Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
504/08.7TBPMS.
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COMPRA E VENDA COMERCIAL
VENDA A CRÉDITO
MORA
COMUNICABILIDADE
DÍVIDA DE CÔNJUGES
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTºS 2º E 463º, Nº 1 DO CÓDIGO COMERCIAL; 805º, Nº 2, 882º, Nº 2 E 1691º, Nº 1, AL. D) DO C. CIVIL .
Sumário: 1.- Comprovando-se que a Autora, no âmbito da sua actividade de distribuição, forneceu à Ré, proprietária de Farmácia, diversos produtos farmacêuticos, devidamente facturados através de “resumos de facturas semanais”, com vencimento no último dia do mês seguinte àquele em que foram emitidos, e “resumo de facturas de campanha”, com vencimento no prazo máximo de 30 dias, tal situação reconduz-se a contratos de compra e venda mercantil, celebrados entre comerciantes ( arts. 2º e 463º, nº 1 C Comercial), pois chamando contrato de fornecimento assume a natureza de contrato de compra e venda, pressupondo um prolongamento no tempo das mercadorias.
2.- Quando o prazo é somente para o pagamento do preço e o vendedor deve entregar logo a coisa vendida, temos uma venda a crédito ou com espera de preço, sendo que a obrigação de pagar o preço configura, não uma obrigação pura, mas uma obrigação a prazo ou a termo, em que a mora não está dependente de interpelação do credor, mas do decurso do prazo de vencimento ( art. 805º, nº 2, a) CC ).
3.- O art. 882º, nº 2 do CC ( “ a obrigação de entrega abrange, salvo estipulação em contrário (…) os documentos relativos à coisa ou direito”) positiva uma obrigação acessória, reportando-se aos documentos relativos à coisa ou direito e não aos documentos relativos ao contrato que teve por objecto a coisa ou direito.
4.- Só a falta de documentos essenciais para o uso da coisa deve inserir-se no regime da falta de cumprimento da entrega da coisa, originando a falta de outros documentos o direito de indemnização pelos prejuízos causados ao comprador.
5. - Da conjugação dos arts.1691º, nº 1, d) CC e art.15º C. Comercial resulta que o credor do comerciante apenas terá que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.
6.- Em face da ratio do art.1691º, nº1, d) do CC, não há uma directa correspondência entre a composição e autonomia das massas patrimoniais dos cônjuges e a comunicabilidade da dívida.
7. - A circunstância de a lei, vigente ao tempo, impedir o Réu marido, porque não farmacêutico, da atribuição da propriedade da farmácia, não obsta à comunicabilidade da dívida, pois a razão de ser para a presunção legal do proveito comum assenta na ideia de que os proventos auferidos no exercício da actividade comercial são usados no sustento e satisfação de interesses comuns do cônjuges e da família e, por conseguinte, no benefício auferido pelo cônjuge não comerciante, justificando a corresponsabilização.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1.- A Autora – U… - instaurou ( 18/03/2008 ) na Comarca de Porto de Mós, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus – M… e marido J...

         Alegou, em resumo:

         A Autora é uma cooperativa do ramo de comercialização, cuja actividade principal é a aquisição por grosso de produtos farmacêuticos para venda e distribuição às farmácias e a Ré M… é farmacêutica e proprietária do estabelecimento comercial de farmácia, designado de “Farmácia M…”.

         Entre Outubro de 2002 e Maio de 2004, a Autora forneceu à 1ª Ré diversos produtos farmacêuticos, devidamente facturados através de “resumos de facturas semanais”, com vencimento no último dia do mês seguinte àquele em que foram emitidos, e “resumo de facturas de campanha”, com vencimento no prazo máximo de 30 dias, no valor global de € 388.642,72.

         Como a 1ª Ré pagou parcialmente, o valor em dívida ascende a € 378.416,21, sendo que a 1ª Ré também não pagou as notas de débito, no montante de € 5.850,10.

Para pagamento da dívida, a 1ª Ré entregou € 70.200,00, que tem um crédito a seu favor de € 1.214,73, montantes que foram imputados nos juros de mora vencidos.

