Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
374/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: FALÊNCIA
REMUNERAÇÃO
LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
Data do Acordão: 04/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 132º, 133º, 135º E 138º DO CPEREF APROVADO PELO DL 132/93, DE 23/04 .
Sumário: I – O liquidatário judicial, uma vez nomeado, assume de imediato as suas funções, e cessa a sua actividade com o trânsito em julgado da decisão que aprova as contas da liquidação da massa falida .
II – A fixação da remuneração a favor do liquidatário poderá ser alterada a todo o tempo, em função das dificuldades e dos resultados alcançados com o exercício desse cargo .

III – Com a cessação de funções vence-se, em princípio, a remuneração correspondente ao exercício da actividade desenvolvida pelo liquidatário judicial, pois só então é possível formular um juízo global sobre o seu desempenho .

Decisão Texto Integral: 1
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra
I- Relatório
1. A..., liquidatário judicial no processo de falência autuada sob o nº 133/2000, que corre termos no tribunal judicial da comarca de Figueiró de Vinhos, e na qual foi declarada falida B..., interpôs recurso do despacho proferido a fls. 1566/1567, no qual se determinou a cessação da remuneração do mesmo, com efeitos retroactivos reportados à data do último pagamento efectuado.

2. Recurso esse que foi admitido como agravo, com subida imediata, em separada e com efeito devolutivo.

3. Nas respectivas alegações de recurso que apresentou, o agravante concluiu as mesmas nos seguintes termos:
“PRIMEIRA
Considerando que o despacho recorrido não especifica quais os fundamentos de Direito que a justificam as decisões, é o mesmo nulo, face ao disposto no art. 668º do C.P.C..
SEGUNDA
A remuneração do liquidatário a fixar pelo Juiz deve atender à prática de remunerações seguida na empresa, ao parecer dos credores e às dificuldades das funções compreendidas na gestão, devendo ser também estes os elementos a tomar em conta para a alteração da remuneração.
TERCEIRA
No caso sub judice, não existiu qualquer alteração na prática de remunerações seguida na empresa que tenha justificado a cessação da remuneração nem o despacho recorrido não foi precedido de qualquer consulta à comissão de credores.
QUARTA
No que diz respeito às “dificuldades das funções compreendidas na gestão”, o que parece ter sido o factor basilar tido em atenção na decisão recorrida, e à eventual alteração da quantidade ou qualidade dos serviços desempenhados pelo Recorrente, a mesma não aconteceu e manteve-se sensivelmente idêntica desde que a acção começou. Não é aceitável o dito no despacho relativamente aos serviços que têm vindo a ser prestados pelo liquidatário, para além de injusto.
QUINTA
O Liquidatário sempre procedeu no estrito cumprimento do articulado no C.P.E.R.E.F., agindo com o sentido de um gestor diligente e em estreita colaboração com a Comissão de Credores, expedindo informação, por escrito ou telefonicamente, para cada um dos seus membros, solicitando-lhes pareceres nos casos previstos na Lei e sempre que a situação a isso recomendava.
SEXTA
Todos os documentos de suporte constam dos autos de falência, incluindo o registo de cada telefonema/fax, estes últimos até 21/07/2003, pelos quais se avalia em detalhe (ainda que aproximado) a actividade do Liquidatário. O detalhe não é completo uma vez que, por vezes, determinadas diligências que leva a cabo não têm interesse para o Tribunal ou para a comissão de credores.
