Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3625/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM CONSTITUÍDA POR USUCAPIÃO
REQUISITOS DO SEU RECONHECIMENTO E PRESUNÇÕES ADMISSÍVEIS
Data do Acordão: 01/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS. 1268º, 1287º, 1547º E 1548º DO C. CIV..
Sumário: I – Para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente .
II – Considerando a dificuldade de ser demonstrada uma dada posse em nome próprio, ou seja, do “animus “ , a lei estabeleceu uma verdadeira presunção ( iuris tantum ) da dita posse a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o “corpus “ também tem o “ animus “ – Assento do STJ de 14/5/96 .
III – Face ao estatuído no artº 1268º, nº 1, do C. Civ. , o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrém presunção fundada em registo anterior ao inicio da posse .
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. O autor, A..., veio propor a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra os réus, B... e mulher C..., todos melhor id. nos autos, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
Serem proprietários do prédio rústico id. no artº 1 da p.i.. Propriedade essa que adquiriram, originariamente, por usucapião.
Prédio esse que confronta, do lado nascente, com o prédio dos réus, id. nos artºs 9 e 10 da p.i..
Por outro lado, sobre esse prédio dos réus (passando pelo quintal) encontra-se constituída, por usucapião, uma servidão de passagem, de pé e carro, a favor daquele prédio dos autores, e com as demais características id. na p.i.
Acontece que em Março de 2002, os réus obstruíram tal passagem através da colocação de um portão no início da mesma, impedindo, assim, os autores de a continuarem a utilizar.
Por fim, os réus realizaram obras no seu prédio urbano, ali abrindo 6 janelas voltadas para o seu prédio, sem que, todavia, tenham respeitado a distância legal.
Pelo que terminaram os autores pedindo que se reconheça serem proprietários do aludido prédio id. no artº 1º da pi, e, em consequência, que os réus sejam condenados, por um lado, a reconhecer que sobre aquele seu prédio se encontra constituída, a favor daquele do autor, a sobredita servidão de passagem de pé e de carro, e, por outro lado, ainda a respeitar o aquele seu direito de propriedade e, em consequência, a taparem as aludidas 6 janelas.

2. Na sua contestação os réus defenderam-se, em síntese, negando a existência, sobre aquele seu prédio, da sobredita servidão de passagem reclamada pelos autores a favor do seu referido prédio, e, por outro lado, que tenham desrespeitado o direito de propriedade destes com as obras, nomeadamente com a abertura das ditas janelas, que levaram a cabo no seu prédio.

3. No despacho saneador afirmou-se a validade e a regularidade da lide, tendo-se, depois, procedido à elaboração da selecção da matéria de facto, sem que tivesse sido objecto de qualquer censura.

4. Após a instrução do processo, procedeu-se à realização do julgamento – sem a gravação da audiência.
4.1 A resposta aos diversos pontos da base instrutória teve lugar, sem que tivesse então merecido qualquer reclamação das partes.

5. Seguiu-se a prolação da sentença onde, a final, se decidiu nos seguintes termos:
“Julga-se a presente acção parcialmente procedente e provada, e em consequência:
- Condeno os RR. a reconhecerem e respeitarem o direito de servidão de passagem permanente de pé e de carro, com as dimensões referidas em n) até q) dos factos provados que onera o seu prédio em favor do prédio do A. e a entregarem àquele uma chave que permita a abertura do portão por eles colocado.
- Absolvo os RR. do pedido contra eles formulado pelo A., de taparem as 6 janelas a que se referem os pontos H) e I) dos factos dados por provados.”

6. Não se tendo conformado com (parte dela) tal sentença decisória, os réus dela interpuseram recurso, o qual foi recebido como apelação.

6.1 Nas correspondentes a alegações de recurso que apresentaram, os réus concluiram as mesmas nos seguintes termos:

1- Não se acham provados nos autos os factos necessários à declaração de existência de uma servidão de passagem quer de pé quer de carro;

2- O tribunal a quo deveria ter decidido no sentido da improcedência do pedido da acção, face à inexistência de tal factualidade.

3- Não obstante o animus de posse se poder presumir, carece no entanto o mesmo de ser previamente alegado, não podendo ser suprido pelo tribunal.