A dívida importa em € 471.775,24, da qual € 384.266,31 corresponde a capital, e € 87.508,93 ao valor de juros moratórios vencidos até 17 de Março de 2008.

Porque os Réus são casados no regime de bens de comunhão de adquiridos, a dívida, contraída no exercício do comércio, é comunicável ao Réu marido.

Pediu a condenação dos Réus a pagarem solidariamente à Autora a quantia de € 471.775,24, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, actualmente de 11,2% ao ano, calculados sobre o capital de € 384.226,31, desde 17 de Março de 2008 e até efectivo pagamento.

Contestou a Ré (fls. 82 e segs.), defendendo-se, em síntese, dizendo que os resumos de facturas não substituem a necessidade da emissão e entrega da factura propriamente dita, o que a Autora não fez, estando a Ré legitimada à excepção de não cumprimento, face ao incumprimento da vendedora. Por outro lado, devido ao incumprimento da Autora, não pode haver lugar aos juros de mora peticionados, nem sequer desde a citação.

Concluiu pela improcedência da acção.

Contestou o Réu J… (fls. 107 e segs.) defendendo-se nos mesmo termos da Ré mulher, acrescentando que a dívida não lhe é comunicável, terminando com a improcedência da acção.

Replicou a Autora (fls. 151 e segs.) e reduziu o pedido, peticionando a condenação dos Réus a pagar-lhe solidariamente a quantia de € 438.313,63, acrescida de juros vincendo, contados à taxa aplicável aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, calculados sobre o capital de € 360.676,47, desde 17 de Março de 2008 e até integral pagamento.

No saneador (fls. 726 e segs.) admitiu-se a redução do pedido e afirmou-se a validade e regularidade da instância.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls. 903 e segs.) que decidiu julgar a acção procedente e condenar os Réus.

1.3. - Inconformados, os Réus recorreram de apelação.

1.3.1. - Recurso da Ré mulher (fls. 929 e segs.) – Conclusões:

...

1.3.2. - Recurso do Réu marido (fls. 974 e segs.) – Conclusões:

1.4. - Contra-alegou a Autora (fls. 1033 e segs.), no sentido da improcedência do recurso, em síntese:

II - FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. – O Objecto do recurso

O vencimento da obrigação e os juros de mora;

A excepção de não cumprimento;

A comunicabilidade da dívida ao Réu marido.

2.2 – Os factos provados:

         …

         2.3. - 1ª QUESTÃO

         O vencimento da obrigação e os juros de mora:

         A sentença recorrida, após qualificar as relações negociais entre as partes (Autora e 1ª Ré) como contratos de compra e venda, de natureza comercial (arts.874 CC e 463 nº1 C. Comercial), concluiu, perante a factualidade apurada (cf. r.q. 3º) que quanto ao pagamento do preço as partes convencionaram uma obrigação de prazo certo.

E como o preço não foi pago, a 1ª Ré (compradora) entrou em mora (art.805, nº2, a) CC), contabilizando os juros de mora vencidos até 17 de Março de 2008 (já com os descontos da liquidação parcial), no valor de € 78.137,16.

         Objectam os Réus/Apelantes dizendo que os juros de mora são devidos desde 24 de Junho de 2009, data da notificação da réplica, por ter sido aí que a Autora enviou as facturas, visto que o pagamento do preço estava dependente da remessa das facturas, sendo irrelevantes as facturas resumos e as guias facturas, ou subsidiariamente desde a citação.
Estamos perante contratos de compra e venda mercantil, celebrados entre comerciantes, os quais se presumem comerciais (arts.2º e 463 nº1 do Código Comercial). Com efeito, o vulgarmente contrato de fornecimento “ tem a natureza de contrato de compra e venda, pressupondo um prolongamento no tempo das mercadorias “( cf. CUNHA GONÇALVES, Da Compra e Venda, pág.537 ).
Assim, segundo o disposto no art. 879º do Código Civil, como efeitos essenciais do contrato de compra e venda, para além da transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entrega pelo vendedor e a obrigação do pagamento do preço por parte do comprador.