SÉTIMA
Nos processos de falência os picos de maior trabalho respeitam, geralmente, à sua fase inicial, mas é o liquidatário quem responde sempre e ilimitadamente, com o seu património pessoal, por um eventual descaminho de bens da massa falida e perante a Administração Fiscal (que nunca se sabe quando exige algo ao Liquidatário), mesmo após encerramento dos autos de falência. Trata-se, assim, de uma enorme responsabilidade que recai sempre sobre os ombros do Liquidatário (mesmo depois do arquivamento do processo)
OITAVA
O Liquidatário apreendeu diversos bens móveis e vendeu-os, obteve a transferência do produto da venda do estabelecimento comercial, da Direcção-Geral do Tesouro para uma conta bancária aberta em nome da massa falida, procedeu à análise dos saldos devedores à falida, expediu mais de uma centena de cartas a clientes para cobranças, recebeu valores e passou notas de quitação, elaborou relatórios que submeteu à apreciação da Comissão de Credores e levou aos autos, e tem vindo a acompanhar o desenvolvimento dos recursos em várias instâncias, tendo-se sempre pronunciado sobre os mesmos, quando chamado a isso, sempre em conjunto com a comissão de credores, solicitando e emitindo pareceres em matérias de capital interesse para os autos, levando aos autos, atempadamente, todas as questões pertinentes, para que qualquer interessado esteja informado a todo o tempo.
NONA
O Liquidatário sempre esteve e está atento aos desenvolvimentos dos autos, e, particularmente aos recursos que têm surgido e que ainda não se encontram decididos, acompanhando sempre os mesmos de perto.
DÉCIMA
A Comissão de Credores é constituída por entidades com colaboradores da mais elevada capacidade técnica para acompanhamento dos autos e nenhum reparo foi alguma vez feito quanto à acção do Liquidatário, nem mesmo quanto a matéria de remuneração que foi fixada já na distante data de 19 de Fevereiro de 2001.
DÉCIMA PRIMEIRA
O Liquidatário Judicial tem sempre mantido um nível de trabalho muito significativo, o seu envolvimento nos autos é constante, mas continuam a existir matérias de interesse ainda sem decisão final e que, infelizmente, impedem o encerramento do processo e a libertação do Liquidatário Judicial para novos afazeres. No seguimento de notificação que lhe foi dirigida, o Recorrente foi ouvido em Tribunal, no dia 11 de Maio de 2004, respondendo às questões que lhe foram colocadas. O Recorrente não tem podido assumir novos compromissos, pois, se o fizesse, estaria a comprometer a disponibilidade profissional que lhe é exigida para responder às questões inerentes à presente falência da B... e não pode deixar de ter em conta as limitações estabelecidas no Decreto-Lei nº. 188/96 de 08 de Outubro, cujas custas pelo exercício das suas funções vão mesmo para além do término das mesmas (artº. 3), por lhe estar vedado o exercício de actividades num período até dois anos, depois de deixar o processo de falência que acompanha.
DÉCIMA SEGUNDA
O Recorrente não se pode ausentar - designadamente por motivo de férias, por longos períodos em resultado do facto de ser liquidatário neste processo, pois tem que estar permanentemente disponível, que inclusivamente afectam os seus períodos de descanso semanal, que está permanentemente sujeito a várias pressões (e, por vezes, até perigos), que o recorrente está sujeito ao número limite máximo de processos previsto no art. 1º do DL nº. 188/96, de 8 de Outubro, o que torna especialmente injusto o facto de se pretender que exerça as suas funções a título gratuito num processo que também conta para efeitos do cálculo do referido limite máximo.
DÉCIMA TERCEIRA
Nenhuma das várias causas para o atraso no desenvolvimento do processo são imputáveis ao Recorrente. O prazo de seis meses para conclusão do processo não é imposto por lei nem pela jurisprudência mais exigente.
DÉCIMA QUARTA
Salvo melhor opinião, não colhem os argumentos constantes do despacho recorrido para fazer cessar a remuneração do liquidatário, basicamente porque a realidade dos factos é diversa. O Recorrente continua a desenvolver aturados serviços neste processo (embora muitos dos quais não cheguem, porque não têm que chegar, ao conhecimento do Tribunal), sempre com resultados positivos, tudo o que tem sido desde sempre reconhecido pela Comissão de Credores.