Nestes Termos ....deve ...ser proferido acordão que revogue a decisão recorrida e julgue a acção improcedente..., absolvendo, em consequência, os RR., ora recorrentes do pedido”.


7- O autor não apresentou contra-alegações.

8- Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


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II- Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso.
Como é sabido, são as conclusões das alegações do recurso que fixam e delimitam o objecto do mesmo (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
1.1 Ora compulsando tais conclusões do recurso verifica-se que a única grande questão que importa aqui apreciar e decidir traduz-se em saber se, face à matéria factual dada como assente, se mostram ou não preenchidos todos os pressupostos ou requisitos legais para que possa ser declarada e reconhecida, com as características reconhecidas na sentença recorrida, a existência de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus constituída, por usucapião, a favor do sobredito prédio do autor?
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2. Os Factos
Na 1a instância foram dados como provados os seguintes factos (e que não foram objecto de impugnação pelos recorrentes):
A) O A. é dono e possuidor do seguinte prédio rústico: terra de semeadura com videiras, castanheiros e árvores de fruto, sita ao Quintal, limite da freguesia de Povolide, concelho de Viseu, a confrontar do norte com casa de habitação, sul com Manuel da Cunha, nascente com Ana de Jesus da Cunha e do poente com os RR., inscrita na matriz sob o art. 704 e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº2.108/20021203 daquela freguesia.
B) O prédio do A. apenas confronta com via pública do lado nascente.
C) Os RR. são donos do seguinte prédio: casa para habitação com 240m2 com 2 pavimentos e quintal com 1.100m2 a confrontar do nascente com o A., do poente com a rua (estrada municipal), do norte com o próprio, e do sul com António Duarte, inscrito na matriz urbana da freguesia de Povolide, concelho de Viseu, sob o art. 37.
D) Os RR. iniciaram a construção de um muro de blocos de cimento na linha divisória dos prédios mas interromperam aquela por forma a não impedir a comunicação entre eles.
E) Os RR., em Março de 2002, colocaram um portão no início do caminho, opondo-se, a partir de então, à passagem do A..
F) Posteriormente a 1994 os RR. submeteram o prédio referido em C) a obras de remodelação e de ampliação.
G) No âmbito de tais obras, os RR. rasgaram aberturas na parede poente da casa, tendo-lhes aplicado grades.
H) Tais aberturas correspondem a 3 janelas no piso superior.
I) No piso inferior foram feitas 3 aberturas.
J) Os RR. colocaram no lugar das aberturas referidas em G) tijolos de vidro fixo.
K) A via pública referida em B) é uma quelha que se situa a um nível inferior.
L) Dela estando vedado o prédio do A. por um muro em pedra de altura superior a metro e meio.
M) Há mais de 20 anos que o acesso de carro para o prédio do A. se vem processando pelo quintal do prédio dos RR., a poente.
N) Tal acesso de carro para o prédio do A. tem a largura de 2 metros.
O) E sempre se processou a partir da estrada pelo portal que também dá acesso ao prédio dos RR.
P) Atravessando o releixo dos RR., em direcção a nascente, numa extensão de cerca de 10 metros.
Q) Até penetrar no prédio do A..
R) O leito do caminho nunca foi agricultado.
S) O leito do caminho permaneceu sempre bem batido quer pelo trânsito de carro para o prédio do A., quer para os RR. acederem ao seu próprio prédio.
T) Nas condições de tempo e modo descritas em J) - crêmos tratar-se de um manifesto lapso de escrita, pois, como se revela dos próprios factos atrás descritos, certamente que se quereria dizer M) - até P) o A. por si e seus antepossuidores, usa o caminho descrito, de carro para aceder ao prédio.
U) Nomeadamente, para ali recolher, no barracão existente, o tractor e respectivas alfaias.
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3- O Direito
Apreciemos então a questão acima enunciada
3.1 No referido recurso apenas se questiona, face à matéria factual dada como assente, que se mostrem preenchidos todos os requisitos ou pressupostos legais que permitam concluir que o autor adquiriu, pelo instituto da usucapião, o direito a uma servidão de passagem constituída em benefício do seu prédio sobre o prédio dos réus, com as características que foram declaradas na sentença recorrida.
Vejamos então
