Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
416/22.1T8TND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO AMBIENTAL
CONTEÚDO DO AUTO DE NOTÍCIA
OMISSÃO DA DESCRIÇÃO DO ELEMENTO SUBJECTIVO DA CONTRAORDENAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 4.º, 41.º, 45.º, 46.º E 58.º DA LEI N.º 50/2006, DE 29 DE AGOSTO/LEI QUADRO DAS CONTRA-ORDENAÇÕES AMBIENTAIS/LQCA
ARTIGO 374.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – Tal como vem entendendo a jurisprudência portuguesa, o auto de notícia – como acontece em processo penal e como o próprio nome indica –, é apenas o início de um procedimento em que se dá conta de uma infração, não podendo ser entendido como uma “acusação”.

II – Resulta do artigo 46.º da LQCA que não compete à entidade que lavra o auto de notícia mencionar o elemento subjectivo.

III – A decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima, ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação, que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal para as decisões condenatórias, aplicável ex vi artigo 41.º do RGCOC.

Decisão Texto Integral:


Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. … por decisão da Inspecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, foi a arguida AA, condenada na coima no montante de 2.000,00€ (dois mil euros), pela prática da contra ordenação prevista artigos 3º, nº 1 e 18º, nº1, ambos do Decreto-Lei nº 46/2008 de 12 de março, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 73/2011 de 17 de junho.

2. A arguida impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa.

3. Não houve oposição a que o recurso fosse decidido por despacho.

4. Foi então proferido em 1-12-2022 o seguinte despacho:

“AA, veio interpor o presente recurso de impugnação judicial da decisão administrativa proferida pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território no âmbito do processo de contra ordenação n.º NUI/CO/....CGI, por intermédio da qual foi condenada no pagamento de uma coima no valor de 2.075,00€ (dois mil e setenta e cinco euros), pela prática da contra-ordenação prevista artigos 3º nº1 e 18º nº1 ambos do Decreto-Lei nº 46/2008 de 12 de março, na redação dada pelo Decreto-Lei nº73/2011 de 17 de junho.

Para tanto, alega, em síntese, a nulidade da mesma por violação do disposto no artigo 50.º DL n.º433/82, o qual prevê que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”, porquanto o auto de notícia que funda o presente processo de contraordenação: a) Não determina, nem sequer menciona a que título se pune a conduta da arguida (dolo ou negligência); b) Nem especifica a qualidade do agente que presenciou a alegada infração; c) Não obstante de não se inibir de alegar que se encontravam depositados 10 a 15 m3 de resíduos num terreno agrícola, da propriedade da arguida, não especifica que critérios nortearam o apuramento de tal valor, bem como, não indica o concreto local onde, alegadamente, se encontravam depositados esses resíduos.

Por outro lado, e acautelando diferente entendimento, refere que após a realização da obra transmitiu para o empreiteiro a responsabilidade da limpeza do terreno, porquanto não detém, nem tem a obrigação de deter os equipamentos necessários à sua eliminação de acordo com as normas de segurança e disposições ambientais.

Por fim, alega que o diploma legal pelo qual foi condenada foi revogado com a publicação do Decreto-Lei nº 102-D/2020 de 10 de dezembro.

*

 Notificado, o Ministério Público pronunciou-se quanto à arguida nulidade nos termos exarados na promoção de 23.10.2022, opondo-se à mesma.

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 O Tribunal é competente em razão de nacionalidade, matéria e hierarquia.

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 NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

Decorre da leitura do auto de notícia que deu origem ao processo de contraordenação que este não faz qualquer menção a que título se pune a conduta da arguida (dolo ou negligência), como não especifica como é que se apurou que os resíduos ocupavam um volume de 10 a 15 m3, como também não indica o concreto local onde se encontravam depositados esses resíduos.

Ora, tais omissões importam, na perspetiva deste Tribunal, a nulidade da decisão administrativa de aplicação de coima, proferida nos presentes autos de contra-ordenação, por violação do disposto nos artigos 50.º e 41.º do RGCO e 374.º, n.º 1, a) e 379.º, n.º 1, al. a) do Código do Processo Penal.

Vejamos com outro detalhe as razões de tal entendimento.

Dispõe o artigo 50.º do DL 433/82, de 27 de outubro, que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.