DÉCIMA QUINTA
O Recorrente organizou e programou toda a sua vida pessoal e profissional em função da remuneração a que tem direito neste processo, efectuou despesas e investimentos na justificada pressuposição de que aquela remuneração iria ser paga, motivos estes pelos quais a cessação da remuneração com efeitos retroactivos frustra de forma grave as suas legítimas expectativas (porque baseadas num despacho judicial), além de ofender o princípio do caso julgado.
DÉCIMA SEXTA
Logo, a cessação retroactiva da remuneração - realidade com a qual nunca se contactou em qualquer ramo de direito em que estivesse envolvida uma contraprestação por quaisquer serviços prestados - consubstanciaria algo semelhante a uma alteração unilateral de um vínculo contratual, que, à luz dos Princípios Gerais de Direito, não pode ser aceite.
DÉCIMA SÉTIMA
Considerando que a intensa actividade do Recorrente neste processo se manteve sempre em termos sensivelmente idênticos, nos moldes supra alegados, entende o mesmo que lhe devem ser entregues todas as remunerações vencidas desde Dezembro de 2003 até à data em que o despacho foi proferido, assim se revogando o despacho no respeita à cessação retroactiva da remuneração. Assim, deverá manter-se o despacho que atribuiu a remuneração de € 997,60 (brutos) ao Recorrente até que o mesmo seja (eventualmente) revogado com efeitos ex nunc.
DÉCIMA OITAVA
No que respeita às remunerações futuras, e também porque o volume de trabalho ainda o justifica, entende o Recorrente que as mesmas se devem manter com o nível inicialmente fixado, assim também se revogando o despacho no que respeita à cessação da remuneração para o futuro.
DÉCIMA NONA
Em alternativa, mas sempre com o pagamento prévio das remunerações vencidas e a audição prévia da comissão de credores, admite o Recorrente que, atenta a ligeira diminuição - em média - dos serviços por si prestados, a sua remuneração seja reduzida em 75%, passando por isso a ser de € 748,20 (brutos) mensais.
VIGÉSIMA
Salvo o muito devido respeito, o despacho recorrido interpretou e aplicou de forma menos acertada o disposto nos arts. 34º, 132º, 133º, 135º, 138º, 147º, 214º e 223º do C.P.E.R.E.F. e o art. 5º do DL nº. 254/93, que deveriam ter sido interpretados e aplicados do modo sufragado nestas alegações.
Termos em que deve revogar-se se o despacho de fls. 1566, mantendo-se o despacho que determinou a remuneração mensal do requerente”.

4. O srº juiz do tribunal a quo proferiu, de forma tabelar, despacho de sustentação do despacho recorrido.

5. Corridos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação
1. Como é sabido, é pelas conclusões do recurso que se afere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas, naturalmente, aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, do CPC).
Por outro lado, como resulta do prescrito no nº 2 do artº 660 do CPC, é dever do julgador resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Vem, também, sendo dominantemente entendido que o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a derimir (vidé, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec”, e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”).
1.1 Ora compulsando as conclusões do recurso e tal como, aliás, decorre claramente do atrás exarado, verifica-se que as questões apreciar neste recurso serão as seguintes:
a) Saber se o despacho recorrido enferma do vício de nulidade previsto no artº 668 do CPC.
b) Indagar da legalidade de tal despacho ao declarar a cessação da remuneração do srº liquidatário judicial.
c) Indagar da legalidade desse despacho ao fixar que tal cessação seja com efeitos retroactivos (à data do último pagamento que lhe foi efectuado).
d) Indagar da legalidade desse despacho ao ter fixado ao srº liquidatário uma remuneração a título de valor global pelas funções exercidas e não título de remuneração mensal fixa.
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2. Os Factos
Com relevo para a decisão do recurso devem, além do mais, ter-se como apurados os seguintes factos (os quais resultam dos diversos elementos juntos aos autos, quer deste recurso, quer do processo principal de falência – que requisitámos e consultámos):
2.1 Na sequência de requerimento inicial apresentado (em 17/5/2000) para o efeito pelo credor então Banco Comercial Português, SA., veio a ser decretada a falência de B..., no processo (especial de falência) autuado com o nº 133/2000 do Tribunal Judicial da Comarca de Figueiró dos Vinhos, por sentença proferida em 10/11/2000, devidamente já transitada.
