mantiveram-se, pois, sem necessidade de repetição, todos os actos processuais praticados, nomeadamente a penhora e a convocação de credores (que englobou, pois assim o determinava a lei então vigente, a citação dos credores desconhecidos).

         Em sede de convocação de credores determinava o artº 865º que só o credor que gozasse de garantia real sobre os bens penhorados podia reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos (nº 1); e que a reclamação deveria ter por base um título exequível e ser deduzida no prazo de 15 dias, a contar da citação do reclamante, sendo, porém, de 25 dias o prazo em que ao Ministério Público era facultada a reclamação dos créditos da Fazenda Nacional (nº 2).

         Na data em que teve lugar a convocação de credores as agravantes não foram, nem tinham de ser, citadas para a execução, uma vez que não gozavam ainda de qualquer garantia real sobre o bem penhorado[2]. Estava-lhes, por esse mesmo motivo, vedada a reclamação.

         Na vigência da versão do Código de Processo Civil aplicável, anterior à revisão operada pelo Decreto-Lei nº 38/2003[3], passado o prazo estabelecido no artº 865º, os credores interessados só poderiam, sendo caso disso, lançar mão das faculdades previstas nos artº 869º (direito do credor que tivesse acção pendente ou a propor contra o executado), 870º (suspensão da execução nos casos de falência) e 871º (pluralidade de execuções sobre os mesmos bens)[4].

         As agravantes não se enquadram em qualquer daquelas situações, pelo que a sua reclamação, expressamente deduzida “ao abrigo do disposto no artº 865º do CPC”, não reúne condições de admissibilidade.

         Ainda que com fundamento diferente, concorda-se com o despacho recorrido, na medida em que é também nosso entendimento que a reclamação de créditos das agravantes, porque inadmissível, demandava o indeferimento.

         É certo que, por despacho de 15/10/2007 (fls. 206 do apenso), a reclamação das agravantes foi liminarmente admitida. E que, mercê de tal admissão liminar, as reclamantes adquiriram os direitos e deveres daí decorrentes [cfr. artºs 875º, nº 2, 886º-A, nº 1,904º, al. a), 906º, 907º, 920º, nº 2].

         Contudo, a admissão liminar não constitui caso julgado formal relativamente às questões que nela devem ser apreciadas, nada impedindo o juiz de, em momento processual ulterior, sobre elas se pronunciar.

         Tal momento é o processualmente previsto no artº 868º que assim preceitua:

         1 – Se a verificação de algum dos créditos impugnados estiver dependente de produção de prova, seguir-se-ão os termos do processo sumário de declaração, posteriores aos articulados; o despacho saneador declarará, porém, reconhecidos os créditos que o puderem ser, embora a graduação de todos fique para a sentença final.

         2 – Se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos impugnados, não depender de prova a produzir, proferir-se-á logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente, sem prejuízo do disposto no n.° 4.

         3 – Quando algum dos créditos graduados não esteja vencido, a sentença de graduação determinará que, na conta final para pagamento, se efectue o desconto correspondente ao benefício da antecipação.

         4 – Haver-se-ão como reconhecidos os créditos e as respectivas garantias reais que não forem impugnados, sem prejuízo das excepções ao efeito cominatório da revelia vigentes em processo declarativo, ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação. (sublinhado nosso).

         Se o processo houver de prosseguir para julgamento, há lugar ao saneamento, com conhecimento, além de outras, das questões de que se deveria ter ocupado, o despacho liminar; se não houver de prosseguir para julgamento, o juiz não está dispensado de conhecer das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação.

         Ou seja, ao proferir, após a resposta das reclamantes à impugnação do F..., o despacho recorrido, o Mº Juiz “a quo”, não só não estava impedido, como tinha a obrigação de conhecer das questões que deviam ter implicado rejeição liminar da reclamação.

         O que, a nosso ver, não deveria era ter denominado de “liminar” o indeferimento aí decretado.

         A constatação da inadmissibilidade da reclamação das agravantes prejudica o conhecimento da questão substantiva por elas colocada.

         Tal questão prende-se com a interpretação do artº 819º do Cód. Civil, segundo o qual, sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados.

         Sempre se dirá, contudo, que, a nosso ver, tendo a execução prosseguido, nos termos do artº 920º, a impulso dos credores reclamantes, assumindo estes a posição de exequentes e aproveitando-se o processado, nomeadamente a penhora efectuada, é com referência a esta penhora que tem de ser interpretado aquele preceito do Cód. Civil.

         Este entendimento encontra, se bem vemos, apoio na seguinte passagem da anotação à disposição legal em causa, retirada do Código Civil Anotado de P. Lima - A. Varela:

         «Parece, escreve Vaz Serra (Realização coactiva da prestação, n.° 23; Bol., n.° 73), que a alienação voluntária dos bens penhorados só deve considerar-se inadmissível enquanto ofender os interesses da execução. Se os bens penhorados ficam afectados aos fins de uma execução e a sua indisponibilidade se destina a garantir tal afectação, não deve ela ir mais longe do que o que é aconselhado pela sua razão de ser. Para tanto, basta que a alienação dos bens penhorados seja havida como ineficaz em relação ao penhorante e aos demais credores intervenientes na execução. Quanto ao resto, nenhum motivo existe para que se lhe negue eficácia.»[5]

         Não relevam, pois, eventuais penhoras efectuadas em execuções sustadas nos termos do artº 871º, cujos exequentes foram reclamar os créditos à execução em que a penhora era anterior.


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         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e – ainda que com fundamento diferente – manter o despacho recorrido.

         As custas são a cargo das agravantes.


[1] Será, portanto, a essa versão do Código de Processo Civil que pertencerão as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] A hipoteca que invocam foi constituída por escritura pública de 22/04/2005 (fls. 194 a 197 do apenso).
[3] Na versão resultante da revisão os titulares de direitos reais de garantia que não tenham sido citados podem reclamar espontaneamente o seu crédito até à transmissão dos bens penhorados (artº 865º, nº 3).
[4] Foi desta última faculdade que se serviu, repetidamente, o F...
[5] Vol. II, 2ª edição, pág. 82.