3.1.1 A lei define a servidão predial como sendo um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de um outro prédio pertencente a dono diferente (cfr. artº 1543 do Código Civil - diploma ao qual nos referiremos sempre que doravante mencionarmos somente o normativo sem a indicação da sua origem).
A servidão implica, assim, uma relação de dependência entre dois prédios: de um lado o dominante, em cujo proveito ela se estabelece; do outro o serviente, onerado com o encargo em que ela se traduz.
Não se pode rigorosamente delimitar o conteúdo das servidões, já que estas podem, em princípio, ter como conteúdo, toda e qualquer utilidade (ainda que futuras ou incertas) que um prédio pode prestar a outro (cfr. artº 1544).
E daí que o nosso ordenamento jurídico contemple uma panóplia de tipos servidão, tais como servidões de passagem (que é aquela que está em causa nestes autos), de vista, de águas, de aqueduto, de presa de escoamento, de estilicídio, de emissão de fumos, etc.
A servidão confere, assim, ao seu titular poderes para fruir e utilizar a coisa, extraindo dela benefícios limitando, em consequência, o gozo do proprietário da coisa. E desse modo, a servidão é, portanto, um direito real de gozo (ius in re aliena) sobre coisa alheia, limitando o gozo efectivo do proprietário dessa coisa, na medida em que inibe este titular de praticar actos que possam prejudicar o exercício daquele direito, em benefício do titular do direito de servidão. Benefício esse que se traduz em utilidades para o dono do prédio dominante, mas que este só pode gozar como tal por intermédio do seu prédio.
É, pois, isso que resulta da dissecação daqueles normativos legais, e sobretudo do primeiro, e que se desdobra em quatro notas conceituais: a) a servidão é um encargo; b) encargo esse que recai sobre um prédio; c) que aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios (o beneficiado e o onerado) pertencerem a donos diferentes – muito embora não tenham, necessariamente que ser contíguos e nem sequer vizinhos. (Para maior desenvolvimento, que no caso não se impõe, vidé, entre outros, José Luís Santos “in Servidões Prediais. 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 12 e ss”; Pires de Lima e A. Varela “in Código Civil Anotado, 2º Vol. 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 613 e ss”; e Álvaro Moreira e Carlos Fraga, segundo as prelecções do prof. Mota Pinto ao 4º ano Jurídico ano 1970/71, “in Direitos Reais, Livraria Almedina, págs. 305 e ss”).
Servidões essas que, entre outros vários títulos, podem ser constituídas por usucapião - já que é apenas esse que aqui nos importa abordar por ser aquele em causa nestes autos, por ter sido invocado pelo autor (cfr. artº 1547).
Porém, só é legalmente possível constituir, por usucapião, servidões (neste nosso caso de passagem) desde que as mesmas se revelem por sinais visíveis e permanentes, excluindo-se, assim, as servidões não aparentes (artº 1548, nºs 1 e 2).
Com tal exigência (de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião) visou-se, como bem se salienta na sentença recorrida, afastar a aquisição do respectivo direito com base em actos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança.
Com tal norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir para a constituição da servidão sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão).
Assim, e como escrevem os profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Ob. cit. pág. 630”), para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, etc.
Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, sendo, admissível a sua substituição ou até transformação.
Ora a aquisição de um direito se servidão de passagem, por via do instituto da usucapião, dá-se nos termos do artº 1287, onde se estatui que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo o disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação...”.
Aliás, a esse propósito, escrevem profs. Pires de Lima e A. Varela (in “Ob. cit. pág. 631”), “os termos em que os artºs 1287 e seguintes se referem à usucapião (baseada na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo) torna hoje indiscutível a tese....segundo a qual as condições que na posse se requerem para a prescrição, bem como o prazo em que, segundo as condições da posse, a prescrição tem lugar, são os mesmos que na aquisição da propriedade”.