2.2 Nessa sentença foi nomeado o ora recorrente para exercer as funções de liquidatário judicial.
2.3 Pelo despacho proferido, em 19/2/2001, a fls. 1036-verso desses autos de falência foi fixada em esc. 200.000$00 a remuneração mensal do srº liquidatário judicial (e depois os credores terem sido convidados a pronunciarem-se a esse propósito).
2.4 Na altura (tal como ainda agora) em que foi proferido o despacho recorrido (datado de 15/7/2004) não haviam ainda sido apresentadas as contas definitivas da liquidação da massa falida (e, consequentemente, não tinha até então sido proferida decisão homologatória ou aprovatória das mesmas).
2.5 Tal facto ficou a dever-se às razões aduzidas pelo srº liquidatário, nomeadamente, no seus requerimentos de fls. 142 e ss, 153, 155/156 ou 301/302 (e que, no essencial, têm a ver com a pendência dos processos aí identificados) – cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido – as quais, até ao momento, mereceram aprovação do srº juiz do processo.
2.6 O último recibo de quitação junto aos autos pelo srº liquidatário judicial diz respeito ao recebimento de honorários referentes aos meses de Dezembro de 2003 e Janeiro, Fevereiro e Março de 2004 (cfr. docs. juntos a fls. 1611 e 1612 dos autos principais de falência).
2.7 Para proferir o despacho recorrido o srº juíz a quo não ouviu a comissão dos credores.
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3. O Direito
3.1 Quanto à 1ª questão
Da nulidade do despacho recorrido por violação do artigo 668 do CPC
O artº 668 do CPC, configura nas diversas alíneas do seu nº 1 várias situações que podem levar à nulidade da sentença (embora no bom rigor jurídico - e como bem salienta o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Ed., 2ª vol. pág. 669” – se tratem mais de causas de anulabilidade - da decisão viciada - do que de nulidade da mesma).
Normativo esse que, como é sabido, é aplicável aos próprios despachos, por força do disposto no nº 3 do artº 666 do CPC.
Muito embora o recorrente não tenha feito qualquer a alusão sobre a alínea daquele citado preceito legal em que integra tal causa de nulidade, todavia, ao alegar que a invocada causa de nulidade do despacho recorrido se fica a dever à circunstância de não ter especificado os fundamentos de direito que justifiquem a decisão nele tomada, tal situação causal só poderá ser integrada na previsão da alínea b) do nº 1 do aludido artº 668.
Na verdade, estatui-se ali que “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Vem sendo dominantemente entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que esse vício (de nulidade da decisão) só ocorre quando houver falta absoluta ou total de fundamentos ou de motivação (de facto ou de direito em que assenta a decisão), e já não quando essa fundamentação ou motivação for deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada. Essa fundamentação porventura deficiente, incompleta ou até errada poderá afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas nunca poderá, assim determinar a sua nulidade. (Neste sentido vidé, o prof. Lebre de Freitas, in “Ob . e pág. cit “; Ac. STJ de 19/03/02, in “Rev. Nº 537/02-2ª Sec., Sumários, 03/02”; Ac. RC de 16/5/2000 in “www.dgsi.pt/jtrc”; Ac. STJ de 13/01/00, in “Sumários, 37-34”; Ac. RLx de 01/07/99, in “BMJ 489-396”; Ac. STJ de 22/01/98, in “BMJ 473-427”; Ac. STA de 06/06/89, in “BMJ 388-580”; Ac. STJ de 15/11/85, in “Rec. nº 1214, Acord. Doutrin., 293-640”; Ac. STJ de 05/01/84, in “BMJ 333-98”; Ac. STJ de 13/10/82, in “BMJ 320-361”; Ac. RP de 08/07/82, in “BMJ 319-343”; Ac. RC de 14/11/80, in “BMJ 303-279”; e Ac. RLx de 10/03/80, in “BMJ 300-438”).