Provou-se que entre Outubro de 2002 e Maio de 2004, a Autora forneceu à Ré diversos os produtos farmacêuticos, para revenda na Farmácia (cf. r.q. 1º e 2º), tendo acordado que a obrigação de pagamento do preço constantes dos resumos de facturas semanais se vencia no final do mês seguinte e que a obrigação de pagamento dos preços inseridos nos resumos de facturas de campanha se vencia no prazo de 30 dias, em ambos os casos por referência às datas da sua emissão (cf. r.q. 3º).

Sabe-se também que a Autora enviou à Ré, que recebeu, as guias facturas integradas nas facturas resumos, cujas datas coincidem com as das entregas dos produtos (cf. r.q. 4º e 5º).
         Porque o pagamento do preço da mercadoria deveria ser feito no final do mês seguinte (RFS) e no prazo de trinta dias (RFC), tendo em contam em ambos os casos a data da emissão, a contar da data da entrega, importa saber se sob o ponto de vista estritamente jurídico as vendas são a prazo, “rectius”, venda a crédito ou com espera de preço, ou, antes, se se tratam de vendas a contado.
A distinção não é inócua, dada a diversidade do regime jurídico específico para cada uma das modalidades referidas.
Uma venda a contado pressupõe, em princípio, que o pagamento seja no acto da entrega da coisa vendida, ou naquele que seja havido como representativo dessa entrega, por exemplo, na venda entre pessoas em lugares diferentes, o momento da entrega da respectiva documentação.
A questão tem sido controvertida no plano jurisprudencial, designadamente quando os compradores devam satisfazer o preço dentro de certo prazo, por exemplo, no prazo de trinta dias a contar da emissão da factura, como na situação presente.
Já se entendeu serem as vendas nestes casos, a contado e não a crédito (por ex., Ac STJ de 2/11/54, BMJ 46, pág.474, Ac RL de 8/5/62, JR VIII, pág.533). Deve, porém, qualificar-se como vendas a prazo, e não a contado, pois “ A venda é a prazo quando se acha convencionado um prazo, seja para o vendedor fazer a tradição, seja para o comprador fazer o pagamento do preço, seja para um e outro executarem, simultaneamente, as recíprocas prestações. Quando o prazo é somente para o pagamento do preço e, o vendedor deve entregar logo a coisa vendida, temos uma venda a crédito ou com espera de preço (... )” ( CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, vol.  VIII, tomo II, pág.789; No mesmo sentido, por ex., Ac RC de 10/2/87, C.J ano XII, tomo I, pág.55 ).
Neste contexto e em bom rigor jurídico, inexistindo outros elementos factuais disponíveis sobre a vontade das partes, as vendas da Autora à Ré devem ser qualificadas como vendas a prazo, na modalidade de espera de preço, realizadas entre comerciantes, sem que acordassem em que o respectivo preço fosse representado por letras.
Sendo assim, impõe-se trazer à colação o Decreto nº19.490 de 21/3/1931, dada a obrigatoriedade do extracto de factura e, na sua ausência, o problema da " ineficácia por falta de forma dos contratos de compra e venda a prazo, pois que, segundo o art.3º, o extracto de factura, nos contratos de compra e venda mercantil a prazo, é a base indispensável de qualquer procedimento judicial destinado a tornar efectivos os direitos do vendedor.

São, no entanto, conhecidas as dúvidas de interpretação dos arts.1º e 3º do mencionado diploma originando divergências jurisprudenciais quanto às consequências da falta de emissão dos extractos.