Como é sabido a usucapião é uma das formas de aquisição originária dos direitos (reais de gozo), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus/animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse (cfr., nomeadamente, artº s 1251 e ss, 1256 e ss e 1294 e ss), sendo que, nos termos do artº 1297, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde cessação da violência ou desde que a posse se torne pública.
No que concerne aquele primeiro elemento, ou seja, a posse traduz-se na prática, além do mais, reiterada, de actos materiais correspondentes ao direito que reclama ou se reivindica.
Como é sabido, nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico, aderiu à concepção ou corrente subjectivista da posse (cfr. artºs 1251 e 1253 do CC). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com a prática de actos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objecto, de modo contínuo e estável, e o “animus” que, como elemento interno, se traduz na vontade ou intenção do autor da prática de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos actos realizados. Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de actos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais actos. É que se só se verificar a presença daquele primeiro elemento (o corpus) a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insusceptível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cfr. artº 1253).
Porém, considerando a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa, ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cfr. artº 1252, nº 2, e assento, hoje acordão uniformizador de jurisprudência, do STJ de 14/5/96 , in “DR, II S, de 24/6/96, e ainda acordãos do STJ de 9/1/97 e de 2/5/99, respectivamente, in “CJ/STJ, T5 – 37” e “CJ/STJ, T2 – 126”). Pelo que, assim, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.
Resta, por fim, dizer - nesta primeira abordagem, de cariz teórico-técnico, que se fez ao tema que envolve o caso em apreço -, que, como regra, será pelo respectivo título que serão reguladas, no que concerne à sua extensão e exercício, as servidões (cfr. artº 1564). É o chamado princípio da conformação da servidão com o título, sendo que na usucapião vigora a máxima tantum praescriptum qauntum possesum.
3.1.2 Ora debruçando-nos agora mais de perto sobre o caso em apreço, e subsumindo as considerações teóricas atrás a expandidas sobre os factos que foram dados como assentes, diremos o seguinte:
Face a tal matéria factual mostram-se preenchidos os (primeiros) pressupostos legais, de que no início falámos, e dos quais, em principio, depende, desde logo, o reconhecimento de uma servidão de passagem, e mais concretamente do tipo da daquela reclamada pelo autor a favor do seu prédio sobre o prédio dos réus.
Por outro lado, e como resulta do acima exposto, como titulo constitutivo dessa servidão invocou o autor a usucapião.
Nada obsta, em principio, à constituição da pretendida servidão por essa via, já que ficou provada a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício pelo prédio dos réus a favor do prédio do autor, e, portanto, de que não se trata uma servidão não aparente (cfr. als. R) e S) do ponto 2 dos factos assentes).
Vejamos então se mostram preenchidos os respectivos requisitos de que depende, por via desse instituto, a aquisição constitutiva de tal direito de servidão de passagem: a posse e o decurso do prazo ou tempo legal.
No que concerne ao primeiro elemento (a posse), compulsando a matéria factual dada como assente, verificamos, desde logo, que dos elementos que a integram apenas o corpus se mostra provado. Na verdade, apenas ficou provado a prática, desde há mais de 20 anos, reiterada e contínua de actos materiais reveladores do exercício do reclamado direito de servidão de passagem, ou seja, a prática de actos materiais reveladores da utilização do prédio dos réus como passagem para o prédio do autor (cfr. als. M) a U) do ponto 3 dos factos assentes).
Logo, em principio, faltando a prova dos factos correspondentes ao animus (traduzido na intenção de agir como se fosse titular do direito correspondente àqueles actos praticados, ou seja, como se, na realidade, lhe assistisse o direito de passagem sobre o prédio dos réus) não poderia, sem tal elemento, haver posse. E não havendo posse jamais poderia haver concretização da constituição do direito de servidão de passagem por via da usucapião.
Todavia, e pelas razões que acima deixámos expressas, tal corpus faz, à luz do disposto no citado artº 1252, nº 2, presumir o animus. Presunção essa que não foi ilidida pelos réus, tal como lhes competia, e nomeadamente através da prova de que aqueles actos materiais (de passagem) pelo seu prédio para o prédio do autor são meramente praticados devido a tolerância sua ou que o último não efectua tal passagem assumindo-se como se, na verdade, beneficiasse de um direito que ali lhe permite passar, sendo certo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (crf. artº 350, nºs 1 e 2).
Logo, aqui chegados, e verificada posse, conviria indagar se se verifica o decurso do prazo legalmente exigido para que o autor pudesse ter adquirido o correspondente direito de passagem por via do instituto da usucapião (sendo certo que esse elemento, tal como os outros, é constitutivo do seu reclamado direito de servidão de passagem – cfr. artº 342, nº 1).
No caso em apreço, dado que estamos perante uma posse não titulada, e que não existe registo da mesma ou do direito em causa, deve aquela presumir-se de má fé (presunção essa que não resulta ilidida da matéria factual assente), tornando-se, assim, necessário o decurso do prazo de 20 anos, sobre o início de tal posse, para a constituição do aludido direito de servidão de passagem (cfr. artºs 1260, nº 2, e 1296).
Da matéria factual assente resulta também provado que tal posse vem sendo exercida, ininterruptamente, há mais de 20 anos (cfr. als. M) e T) do ponto 2) .
Porém, e tal como decorre do acima já exarado, para que tal prazo se iniciasse necessário se tornava que tal posse fosse pacífica e pública, pois que se o não fosse, isto é, se fosse exercida ou constituída com violência e fosse tomada ocultamente, tal prazo para a usucapião só se iniciaria a partir do momento em que cessasse a violência ou a posse se tornasse pública (crf. artº 1297).
Ora a prova de que se trata de uma posse pacífíca e pública (cfr. artºs 1261, nº 1, e 1262) competiria, em princípio, ao autor, como facto constitutivo do seu alegado direito.
Ora, compulsando matéria factual descrita como assente, verifica-se que não resultam provados esses dois caracteres da posse. Elementos esses, como vimos, fundamentais para o início da contagem do prazo com vista à constituição, por usucapião, do reclamado direito de servidão de passagem.
E sendo assim a acção estaria, em princípio, votada ao fracasso.
E dizemos em princípio porque há que ter em conta, no caso em apreço, o estatuído no artº 1268.
É que tal normativo preceitua, no seu nº 1, que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.”
Direito esse que naturalmente terá que corresponder ao tipo de posse que foi ou é exercida pelo possuidor, e que no caso em apreço diz respeito ao direito de servidão de passagem constituída sobre o prédio dos réus a favor do prédio do autor.(cfr., a propósito, profs. Pires de Lima e A. Varela “in “Ob. cit. págs. 34/35., notas 2 e 3”; Álvaro Moreira e Carlos Fraga in “Ob. cit. págs. 204/205” e o prof. Oliveira Ascensão in “Direito Civil Reais, 4ª ed. Coimbra Editora, págs. 109/110” ).
Presunção essa (à semelhança daquela anterior que resulta directamente do corpus) que nesse domínio da posse tem grande relevância (para se chegar ao direito reclamado, em que muitas vezes a prova directa se apresenta difícil) e daí o borcardo romano “in parai causa melior est conditio possidentis ou inglês “de que a posse vale nove décimos da propriedade”.
Presunção legal essa que é ilidível e que, à semelhança daquela anterior, faz igualmente inverter o ónus de prova que, a tal propósito, impendia sobre o autor, revertendo-o, assim, contra os réus, pois que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr., mais uma vez, artº 350, nºs 1 e 2).
Logo, era sobre os réus que passou a impender o ónus de provar a inexistência do direito de servidão de passagem, sobre o seu prédio reclamado pelo autor, e mais concretamente ainda que o prazo legal para a constituição desse direito de servidão, por usucapião, ainda não havia decorrido, por, nomeada e alegadamente, se tratar de uma posse violenta e/ou oculta.
Logo, não tendo os réus também ilidido tal presunção legal (que se junta à anterior no que concerne ao animus da posse), ter-se-á de concluir pela existência de uma servidão de passagem constituída, por usucapião, sobre o prédio daqueles a favor do prédio do autor (vidé, neste sentido, e a propósito de situação similar, Ac. do STJ de 11/11/03 in “Rev. Nº 3426/03”).
Antes de prosseguirmos apenas um à parte para dizermos que se assim não tivéssemos concluído não poderia a acção ser julgada, desde logo, improcedente e pelo seguinte:
Como resulta do que atrás já deixámos exarado, da matéria factual que foi dada como assente não constam os necessários factos para se poder concluir pela existência do animus e bem assim do carácter pacífico e público da posse.
Porém, tal não se ficou a dever à circunstância de os correspondentes factos não terem sido provados ou de não terem sido alegados.
Pelo contrário, tal sucedeu porque, não obstante terem sido oportunamente alegados pelo autor na sua petição inicial, não foram, todavia, levados à selecção da matéria de facto.
E que assim é basta atentar no artº 4 da pi, onde o autor, com vista a provar que adquiriu (originariamente) o seu sobredito prédio por via da usucapião, afirma, na sequência do alegado nos artºs 2º e 3º, que, há mais de 20 anos, por si e seus antepossuidores, que o vem agricultando, dele colhendo os frutos e utilidades, nele depositando lenhas, matas e produtos agrícolas, etc. etc. “aos olhos de toda a gente, sem qualquer oposição, de forma ininterrupta, sempre na convicção de actuar no exercício de um direito próprio..” (sublinhado nosso).
Depois, mais à frente, no artº 16 da pi, e com vista à prova da constituição, por usucapião, do sobredito direito de servidão de passagem, que vimos analisando, afirmou, a tal propósito, “nas condições de tempo e de modo já descritas nos artºs 2º, 3º e 4º, por si e seus antepossuidores, anda o autor na posse da servidão de passagem, de pé e carro, acima descrita para, através do prédio dos Réus, aceder ao seu prédio...” (sublinhado nosso).
Logo, dado tratar-se, como vimos, de factos essenciais para a decisão da causa, ter-se ia então que, à luz do disposto n o artº 712, nº 4, do CPC, anular, oficiosamente, a decisão da 1ª instância, e mandar ampliar a base instrutória (dado que os mesmos foram objecto de impugnação por parte do réus - cfr., nomeadamente, o artº 2º da sua contestação) com tais factos, com a subsequente repetição do julgamento para produção de prova sobre os mesmos.
Feito este à parte, avancemos de novo.
Ora tendo concluído pela existência de um direito de servidão de passagem, sobre o prédio dos réus, constituída a favor do prédio do autor, será que tal servidão deve ser reconhecida, quanto ao exercício, com a extensão ou características com que foi reconhecida na sentença recorrida?
Ali reconheceu-se que, além do mais, tal servidão seria de pé e de carro.
Atrás deixamos expresso que em tal matéria vigora, entre nós, o chamado princípio da conformação da servidão com o título, dado ser pelo respectivo título que serão reguladas, no que concerne à sua extensão e exercício, as servidões (cfr. artº 1564).
Compulsando, a tal propósito, a matéria factual apurada, verificamos (um pouco estranhamente, devemos dizê-lo) que o acesso ou passagem pelo prédio dos réus para o prédio do autor apenas se faz, nas demais condições de tempo e modo supra exaradas, de carro, muito embora também tivesse sido alegado pelos autores que tal também acontecia a pé. Só que esse acesso ou passagem a pé não ficou provado, não obstante, repetimo-lo, ter sido ser alegado (cfr. als. M), N), S) e T) e respostas restritivas dadas aos quesitos 3º, 4º e 9º).
Sendo assim, apenas deverá ser reconhecida a existência e constituição, sobre o prédio dos réus, de uma servidão de passagem de carro (e não também de pé) a favor do prédio do autor.
Assim, pelo exposto, decide-se julgar apenas parcialmente procedente o recurso dos réus, alterando-se e revogando nessa medida a sentença recorrida, a qual se manterá quanto ao demais ali decidido (muito embora por razões não totalmente coincidentes com os fundamentos ali aduzidos).
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III- Decisão
Assim, em face de tudo o atrás exposto, acorda-se em conceder apenas parcial provimento ao recurso (de apelação) dos réus, revogando-se a sentença da primeira instância somente na parte em que reconheceu que a servidão de passagem, constituída sobre o prédio dos réus a favor do prédio do autor, é também de pé (já que é apenas de carro), sendo que quanto ao demais mantém-se o ali decidido (muito embora por razões não total mente coincidentes).
Custas do recurso pelos réus-apelantes e pelo autor-apelado na proporção do seu decaímento, e que para o efeito fixamos em 2/3 para os primeiros e em 1/3 para o segundo (sendo que no concerne às custas da 1ª instância se nos afigura manter a mesma proporção de decaímento).

Coimbra, 2005/01/18