Por uma questão de economia, transcreveremos apenas a parte final conclusiva e decisória do despacho recorrido (sendo que a restante parte dá-se aqui por reproduzido o seu teor):
“(..) Pois, bem no presente caso, uma vez que a liquidação do activo já não poderá ultimar-se antes do início das férias judiciais e atento o tempo já decorrido desde a data em que foi decretada a falência, considerando a remuneração fixada, entende-se que deverá ser considerado, como remuneração global e pela soma das quantias até então percebidas, já que a concreta actividade do Exmº Sr Liquidatário está já suficientemente paga de acordo com tal quantitativo, ademais, atendendo ao adiantamento de tais quantias à custa dos Cofres Gerais dos Tribunais.
Assim, determina-se a cessação da remuneração do exmº Liquidatário, com efeitos retroactivos, reportados à data do último pagamento efectuado”.
Porém, compulsando a anterior parte do despacho verifica-se que tal decisão (nomeadamente para justificar a cessação da remuneração do srº liquidatário judicial, a fixação de uma remuneração global ao mesmo e a atribuição de efeitos retroactivos à mesma) se encontra apoiada em diversos considerandos legais e jurisprudenciais, ou seja, o srº juiz a quo estribou-se para o efeito em diversos normativos legais (artºs 132, nº 1, 133, 135, e 138 do CPEREF e artº 5, nº 1, do DL nº 254/93 de 15/7) e acordãos dos nossos tribunais superiores (em nº de 4) que ali cita a tal propósito.
Pode-se discordar da solução final encontrada ou das razões de direito aduzidas para efeito (considerando estas porventura insuficientes, deficientes ou mesmo erradas), mas não pode, salvo o devido respeito, alguém de boa fé afirmar que o despacho recorrido enferma da ausência (total) de especificação da fundamentação ou motivação de direito.
Desse modo, e sem necessidade de outras, considerações, terão, nessa parte, de improceder conclusões o recurso.

3.2 Analisemos, agora, as restantes questões acima enunciadas.
Começaremos por salientar que, por força do disposto no artº 12, nº 1, do DL nº 53/2004 de 18/3 (que aprovou o Novo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), continua a aplicar-se a este processo (pendente à data de entrada em vigor – em 15/9/2004 - de tal diploma) o regime então vigente do CPEREF, aprovado pelo DL nº 132/93 de 23/4 e com as alterações introduzidas pelo DL nº 315/98 de 20/10 (e a cujo diploma pertencerão os normativos doravante indicados sem a menção da sua origem). Pelo que será à sua luz que tais questões serão apreciadas.
O liquidatário judicial é nomeado pelo juiz, nos termos do artº 132, nº 1, ao qual compete fixar a sua remuneração, tendo como referência os critérios estabelecidos naquele código para a remuneração do gestor judicial (artºs 133º e 34º do CPEREF e 5º do DL n.º 254/93 de 15/7 – entretanto revogado pelo artº 29 da Lei nº 32/2004 de 22/7, que consagrou, a partir o dia 15/7/2004, o estatuto do Administrador da Insolvência).
E, por força do artº 34, nº 1, a quantificação da sua remuneração tem como parâmetros o parecer dos credores, a prática de remuneração seguida na empresa e as dificuldades inerentes às tarefas àquele cometidas.
O liquidatário judicial, uma vez nomeado, assume de imediato as suas funções (artº 135), entre elas se destacando a de preparação do pagamento das dívidas do falido, cobrando, se necessário, os créditos do falido sobre terceiros (artºs 134 e 146); o exercício da administração ordinária em relação à massa falida (artº 143); liquidação do activo (artº 180); apresentação de relatórios semestrais sobre o seu estado (artº 219); confirmação dos negócios do falido posteriores à declaração de falência, quando nisso haja interesse para a massa (artº 155, nº 2), e cessa as funções em causa com o trânsito em julgado da decisão que aprova as contas da liquidação da massa falida (artº 138).