Das várias soluções, opta-se por aquela que considera que a falta de extracto não obsta à exigência do preço em acção declarativa, podendo provar-se as obrigações sujeitas a extracto independentemente dele, traduzindo-se a ausência do título na impossibilidade de recurso imediato à acção executiva (art.46 c) CPC) (cf. BAPTISTA LOPES, Do Contrato de Compra e Venda, pág.416). De resto, há mesmo quem considere que a revogação do art.12 do DL 19490 pela lei preambular do Código de Processo Civil de 1939 arrastou a do art.3º do mesmo diploma (cf., por ex., Ac STJ de 14/12/94, BMJ 442, pág.211).
Perante a factualidade apurada, é inequívoco que a obrigação de pagar o preço configura, não uma obrigação pura, mas uma obrigação a prazo ou a termo, pelo que a mora não está dependente de interpelação do credor, mas do decurso do prazo de vencimento (art.805 nº2 a) CC).
Uma vez comprovado que o prazo de vencimento foi acordado pelas partes (cf. r.q. 3º), atento o princípio da liberdade contratual, é inócua a alegação de que não se pode utilizar, para efeitos do cálculo dos juros de mora, a data aposta nas facturas resumo, dada a sua irrelevância contabilística, porque isso é desvirtuar ou negar o próprio acordo, que não foi posto em causa.
De resto, sabe-se que a Ré recebeu as guias facturas, cujas datas coincidem com as datas dos produtos, nelas especificados.
2.4. – 2ª QUESTÃO
A excepção de não cumprimento:
Os Apelantes excepcionaram o não cumprimento em virtude da Autora ( vendedora ) não haver entregue, com a mercadoria, as facturas, cuja omissão consubstancia violação dos deveres de prestação, bem assim a mora do credor ( art.813 do CC ).
A sentença rejeitou a exceptio, por não demonstrar os factos alegados ( cf. respostas negativas aos quesitos 9º, 10º, 11º e 12º ).

O instituto da chamada “ exceptio non adimplenti contratus “(art.428 CC) tem o seu âmbito de aplicação nas obrigações sinalagmáticas, impondo que se tome em conta o princípio da boa fé e o apelo à ideia de abuso de direito (arts.762 nº2 e 334 do CC), sendo admissível nos casos de incumprimento temporário, cumprimento parcial ou defeituoso.

O que justifica a recusa do credor a cumprir, traduzida na exceptio, é precisamente a interdependência das obrigações, em que ambas estão ligadas entre si por um nexo de causalidade ou de correspectividade (cf. CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág.330).
O art.882 nº2 do CC dispõe que “ a obrigação de entrega abrange, salvo estipulação em contrário (…) os documentos relativos à coisa ou direito”, cuja justificação radica na “ ideia básica de colocar o comprador em condições de poder fruir plenamente o seu direito” ( P.LIMA/A.VARELA, Código Civil Anotado, II, 2ª ed., pág.157 ).

         Trata-se de uma obrigação acessória, sendo que o preceito refere-se aos documentos relativos à coisa ou direito (por ex., documentos de registo, licenças de circulação, certificados de origem, etc.) e não aos documentos relativos ao contrato que teve por objecto a coisa ou direito, e só a falta de documentos essenciais para o uso da coisa deve inserir-se no regime da falta de cumprimento da entrega da coisa, originando a falta de outros documentos o direito de indemnização pelos prejuízos causados ao comprador (cf. RAUL VENTURA, O Contrato de Compra e Venda no Código Civil, ROA, ano 43, pág.632 e segs.).

         Ora, admitindo-se que a exceptio possa funcionar também nas obrigações acessórias emergentes do contrato (cf., neste sentido, CALVÃO DA SILVA, loc. cit., pág.333), verifica-se que a emissão de facturas, para efeitos contabilísticos e fiscais, não consubstancia um documento essencial para o uso da coisa (produtos farmacêuticos) de molde a concluir-se pela violação do dever acessório por parte da Autora, a legitimar a excepção do não pagamento pela Ré (compradora).

         Por outro lado, não parece ser exacto, salvo o devido respeito, que a não emissão de facturas sobre cada uma das transacções impedisse a Ré de deduzir o IVA, porque é possível fazê-lo com base na facturação global (factura resumo) desde que por cada transacção seja emitida guia ou nota de remessa (cf. arts. 19, 22, 35, 119 e segs. do CIVA).