Os factos que constituem a prática punível de uma infração contraordenacional devem, assim, abranger a parte objetiva, material da conduta, mas também a parte subjetiva, da culpa, pois que só pode ser punido quem agir com dolo ou, nos casos especialmente previstos, por negligência (artigo 8.º, n.º 1 do DL 433/82, de 27 de outubro).

Porém, como se referiu, depois de lida a matéria de facto constante do auto de notícia por contra-ordenação não se antolha a presença de qualquer descrição factual suficiente para formular um juízo de subsunção à norma que prevê a infração no que respeita ao elemento subjetivo.

Na verdade, o auto é omisso – na matéria de facto – quanto ao referido elemento. 

Com efeito, não resulta do mesmo um único facto que permita concluir que a recorrente atuou com culpa ou sequer com negligência.

E pese embora não se ignore que o dever de fundamentação no âmbito dos processos contra-ordenacionais não seja tão exigente quanto o é nos processos de natureza criminal, a realidade é que isso não pode equivaler a uma ausência da indicação dos factos.

E não obstante também não se ignorar que, na decisão final, a autoridade administrativa aduza alguns argumentos para justificar a imputação da respetiva conduta à recorrente a título de negligência, certo é que não o fez antes de conferir à impugnante o direito previsto no já referido artigo 50.º de forma a que esta, querendo, pudesse, naquela concreta fase, exercer o respetivo direito de defesa, tal como se impunha.

Na verdade, não só não o fez naquela altura (isto é, do cumprimento do disposto no artigo 50.º), nem posteriormente, antes da prolação da decisão final, violando, assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, o direito da recorrente se poder pronunciar quanto a esses novos elementos.

Além disso, da leitura dos autos de contra-ordenação desconhece-se igualmente de que forma é que a autoridade administrativa chegou à conclusão de que a recorrente era efetivamente a titular do direito de propriedade do terreno onde se encontravam depositados os resíduos. 

Fê-lo com base em simples declarações feitas à GNR?

Ora, a prova do direito de propriedade sobre bens imóveis não se faz por simples declaração.

E o mesmo se refira relativamente ao direito de propriedade do imóvel de onde alegadamente resultaram os resíduos em causa.

Não consta dos autos qualquer prova de que a arguida era (ou seja) efetivamente a titular do direito de propriedade do imóvel e do terreno onde foram depositados os resíduos.

Com efeito, não consta dos autos que o órgão autuante ou tão-pouco o instrutor do processo tenha sequer diligenciado junto da Autoridade Tributária e/ou da Conservatória do Registo Predial territorialmente competente para apurar se a arguida era efetivamente proprietária dos dois prédios em causa. 

Na verdade, e fazendo um paralelo com as contra-ordenações estradais, as autoridades policiais antes de procederem a uma autuação exigem sempre a apresentação do Documento Único Automóvel, por constituir a única forma de identificar o proprietário da viatura.

Se assim o é para os veículos automóveis e outros bens sujeitos a registo, mal se compreende que não se tenha envidado igual ou semelhante procedimento quanto aos imóveis em causa nos presentes autos.

E muito embora não se ignore que nem sempre os respetivos direitos de propriedade sobre imóveis se encontrem registados ou, também, não raras vezes, registados, mas desatualizados, o certo é que o órgão instrutor de um processo com esta natureza deve, com o devido respeito, empreender todas as diligências possíveis nesse sentido, antes de concluir e afirmar perentoriamente que um imóvel pertence a uma determinada pessoa, pois que, como se disse, se numa simples contra-ordenação estradal as autoridades não se bastam com a simples declaração do condutor para dar como provado que o veículo é seu, exigindo sempre o DUC, não se compreende que para um imóvel as exigências não sejam sequer semelhantes.

Daí que, também neste caso, se considere que a autoridade administrativa deveria ter empreendido outras diligências de prova para tentar apurar se a arguida/recorrente era efetivamente a titular do direito de propriedade daqueles bens, o que, como se viu, não fez.

Isto no que concerne à prova do direito de propriedade do imóvel e do terreno onde foram encontrados os resíduos.

Pelo exposto, e porque tais lacunas não são passíveis de ser colmatadas nesta fase, considera-se a referida decisão nula e, nessa medida, sem qualquer efeito - nos termos do disposto nos artigos 379.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO.

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II

DECISÃO

Nestes termos, decide-se declarar nula a decisão recorrida proferida pela Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território no âmbito do processo de contra-ordenação n.ºNUI/CO/....CGI e, em consequência, absolve-se a recorrente AA.

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Sem custas.

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Notifique e dê conhecimento à autoridade administrativa.”

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5. Inconformado com a decisão recorreu o MP, formulando as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso respeita à declaração de nulidade da decisão administrativa/auto de notícia …

B. O auto de notícia por contra-ordenação preenche o formalismo legal exigido pelo artigo 243.º, n.º 1 do CPP aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.

C. Na notificação da impugnante para esta, querendo, apresentar defesa escrita, foi anexado, além do auto de notícia por contra-ordenação, o despacho proferido pela Inspecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, no qual é feita menção ao elemento subjectivo da contra-ordenação pela qual a aludida entidade condenou a impugnante.

D. Por sua vez, a decisão administrativa preenche o formalismo exigido pelo artigo 58.º do RGCO.

E. Na decisão administrativa constam factos que integram o elemento subjectivo da contra-ordenação pela qual a aludida entidade condenou a impugnante.

F. A decisão administrativa não padece da nulidade decretada e prevista nos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP.

G. A sentença ora em recurso, ao decretar tal nulidade, fez uma incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos.

H. Violou o disposto no artigo 58.º do RGCO e nos artigos 118.º, 119.º, 120.º, 122.º, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) todos do CPP.

I. Caso se entenda verificar-se o referido vício, à semelhança do que ocorre com as sentenças penais, por força do estabelecido no artigo 41.º do RGCO, deverá aplicar-se, com as devidas alterações, o preceituado no artigo 414.º, n.º 4 do CPP.

J. Compete ao Tribunal declarar a nulidade.

K. Cabe-lhe providenciar pela reparação do erro verificado e remeter o processo à autoridade administrativa, autora da decisão condenatória, para suprir esse vício.

L. O Tribunal a quo ao absolver a arguida sem remeter o processo à Inspecção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território violou o preceituado no artigo 122.º do CPP.

M. Deve, pois, ser revogada a sentença recorrida.

Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao recurso interposto, e - considerar que o auto de notícia por contra-ordenação e a decisão administrativa não padecem de qualquer vicio por observar os requisitos impostos pelo artigo 243.º do CPP aplicável ex vi do artigo 41.º, n.º 1 do RGCO e artigo 58.º do RGCO, respectivamente, 

Ou - reconhecendo que não cumpre tais formalidades, verificando-se a nulidade prevista no artigo 374.º e 379.º, n.º 1, al. a) ambos do CPP, determinar-se a remessa do processo à autoridade administrativa com vista a suprir tal falta, alterando-se a sentença em conformidade.

…”

*

6. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

*

7. A arguida respondeu ao recurso, concluindo:

“…

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o recurso  apresentado pelo Ministério Público, improceder, mantendo-se integralmente a decisão recorrida, pois só assim se fará a já acostumada JUSTIÇA!”

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8. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:

“Compulsados a decisão recorrida e os argumentos aduzidos no recurso apresentado pelo Ministério Público junto do Tribunal a quo, parece-nos que este deverá merecer provimento, por o auto de notícia não padecer de qualquer vício/nulidade, o mesmo acontecendo com a decisão da autoridade administrativa.

Verifica-se que as circunstâncias objetivas da infração e os montantes mínimo e máximo da coima (correspondendo o mínimo, ao aplicável à negligência, e o máximo, ao aplicável ao dolo), constam do auto de notícia, que não é nulo, não se encontrando, com esse fundamento, inquinado o demais processado de idêntico vício. A autoridade administrativa, como lhe cabia, procedeu à avaliação dos elementos nos autos, imputando à arguida prática da contraordenação, a título doloso, não constituindo a decisão administrativa, uma decisão surpresa, que desrespeite o exercício de defesa (previsto no n.º 5 do artigo 32.º da Lei Fundamental). 

…”.

*

9. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, a recorrida não apresentou resposta.

10. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência.

11. Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objecto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de eventuais questões de natureza oficiosa, importa decidir se a decisão administrativa é nula:

- porque o auto contraordenacional não fazia qualquer referência a que título se punia a conduta da arguida (dolo ou negligência). 

- porque omite o procedimento utilizado para o cálculo dos cerca de 10 a 15 m3 de resíduos encontrados;

- porque não consta dos autos a prova da titularidade do direito de propriedade do prédio onde foram realizadas as obras e do prédio onde foram depositados os resíduos.

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3. Apreciação

Nota prévia - o DL n.º 46/2008, de 12/03, foi revogado pelo Dec. Lei nº 102-D/2020 de 10.12, que continua a punir a conduta em causa como contraordenação (cfr. artºs 49º a 56º e 117º nº 1 bb) e nº 2 xx) – cfr., ainda, o artº 4º da LQCA. 5 “Constitui contra -ordenação ambiental grave: a) O incumprimento do dever de assegurar a gestão de RCD, a quem, nos termos do previsto no artigo 3.º, caiba essa responsabilidade, com exceção dos casos previstos no n.º 1”.

3.1. Da nulidade da decisão administrativa em consequência da não descrição no auto de notícia do elemento subjectivo da contra-ordenação.

Insurge-se o recorrente com a sentença proferida por não ter declarado a nulidade da decisão administrativa, por entender que o auto de notícia é nulo por omitir referência aos factos concretizadores do tipo subjectivo da infracção.

Vejamos.

É aplicável ao caso presente, no que aos requisitos do auto de notícia se refere, a Lei nº. 50/2006 de 29.8.

Com efeito, a infracção cometida insere-se no âmbito geral das contra-ordenações ambientais atenta a qualificação definida no art 1º do diploma referido: Constitui contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima.

Assim, conforme dispõe o art 45º:

“1 - A autoridade administrativa levanta o respetivo auto de notícia quando, no exercício das suas funções, verificar ou comprovar pessoalmente, ainda que por forma não imediata, qualquer infração às normas referidas no artigo 1.º, o qual serve de meio de prova das ocorrências verificadas.

2 - Relativamente às infrações de natureza contraordenacional cuja verificação a autoridade administrativa não tenha comprovado pessoalmente, a mesma deve elaborar uma participação instruída com os elementos de prova de que disponha.” - sublinhado nosso.

E conforme artigo 46º, daquele diploma legal, do auto de notícia devem constar, sempre que possível, os seguintes elementos:

“1 - O auto de notícia ou a participação referida no artigo anterior deve, sempre que possível, mencionar:

a) Os factos que constituem a infração;

b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que a infração foi cometida ou detetada;

c) No caso de a infração ser praticada por pessoa singular, os elementos de identificação do infrator e da sua residência;

d) No caso de a infração ser praticada por pessoa coletiva ou equiparada, os seus elementos de identificação, nomeadamente a sua sede, identificação e residência dos respetivos gerentes, administradores e diretores;

e) A identificação e residência das testemunhas;

f) Nome, categoria e assinatura do autuante ou participante.

2 - As entidades que não tenham competência para proceder à instrução do processo de contraordenação devem remeter o auto de notícia ou participação no prazo de 10 dias úteis à autoridade administrativa competente.

O que desde logo impõe a conclusão de que não compete à entidade que lavra o auto de notícia mencionar o elemento subjectivo, que não é observável.

Aliás, como nota o MP na resposta, o auto de notícia – como acontece em processo penal e como o próprio nome indica – é apenas o início de um procedimento em que se dá conta de uma infração, não podendo ser entendido como uma “acusação”, tal como vem entendendo a jurisprudência portuguesa.

Neste sentido cf Ac Rel Lisboa de 2017-12-06, Relatora Des Albertina Pereira, Processo: 746/17.4T8LSB.L1-4, em cujo sumário se declara:

“ I - No auto de notícia devem ser relatados os factos materiais sensorialmente perceptíveis que constituem a contraordenação, especificando-se o dia, a hora, o local, e as circunstâncias em que foram cometidos, a identificação do arguido, dos ofendidos e do autuante, bem como indicação das disposições legais que prevêem e punem a infracção, a coima e, sendo caso, a sanção acessória.

II – O agente autuante não pode o imputar ao arguido os factos a título de culpa, na modalidade de dolo ou na modalidade de negligência, sob pena de contrariar o art.º 32.°, n.º 2, da CRP.”

E como ali se realça, “não incumbe ao agente autuante qualificar a culpa do arguido ou fazer juízos sobre a respetiva intensidade, nem graduar a coima (...). Admitir o contrário, significaria permitir ao inspetor autuante o exercício de funções instrutórias, violando a proibição prevista quanto à inibição desse exercício funcional no processo (artigo 16.° da Lei n.º 107/2009)”.

Revertendo ao presente caso, como resulta do auto de notícia de fls 2 a 10, dele consta a identificação da arguida, do autuante, as circunstâncias de tempo, modo e lugar (incluindo até um ortofotomapa, com a indicação das respectivas coordenadas GPS) em que aquela praticou a infracção, as normas violadas e a coima aplicada.

Basta ler o que ali se consignou, sendo de assinalar que a coima - 2.000 euros - indicada no auto de notícia nos itens “Legislação Infringida”, “Legislação Punitiva” e “Legislação Punitiva revela claramente que a infracção imputada à arguida o foi sob a forma negligente, dado que a violação do disposto no artº 3º, nº 1, do Dec. Lei nº 46/2008 de 12.83 é punível nos termos do artº 22º, nº 3, a), da LQCA, correspondendo à prática por negligência, - tratando-se de pessoa singular, como era o caso - o valor de 2.000 € e o máximo de 20.000€. Esta punição está prevista apenas para as condutas negligentes, sendo as dolosas punidas com coima que varia entre 4.000 e 40.000 €.

Ou seja, já decorria do auto de notícia que a conduta imputada à arguida revestia a forma de culpa mais leve, a negligente.

Acresce, além do mais, que foi respeitado o direito de defesa da arguida porquanto foi cumprido o que dispõe o artigo 49.º, da Lei nº. 50/2006 de 29.8.

Direito de audiência e defesa do arguido

“1 - O auto de notícia, depois de confirmado pela autoridade administrativa e antes de ser tomada a decisão final, é notificado ao infrator conjuntamente com todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, para, no prazo de 15 dias úteis, se pronunciar por escrito sobre o que se lhe oferecer por conveniente.”

Compulsados os autos constata-se que a arguida foi notificada do auto de notícia com cópia do despacho de fls 12/v e 13, do qual consta expressamente “ A(s) contraordenação(ões) é (são) imputada(s), pelo menos, a título de negligência.”

Não ocorreu portando qualquer preterição do direito de defesa da arguida, porque lhe foram fornecidos pela autoridade administrativa todos os elementos relevantes para a condenação, nomeadamente os de índole subjectiva.

Como última nota cumpre alertar que o “Assento” do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República n.º 21/2003, Série I-A, de 25/01/2003, tendo-se pronunciado sobre o art. 50.º – direito de audição e defesa do arguido previamente à aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória – do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, não releva em sede de procedimento por contra-ordenações ambientais, cujo regime processual, contém norma própria sobre a matéria, concretamente os supra citados arts 45º, 46º e 49º, sobre os requisitos que deve observar o auto de notícia.

Em suma, não foi cometida a nulidade que arguiu.

Improcede, assim, por tudo quanto fica dito, a presente questão.

*

 3.2 Entende a arguida/recorrente que a decisão administrativa é nula porque omite o procedimento utilizado para o cálculo dos cerca de 10 a 15 m3 de resíduos encontrados e porque não consta dos autos a prova da titularidade do direito de propriedade do prédio onde foram realizadas as obras e do prédio onde foram depositados os resíduos.

Sem razão.

A decisão indica a fls 15, como prova documental o auto de notícia e respectivo suporte fotográfico e como prova testemunhal as testemunhas BB e CC.

O cálculo do volume dos resíduos efectuados pelo autuante no local certamente resultou da operação matemática de multiplicação das respectivas medidas de cumprimento, altura e largura. O cálculo do volume é sempre dado pela multiplicação da altura (h), vezes a largura (L), vezes o comprimento (C).  Considerando a forma dos resíduos foi indicado um resultado aproximado entre 10 a 15 m3 de RCD.

No que se refere à propriedade dos prédios consta do auto que a arguida assumiu ser proprietária do terreno e esclareceu que os resíduos eram provenientes da reconstrução da sua habitação e que havia dado ordem para que os resíduos fossem depositados naquele lugar.

O que tudo foi comprovado pelo autuante Cabo da GNR e pela testemunha DD, sendo que o auto de notícia levantado serve de meio de prova das ocorrências verificadas, conforme art 45º supra transcrito.

Concluindo, a decisão administrativa contém todos os factos que preenchem os elementos típicos, objectivos e subjectivos, da contra-ordenação imputada à arguida.  Os factos relatados na decisão administrativa sob o título “culpa” descrevem uma actuação negligente.

Efectivamente, na decisão administrativa estão expostos os factos provados que integram todos os elementos típicos da contra-ordenação pela qual foi condenada e sobressaem as razões de facto e de direito que sustentam a condenação, bem como a identificação da arguida, as provas obtidas, a indicação das normas segundo as quais se puniu e a coima aplicada, preenchendo o formalismo legal exigido pelo artigo 58.º do RGCO.

Acresce que a arguida/recorrente não contesta os factos vertidos no auto de notícia por contra-ordenação, assentes na decisão administrativa, nomeadamente, que era proprietária do imóvel e do terreno em questão, assim como também não impugna o facto registado de que não adoptou o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz, recaindo sobre ela um juízo de censura.

Por fim, como vem salientado no recurso, cumpria ao tribunal, se dúvidas tivesse, diligenciar oficiosamente nos termos do disposto no art 340º do CPP, subsidiariamente aplicável, quanto à propriedade do imóvel e do terreno em questão, ordenando a junção aos autos as respectivas certidões permanentes.

Em suma, a decisão da autoridade administrativa em causa nestes autos, é válida porque contém de forma clara a narração dos factos imputados à arguida que integram os elementos objectivos, sendo também inequívoco que descreve os factos, relativos à actuação negligente.

Ora, tal como se assinala no Ac desta Relação, de 9 de Janeiro de 2019, de que foi relator Des Heitor Vasques Osório, “Seguramente que não estamos na presença de uma técnica jurídica refinada, no que concerne à descrição factual do conceito de negligência, mas é entendimento pacífico que na fase administrativa do processo de contra-ordenação, caracterizada pela celeridade e simplicidade processual, o dever de fundamentação tem uma dimensão qualitativamente menos intensa em relação à sentença penal, comportando a decisão administrativa um modo sumário de fundamentar, desde que permita ao coimado perceber o que se decidiu e por que razão assim se decidiu.”

Cumpre notar que “as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa - no respeitante às contra-ordenações - hão-de ser menos profundas que as relativas aos processos criminais; não se podem transformar as decisões das autoridades administrativas em verdadeiras sentenças criminais” - Simas Santos e Lopes de Sousa, in “Contraordenações - Anotações ao Regime Geral”, 4ª ed., 2007, anotação ao artigo 58º, pág. 427).

Contudo, a consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão – sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material – tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não directa quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41.º do RGCOC sobre “direito subsidiário”, que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.

Deste modo, a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima (ou outra sanção prevista para uma contra-ordenação), e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374.º, n.º 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias.”

Ora, analisados os elementos dos autos, verifica-se que a decisão da autoridade administrativa descreve com rigor a conduta naturalística imputada à arguida, tipifica a concreta infracção ao direito de mera ordenação social praticada, descreve as sanções que lhes são abstractamente cominadas e explicita o respectivo fundamento normativo. Acresce que a decisão contém referência clara aos meios de prova e aos elementos em que determinou a medida concreta da sanção aplicada.

Dito isto, a decisão administrativa não padece de qualquer nulidade

Assim sendo, impõe-se concluir que a decisão administrativa recorrida contém os elementos exigidos na alínea b), do n.º 1, do artigo 58.º do RGCO e, a nosso ver, a imputação da contraordenação, pela qual foi condenado a arguida na fase administrativa, não se mostra inquinada de nulidade.

III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Conceder provimento ao presente recurso e, em consequência,

- Revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que conheça do objecto do recurso de impugnação judicial da decisão da Inspeção Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, interposto pela arguida AA.

Sem tributação.

Coimbra, 10 de Maio de 2023

Processado e revisto pela relatora

Isabel Valongo

Jorge França

Paulo Guerra