Quanto à fixação da remuneração a favor do liquidatário, tal como sucede para o gestor judicial, poderá ser alterada a todo o tempo (para mais ou para menos), em função das dificuldades e dos resultados alcançados com o exercício desse cargo (artº 34, nº 3, do CPEREF), pelo que a remuneração não tem carácter imutável, possibilitando a sua adequação às dificuldades acrescidas ou diminuídas do exercício do respectivo cargo, mediante um juízo feito “à posteriori”, produzindo a decisão sobre a nova remuneração efeitos retroactivos (vidé, neste sentido, e entre outros, Ac RLx de 18/4/2002, in “CJ, ano XXVII, tomo II, pág.108”, Ac, RP de 11/6/2001 in “www.dgsi/jtrp” e Ac. RG de 11/12/2003 in “www.dgsi/jtrg”).
Com a cessação de funções vence-se, em princípio, a remuneração correspondente ao exercício da actividade desenvolvida pelo liquidatário judicial, pois só então é possível formular um juízo global sobre o seu desempenho, em função dos factores supra referidos.
Mas isso não obsta a que se estabeleça, segundo um critério de previsibilidade e com carácter provisório, adiantamentos por conta da remuneração global, como se extrai das normas dos artºs 34, nºs 2 e 5, e 133, ao preverem a existência de adiantamentos por conta da remuneração devida ao liquidatário e daí que a atribuição de determinada quantia mensal esteja sujeita a uma correcção final, segundo o critério já exposto, como à amplitude e complexidade do trabalho efectivamente desenvolvido e aos resultados obtidos.
Coloca-se, porém, a questão de saber se a remuneração do liquidatário judicial deverá incidir sempre sobre o período temporal desde que inicia até que cesse as suas funções, independentemente dos parâmetros acima enunciados, sobretudo naquelas situações em que a liquidação do activo se arrasta por vários anos, havendo meses em que a actividade do liquidatário é reduzida ou mesmo nula?
A este respeito, já se decidiu que o legislador ao estabelecer a remuneração do liquidatário teve em atenção que a respectiva actividade não deverá, em regra, ultrapassar seis meses, apenas com prorrogação por mais algum tempo (tendo por máximo igual período de tempo), dada a natureza urgente do processo, como decorre dos artºs 10 e 180, nº 2, logo a remuneração deverá corresponder a esse período temporal ou àquele que se reputar razoável para o efeito (cfr. Ac da RC de 2/10/2001, in “C.J. ano XXVI, tomo IV, pág.23”).
Devendo, em princípio, acolher-se esta interpretação teleológica, dada a unidade valorativa do sistema normativo que melhor se coaduna com o princípio da proporcionalidade, o certo é que não pode aplicar-se em termos rígidos, sem tomar em consideração as circunstâncias peculiares de cada caso, pois o direito à remuneração é indissociável do exercício efectivo das funções do liquidatário.
O que significa que o direito à remuneração não se esgota impreterivelmente nesse período, a menos que se comprove que o srº liquidatário prolongou injustificadamente a sua actividade para além dele, sem conteúdo útil, mas sendo assim, estar-se-ia perante a figura do abuso de direito (artº 334 do CC). - cfr. ainda a propósito das questões supra referidas, e no sentido explanado, o acordão desta Relação e Secção, de 1/2/2005, in “recurso de agravo, nº 3094/04, em que foi relator o exmº srº desembargador Jorge Arcanjo, do qual o ora relator foi adjunto, e cujo pensamento aqui seguimos de perto.
Postas estas considerações e subsumindo-as ao caso em apreço teremos, desde logo, de concluir o seguinte:
Que o montante da remuneração ao srº liquidário fixado, pelo despacho judicial de 19/1/2001, na quantia mensal de esc. 200.000$00 (hoje € 997,60), assume, a partir da data da sua nomeação, a natureza de remuneração provisória, enquanto adiantamento por conta da remuneração global, logo sem carácter definitivo e imutável.