         2.5. - 3ª QUESTÃO

         A comunicabilidade da dívida:

         A terceira questão (colocada no recurso do Réu J…) consiste em saber se a dívida assumida pela Ré é comunicável ao Réu marido.

         Está provado que a Ré é proprietária do estabelecimento comercial denominado “ Farmácia M…”, contraiu casamento com o Réu em 26 de Setembro de 1976, sem convenção antenupcial, e que o estabelecimento de farmácia foi adquirido pela Ré na constância do casamento.
         Dispõe o art.1691 nº1 d) CC que são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens.

Com a alteração dada pelo DL nº496/77 de 25/11, a lei estabelece agora uma presunção legal de proveito comum (presunção ilidível) em favor do credor e como tal não tem de fazer a prova.

Por sua vez, o art.15 do Código Comercial preceitua que “as dívidas comerciais do cônjuge comerciante, presumem-se contraídas no exercício do seu comércio”, entendendo-se maioritariamente que só as dívidas substancialmente comerciais estão abrangidas na presunção.

Da articulação destas normas extrai-se que o credor do comerciante terá apenas que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.

Provando-se que o cônjuge comerciante assumiu a obrigação no exercício do comércio, ou presumindo-se (art.15 C. Comercial), terá o cônjuge do devedor, para afastar a comunicabilidade da dívida, o ónus de demonstrar que esta, embora comercial, não derivou do exercício do comércio do devedor, ilidindo a presunção do art.15 C. Comercial, ou que apesar de ter surgido no exercício do comércio não foi contraída em proveito comum do casal (cf., por ex.,  CRISTINA DIAS, Do Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, pág.433 e 434).

Os Réus não lograram demonstrar que a dívida não foi contraída em proveito comum do casal, conforme respostas negativas aos quesitos 14º, 15º e 16º, ou seja, como não ilidiram a presunção, impõe-se a comunicabilidade da dívida.

O Réu/apelante rejeita a comunicabilidade da dívida, com a alegação de que não podendo ser proprietário da farmácia, jamais poderá ser responsabilizado, pois o impedimento legal sobre a propriedade das farmácias obsta à comunicabilidade da dívida.

O regime jurídico da propriedade de farmácias, vigente ao tempo dos fornecimentos em causa, era regulado pelo Lei nº 2125 de 20/3/1965 que estabelecia o princípio da exclusividade proprietário/farmacêutico, em que a transferência da propriedade de farmácias só era legalmente admissível a favor de farmacêuticos ou sociedades em nome colectivo ou por quotas de farmacêuticos, cominando a lei a nulidade dos contratos sobre a transferência da propriedade para não farmacêuticos, e cuja conformação constitucional foi sendo reiterada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf., por ex., Ac nº 76/85 e Ac nº 187/01). Entretanto, foi instituído um novo regime jurídico com o DL nº 307/2007 de 31/8 (em vigor desde 31/10/2007) ao liberalizar a propriedade das farmácias, acabando com o princípio da exclusividade.

A circunstância de a lei, vigente ao tempo, impedir o Réu marido, porque não farmacêutico, da atribuição da propriedade da farmácia não afecta o regime da comunicabilidade das dívidas, tendo em conta o regime de bens entre os cônjuges.

Como é sabido, em regra as dívidas contraídas por um dos cônjuges são incomunicáveis, o que se harmoniza com os princípios gerais das obrigações. Contudo, o direito da família impõe modificações, entre as quais as previstas no art.1691 do CC que enumera cinco categorias de dívidas comunicáveis, quando, embora contraídas apenas por um dos cônjuges, beneficie ou possa beneficiar ambos.

É precisamente a situação do nº1 alínea d), em que a razão de ser para a presunção do proveito comum assenta na ideia de que os proventos auferidos no exercício da actividade comercial são usados no sustento e satisfação de interesses comuns do cônjuges e da família, e por conseguinte, no benefício auferido pelo cônjuge não comerciante.

