Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
146/06.1TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
SEGURANÇA SOCIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
REPRESENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE ÍLHAVO - 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 20º DO CIRE, 45º Nº1, 112º DA LEI Nº 32/2002, DE 20/12, ART.4º DO DL 316-A/2000, DE 7/12, DL 112/2004, DE 13/5, 3º Nº1 DO DL 260/99, DE 7/7, 55º Nº2 DO DL 57/2004, DE 19/3, ART.47º Nº2 DO DL 57/2005, DE 4/3, 42º Nº2 DO DL Nº 50-A/2006, DE 10/3, 23º Nº1, 24º, 26º Nº3, 265º Nº2 DO CPC
Sumário: 1. A legitimidade processual distingue-se da legitimidade material.

2. As contribuições das entidades empregadoras são créditos da Segurança Social, daí que, enquanto credora, esta tenha legitimidade processual para requerer a sua insolvência.

3. Quem representa a Segurança Social, concretamente nos processos especiais de recuperação de empresas e de falência ou de recuperação de empresas e de insolvência, é o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.

4. Coloca-se uma questão de irregularidade de representação, e não de ilegitimidade processual nem de ilegitimidade material, quando o Instituto de Segurança Social propõe em juízo a acção de insolvência. Tal vício de representação é de conhecimento e suprimento oficioso pelo tribunal.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

O Instituto da Segurança Social, I.P. veio requerer, ao abrigo do disposto no artº 20º als b) e g) II do CIRE, a declaração de insolvência de A..., com sede na Av. José Estêvão, em Gafanha da Nazaré - Ílhavo, com fundamento no incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de contribuições para a Segurança Social, cujo montante, alegadamente, ascende já a € 4 327 403,17.
A requerida deduziu oposição, na qual, além do mais, arguiu a ilegitimidade do requerente, afirmando não ser ele, mas sim o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P, quem tem legitimidade para requerer a declaração de insolvência, dado ser este e não o requerente o “titular dos créditos das contribuições (…) devidas à segurança social”.
Com a oposição, juntou o douto parecer de fls 150 e segs, corroborando a sua tese.
O requerente respondeu à excepção arguida, concluindo pela sua improcedência.
Foi designada a audiência de discussão julgamento, no início da qual a Sr.ª Juiz recorrida decidiu conhecer da invocada excepção de ilegitimidade, a qual julgou procedente, tendo, em consequência, absolvido a requerida da instância.
Inconformado, o requerente interpôs o presente agravo, cuja alegação conclui sustentando a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que o declare titular dos créditos de contribuições e quotizações da Segurança Social e, por conseguinte, portador de legitimidade processual activa.
Com a sua alegação juntou o brilhante parecer, de fls 307 e segs, onde é sustentado o seu ponto de vista.
Contra-alegou a agravada, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, tendo, já nesta Relação, apresentado novo e emérito parecer, de fls 403 e segs, cuja junção aos autos foi admitida por despacho de fls 446.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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Os Factos
Os factos pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso são os que emergem do precedente relatório e aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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O Direito
Como é sabido são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso (artºs 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do C.P.Civil), não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.
Vejamos, então, se o requerente é ou não parte ilegítima, ou se se verifica antes a falta de outro pressuposto processual que o tribunal, oficiosamente, deva sanar.
Na decisão recorrida, começando por afirmar que, em face do estatuído no artº 20º do CIRE (onde se prescreve que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor), haveria «então que verificar se o ISS, I.P é credor da requerida», concluiu a Sr.ª Juiz recorrida, após fundamentação cujo sentido não conseguimos compreender perfeitamente, que «é o IGFSS que deve estar em juízo e não o ISS», julgando, assim, procedente «a invocada excepção de ilegitimidade activa», e absolvendo, em consequência, a requerida da instância.
Se bem interpretamos decisão acabada de referir, credor da requerida seria o IGFSS (o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social) e não o requerente ISS (Instituto da Segurança Social), pelo que este careceria de legitimidade processual para intentar a presente acção.
Não podemos acompanhar tal decisão.
Desde logo, porque ela assenta numa confusão – que, aliás e salvo o devido respeito, perpassa por todos os articulados das partes e, bem assim, pelos doutos pereceres juntos aos autos – entre legitimidade processual e a legitimidade material.
A legitimidade processual (ultrapassada que se mostra, com a alteração introduzida pela reforma de 95/96 ao nº 3 do artº 26º do C.P.Civil, a controvérsia suscitada pelas divergentes opiniões dos Prof. Barbosa de Magalhães e Alberto dos Reis sobre a matéria) é hoje indiscutível que deve ser averiguada em face da relação material controvertida tal como é desenhada ou configurada pelo autor na petição inicial. E, assim, as partes serão legítimas quando são elas os sujeitos da relação material controvertida tal como é desenhada pelo autor na petição, e ilegítimas quando, tomada essa relação jurídica configurada pelo autor, não sejam sujeitos da mesma.
A legitimidade material, pelo contrário, diz respeito às condições subjectivas da titularidade do direito invocado. A falta de tais condições dá também lugar a uma ilegitimidade, mas trata-se de uma ilegitimidade de sentido diferente, porque se o tribunal conclui pela ilegitimidade material entra na apreciação do mérito da causa.
Por isso, enquanto a ilegitimidade processual leva à absolvição da instância, pelo contrário, a ilegitimidade material ou substancial conduz à absolvição do pedido. [ Vide Direito Processual Civil, do Prof. Castro Mendes, vol. II, pag 151 e segs.]
Não requerimento inicial, mais concretamente no seu no artº 20º, por exemplo, o requerente Instituto da Segurança Social afirma explicitamente ser credor da requerida pela importância de € 4 327 403,17. Daí que, perante o estatuído no artº 26º nº 3 do C.P.Civil, ele tenha legitimidade processual para requerer a falência, com o invocado fundamento das als. b) e g) do nº 1 do artº 20º do CIRE ( Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
A não ser aquele Instituto o efectivo ou real credor, como parece ter concluído a decisão recorrida, então estaríamos perante uma ilegitimidade de sentido diferente, uma ilegitimidade material, que deveria conduzir, não à absolvição da instância ( como foi decidido), mas antes à absolvição do pedido.
Cremos, porém, em face dos elementos já constantes dos autos, que a questão não é de ilegitimidade, seja ela de natureza processual ou natureza material.
A nosso ver, a questão que se coloca, desde já, é antes de irregularidade de representação, como passamos a explicar.
Nos termos do nº 1 do artº 45º da Lei nº 32/2002, de 20 de Dezembro ( Lei de Bases da Segurança Social), «os beneficiários e, no caso de exercício de actividade profissional subordinada, as respectivas entidades empregadoras, são obrigadas a contribuir para os regimes de segurança social». Sendo que, tanto as quotizações dos trabalhadores, como as contribuições das entidades empregadoras, constituem receitas do sistema da segurança social (artº 112º da mesma Lei de Bases).
Quer dizer, as contribuições das entidades empregadoras são créditos da Segurança Social.
Assim, e salvo o devido respeito, pensamos que nem a requerente tem razão quando se afirma credora da requerida nem esta quando diz que, a existirem os créditos alegados, o seu titular seria o IGFSS. É que as contribuições devidas pelos empregadores não constituem receitas próprias e privativas de nenhum destes. Ao Instituto requerente, cabe apenas fazer “a gestão...das contribuições do sistema de segurança social, sem prejuízo das competências atribuídas a outras instituições de segurança social” (como resulta do nº 1 do artº 4º do Dec. Lei nº 316-A/2000de 7/12, com a alteração introduzida pelo Dec. Lei nº 112/2004,de 13/5) semelhantemente ao que sucede, embora de forma mais ampla, com o IGFSS, organismo este ao qual o artº 3º nº 1 do Dec. Lei nº 260/99, de 07/7, na redacção dada por aquele mesmo Dec. Lei nº 112/2004, comete “a gestão financeira dos recursos económicos consignados no orçamente da segurança social”. Recursos estes que não se resumem somente às receitas de quotizações dos trabalhadores e de contribuições das entidades patronais ( vide artº 112º da Lei de Bases da Segurança Social).
Portanto, contrariamente ao que sustentam requerente e requerida, com apoio nos doutos pareceres juntos aos autos, credora da requerida é sim, salvo o devido respeito, a Segurança Social.
Ora, de acordo com as sucessivas leis de execução orçamental, designadamente dos anos de 2004, 2005 e 2006, quem representa a Segurança Social concretamente nos processos especiais de recuperação de empresa e de falência ou de recuperação de empresas e de insolvência, é o IGFSS (vide artºs 55º nº2 do Dec. Lei nº 57/2004, de 19/03, artº 47º nº2 do Dec. lei nº 57/2005, de 04/3 e artº 42º nº 2 do Dec. Lei nº 50-A/2006, de 10/3).
Embora no caso sub judice o requerente ISS não se apresente a propor a acção explicitamente em nome da Segurança Social e afirme até expressamente no artº 20º do seu articulado inicial, como já vimos, ser ele o credor da requerida, a verdade é que se depreende logo dos artigos imediatos, onde ele próprio afinal o reconhece, que o montante alegadamente em dívida pela requerida respeita a «contribuições para a segurança social, incidentes sobre salários pagos aos trabalhadores ao seu serviço».
Quer dizer, sendo representante da Segurança Social o IGFSS, quem deveria apresentar-se a propor em juízo a presente acção, em nome da Segurança Social, deveria ter sido ele e não o ISS.
Verifica-se assim, com acima dissemos, um vício de representação enquadrável nos artºs 23º nº 1 e 24º do C.P.Civil e de conhecimento e suprimento oficioso pelo tribunal, como decorre do citado artº 24º e, bem assim, do estatuído no artº265º nº 2 do mesmo Código.
Impõe-se, por isso, a revogação do despacho recorrido, a fim de que possa ser substituído por outro a ordenar a notificação do IGFSS para ratificar, querendo, o processado.

Decisão
Nos termos expostos, acordam em revogar, oficiosamente, o despacho recorrido e ordenar a sua substituição por outro que mande notificar o IGFSS, enquanto representante da Segurança Social, nos termos e para efeitos do disposto no nº 2 do artº 24º do C.P.Civil, observando-se, de seguida, os demais termos legais.
Custas pelo vencido a final.