Remuneração global essa (pelo exercício da actividade que desempenhou no processo) que, assim, só se vencerá (em termos de direito de crédito) quando o srº liquidatário, ora agravante, cessar funções. E essas funções só cessarão - a não ser que seja removido ou dispensado do cargo - quando transitar em julgado a decisão que aprove as contas da massa falida. Só nessa altura é que haverá condições, e tendo em conta os padrões e critérios supra expendidos (nomeadamente em temos de avaliação: dos resultados alcançados, do maior ou menor grau de complexidade da actividade desenvolvida, do tempo exigido para o efeito, etc, etc), para quantificar (definitivamente) tal remuneração.
E sendo, assim, nada impede que, até lá, aquele montante remuneratório possa ser alterado, nomeadamente (para mais ou para menos), já que será aquando da fixação final da referida remuneração global que se procederá a um “acerto de contas”, se a ele houver lugar.
Logo, nada a dizer, em princípio, ao facto de o srº juiz a quo ter decidido fixar uma remuneração global ao srº liquidatário e com efeitos retroactivos, nos termos em que o fez.
Porém, e como resulta do exposto, o srº juiz a quo não poderia ter fixado tal remuneração global ao srº liquidatário judicial sem o mesmo ter cessado funções. E tal só acontece, como se viu, após ter sido proferida decisão, devidamente transitada, que aprove as contas da liquidação da massa falida (o que, até ao momento, não sucedeu, sendo certo que tais contas - pelas razões aduzidas em 2.5 - ainda nem sequer foram apresentadas). Pois, além do mais, só nessa altura haverá condições, como supra se deixou expresso, para formular um juízo global sobre o desempenho do srº liquidatário, em função dos factores atrás referidos.
Por outro lado, não tendo o srº liquidatário cessado funções, não poderia o srº juiz a quo determinar a cessação da sua remuneração. Para além do direito à remuneração ser indissociável do exercício (efectivo) da função ou actividade de liquidatário judicial (tal como decorre do seu estatuto profissional), tal medida afrontaria os mais elementares princípios do direito laboral, segundo os quais a cada trabalho (exercido profissionalmente) deve corresponder uma remuneração.
Ora não faria sentido que o srº liquidatário se mantivesse em funções sem doravante ter direito a qualquer remuneração pelo trabalho desempenhado ou a desempenhar. Isso não significa, porém, e a nosso ver, que a remuneração mensal que lhe está actualmente atribuída - e que já vimos ter apenas a natureza de remuneração provisória, com carácter de adiantamentos por conta da remuneração global a ser no final fixada – possa ser repensada ou revista, nomeadamente em termos de montante, se o srº juiz a quo, após uma análise ponderada do processo e da situação actual (nomeadamente sopesando, quer os resultados alcançados, quer actividade que o processo actualmente exige do srº liquidatário), concluir que tal se justifica e desde que não coloque definitivamente em causa o direito à remuneração daquele pelo trabalho desenvolvido ou a desenvolver nos âmbito de tais funções (e sempre depois de ouvir para o efeito a comissão de credores, como, a nosso ver, já se impunha aquando da decisão que foi tomada no despacho recorrido – tal como decorre do disposto do artº 34, nºs 1 e 3 ex vi artº artº 133 do CPEREF e artº 5º do citado DL nº 254/93 e das considerações supras tecidas sobre a natureza das remunerações provisórias e globais).
Pelo exposto, teremos de concluir que o despacho recorrido foi não só intempestivo como também ilegal, razão essa pela qual se decide revogá-lo (muito embora por fundamentos não inteiramente coincidentes com os invocados no recurso).
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III- Decisão
Assim, por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso (de apelação), revogando-se o despacho recorrido.
Sem custas.

Coimbra, 05/04/2005