Esta norma visa, em suma, a tutela do comércio, e como explicitam PEREIRA COELHO/GUILHERME OLIVEIRA, “ o alargamento do âmbito da garantia patrimonial, pela responsabilidade de ambos os cônjuges, corresponde a um sacrifício dos interesses do cônjuge comerciante, que preferia ficar alheio aos riscos da actividade desenvolvida pelo comerciante; este sacrifício da corresponsabilização é-lhe imposto em favor do credor e do comércio. Mas pensa-se que este sacrifício acaba por reverter no interesse dos cônjuges e da família na medida em que dá confiança aos credores, facilita a obtenção do crédito, favorece o exercício do comércio que constituirá uma parte relevante da sustentação financeira da família” (Curso de Direito da Família, 4ª ed, pág. 414).

Por conseguinte, face à ratio do art.1691 nº1 d) do CC, não há uma directa correspondência entre a composição e autonomia das massas patrimoniais dos cônjuges e a comunicabilidade da dívida. Além disso, os bens comuns não se confundem indistintamente na massa comum, porque a entrada dos bens dá-se com a aquisição individual e comunicação subsequente (cf., por ex., PEREIRA COELHO, loc. cit., pág.507).

Em suma, improcedem as apelações, confirmando-se a sentença recorrida.

2.6. – Síntese Conclusiva

1.- Comprovando-se que a Autora, no âmbito da sua actividade de distribuição, forneceu à Ré, proprietária de Farmácia, diversos produtos farmacêuticos, devidamente facturados através de “resumos de facturas semanais”, com vencimento no último dia do mês seguinte àquele em que foram emitidos, e “resumo de facturas de campanha”, com vencimento no prazo máximo de 30 dias, tal situação reconduz-se a contratos de compra e venda mercantil, celebrados entre comerciantes ( arts.2º, 463 nº1 C Comercial), pois chamando contrato de fornecimento assume a natureza de contrato de compra e venda, pressupondo um prolongamento no tempo das mercadorias.

2.- Quando o prazo é somente para o pagamento do preço e o vendedor deve entregar logo a coisa vendida, temos uma venda a crédito ou com espera de preço, sendo que a obrigação de pagar o preço configura, não uma obrigação pura, mas uma obrigação a prazo ou a termo, em que a mora não está dependente de interpelação do credor, mas do decurso do prazo de vencimento ( art.805 nº2 a) CC ).
3.- O art.882 nº2 do CC ( “ a obrigação de entrega abrange, salvo estipulação em contrário (…) os documentos relativos à coisa ou direito”) positiva uma obrigação acessória, reportando-se aos documentos relativos à coisa ou direito e não aos documentos relativos ao contrato que teve por objecto a coisa ou direito.
4.- Só a falta de documentos essenciais para o uso da coisa deve inserir-se no regime da falta de cumprimento da entrega da coisa, originando a falta de outros documentos o direito de indemnização pelos prejuízos causados ao comprador.

5. - Da conjugação dos arts.1691 nº1 d) CC e art.15 C. Comercial resulta que o credor do comerciante apenas terá que alegar e provar que o cônjuge que contraiu as dívidas é comerciante e faz do comércio profissão, operando depois a dupla presunção.

6.- Em face da ratio do art.1691 nº1 d) do CC, não há uma directa correspondência entre a composição e autonomia das massas patrimoniais dos cônjuges e a comunicabilidade da dívida.

7. - A circunstância de a lei, vigente ao tempo, impedir o Réu marido, porque não farmacêutico, da atribuição da propriedade da farmácia, não obsta à comunicabilidade da dívida, pois a razão de ser para a presunção legal do proveito comum assenta na ideia de que os proventos auferidos no exercício da actividade comercial são usados no sustento e satisfação de interesses comuns do cônjuges e da família, e por conseguinte, no benefício auferido pelo cônjuge não comerciante, justificando a corresponsabilização.


III – DECISÃO

         Pelo exposto, decidem:

1)

         Julgar improcedentes as apelações e confirmar a sentença recorrida.

2)

         Condenar os Apelantes nas custas.

         Coimbra, 11 de Setembro de 2012.


( Jorge Arcanjo )

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )