Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
64/13.7T6AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DA PROVA
FALTA
RECURSO
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE AVEIRO.
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 155º, NºS 1, 3 E 4 DO NCPC.
Sumário: I – Conjugando os nºs 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º, resulta dever ser disponibilizada às partes (o que pressupõe um acto expresso da Secretaria com esse alcance) a gravação, “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização (estamos a prefigurar a hipótese que aqui tem interesse prático), deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º (mesmo que esse acto corresponda ao assumir da falta de gravação) e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º: “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinha-se, e é sintomático, que a norma tanto se refere à deficiência como à falta de gravação).

II - Quando assim não ocorra, ou seja, quando a parte se limite, como aqui sucedeu, a recorrer no prazo de trinta dias depois de notificada da Sentença (para mais nada dizendo sobre a não gravação da audiência no Tribunal a quo), a questão da omissão ou da deficiência da gravação fica precludida como questão operante no processo, por esgotamento do prazo em que deveria ter sido suscitada.

III - Em qualquer caso, no actual regime (no Novo CPC) não é na instância de recurso que essa questão deve (pode) ser suscitada (veja-se a referência ao nº 1 do artigo 195º no trecho intermédio do artigo 630º, nº 2 do CPC), e menos ainda o pode ser em reacção ao pronunciamento da instância de recurso.

Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra


            1. Notificado do Acórdão de fls. 210/223, que julgou improcedente a presente apelação, veio o Requerido aqui Apelante P… invocar a nulidade desse Acórdão nos termos do artigo 666º, nº 1 do CPC (é o chamado Novo CPC), indicando essa nulidade – embora se esteja a referir a uma nulidade do Acórdão desta Relação – como consubstanciada “[…] em não ter sido realizada pelo Tribunal a quo a gravação da audiência quando o deveria ter sido!”.

            2. Cumpre apreciar tal arguição.

Como ponto de partida importa sublinhar, enquanto incidências relevantes para apreciação da invocada nulidade, as seguintes: (a) que a circunstância (só agora) invocada pelo Apelante como correspondente à nulidade – a não gravação da audiência de julgamento – ocorreu, com efeito, na tramitação em primeira instância; (b) que isso não foi invocado pelo Apelante no recurso[1], tal como não havia sido avulsamente invocada pelo Apelante junto da primeira instância, como decorre do nº 4 do artigo 155º do CPC; (c) e que, enfim, essa mesma incidência foi expressamente apreciada no Acórdão deste Tribunal agora arguido de nulo[2].

Note-se que este último aspecto – a expressa apreciação no Acórdão da dita omissão de gravação da audiência em primeira instância – é, aliás, significativo da falta de contexto da questão suscitada pelo Apelante, como arguição de nulidade desse Acórdão. Com efeito, projectando o artigo 666º, nº 1 do CPC no pronunciamento da instância de recurso os desvalores indicados nos artigos 613º a 617º para os pronunciamentos em primeira instância, a invocada nulidade deste Acórdão só poderia corresponder, no universo das causas de nulidade elencadas no artigo 615º do CPC – enquanto vício da estrutura vinculada desse Acórdão –, à alínea d) do respectivo nº 1, consubstanciando-se numa omissão de pronúncia sobre questão que esta Relação devesse apreciar, por ter sido suscitada (e já vimos que o Apelante aqui, nesta instância, não a suscitou) ou por ser questão de conhecimento oficioso. Será – teria sido –, pois, na perspectiva em que o Apelante coloca a questão, uma omissão de pronúncia quanto à falta de gravação da audiência em primeira instância o desvalor agora apontado ao Acórdão desta Relação que julgou o recurso.

Ora, sendo certo ter esta Relação apreciado expressamente essa questão – e os subscritores desta decisão reivindicam esta asserção como facto objectivamente evidenciado pelo processo e não como uma mera opinião –, fica essa suposta nulidade (a nulidade do Acórdão desta Relação, é isso o que invoca o Apelante) sem base factual de sustentação.

Fica também – poderíamos até dizer que fica, isso sim – a apreciação por esta Relação dessa questão como elemento estruturante do julgamento do recurso que lhe foi presente. Tal apreciação, mesmo correspondendo a algum erro de direito, mesmo que tributária de uma incorrecta subsunção e interpretação da lei, mesmo traduzindo algum solecismo jurídico, não gera a nulidade do Acórdão, servirá de fundamento a um recurso, caso este seja processualmente admissível. Com efeito, importa sempre distinguir as nulidades do pronunciamento judicial (e este corresponde aqui a um Acórdão) da crítica ao entendimento decisório que nele se expressa. No caso das nulidades, a consequência estabelecida é, passe a redundância, a nulidade da própria decisão, traduzida na sua supressão do processo, com o retorno do mesmo ao ponto em que se encontrava previamente à prolação da decisão nula. Diversamente, no caso da crítica ao entendimento decisório expresso numa sentença ou num acórdão, o que está em causa é o valor jurídico dessa decisão, enquanto acto vinculado à realidade probatória do processo e ao Direito aplicável, só gerando este desvalor a “revogabilidade mediante recurso”[3], quando o recurso for admissível.

Como dissemos, esta Relação tomou posição quanto à questão da falta de gravação do julgamento – decidiu, pois, essa questão –, não deixando, por isso mesmo, de a apreciar. Não existe, assim, qualquer nulidade do Acórdão que seja referenciável nesse pronunciamento decisório, por via da projecção do artigo 666º, nº 1 do CPC, à questão agora suscitada pelo Apelante.

2.1. Por razões de total clareza da questão da omissão, ocorrida na primeira instância, da gravação do julgamento, não deixaremos de explicitar, complementarmente ao que se referiu no Acórdão no trecho de fls. 220/221, que a questão dessa omissão ficou processualmente arrumada antes da subida dos autos a esta Relação, além de que o Apelante a tornou inoperante quando a descartou totalmente no recurso. Com efeito, conjugando os nºs 3 e 4 do artigo 155º do Novo CPC, pressuposta a “obrigação de gravar” decorrente do nº 1 do mesmo artigo 155º[4], resulta dever ser disponibilizada às partes (o que pressupõe um acto expresso da Secretaria com esse alcance) a gravação, “[…] no prazo de dois dias a contar do respectivo acto” (nº3), sendo que, omitido que seja esse acto de disponibilização (estamos a prefigurar a hipótese que aqui tem interesse prático), deve a parte interessada em recorrer assinalar formalmente essa incidência ao Tribunal de primeira instância (rectius, invocar a nulidade dessa não disponibilização), como forma de desencadear o acto pressuposto nesse nº 3 do artigo 155º (mesmo que esse acto corresponda ao assumir da falta de gravação) e, por essa via, criar a parte interessada o elemento processual que permite desencadear a invocação prevista no nº 4 do mesmo artigo 155º: “[a] falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (sublinha-se, e é sintomático, que a norma tanto se refere à deficiência como à falta de gravação).

Quando assim não ocorra, ou seja, quando a parte se limite, como aqui sucedeu, a recorrer no prazo de trinta dias depois de notificada da Sentença[5] (para mais nada dizendo sobre a não gravação da audiência no Tribunal a quo), a questão da omissão ou da deficiência da gravação fica precludida como questão operante no processo, por esgotamento do prazo em que deveria ter sido suscitada. Em qualquer caso, no actual regime (no Novo CPC) não é na instância de recurso que essa questão deve (pode) ser suscitada (veja-se a referência ao nº 1 do artigo 195º no trecho intermédio do artigo 630º, nº 2 do CPC[6]), e menos ainda o pode ser em reacção ao pronunciamento da instância de recurso.

É este, em síntese, o regime actual quanto à falta ou deficiência da gravação prevista no nº 1 do artigo 155º do CPC.

Foi isto o que sucedeu com o Apelante, sendo totalmente extemporânea – e, primordialmente até, indevida – a invocação da omissão da gravação do julgamento em primeira instância, configurando-a como nulidade do Acórdão que decidiu o recurso.

2.1.1. Como nota final, não deixaremos de sublinhar a completa inadequação ao caso concreto da referência do Apelante, no requerimento a suscitar a nulidade que ora se aprecia, à Decisão sumária proferida pelo aqui 1º Adjunto (também subscritor do Acórdão reclamado) na apelação nº …, não correspondendo à realidade que tal Decisão sumária – como diz o Apelante – “[assente] como uma luva” nos presentes autos: é óbvio que não assenta e que não serve aqui de precedente, porque envolve um enquadramento legal muito diverso do ora aplicável e, por isso mesmo, não legitima qualquer argumento de identidade de razão. Com efeito, esquece o Apelante que essa Decisão, que data de 06/03/2012, é muito anterior ao enquadramento legal aqui convocado – estava em causa nessa Decisão sumária[7] a conjugação dos artigos 522º-B e 201º, nº 1 do CPC anterior, com o artigo 9.º do Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro; diversamente, está em causa aqui, como se consignou à entrada deste Acórdão na nota 2 supra[8], o regime constante do CPC actual (Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), que entrou em vigor a 01/09/2013 e que já se aplicava aquando da audiência não gravada em primeira instância (v. o trecho final, a parte sublinhada, da nota 2, supra), regime este que está contido no artigo 155º, nºs 1, 3 e 4 do CPC e que corresponde a um regime bem diverso do pretérito.

Vale tudo o que se disse, enfim, pelo desatendimento da invocada nulidade do Acórdão desta Relação que decidiu o recurso.

            3. Assim, desatende-se, por se considerar não verificada, a invocada nulidade.

            Custas do incidente a cargo do Apelante.

            Tribunal da Relação de Coimbra, 10/07/2014


(J. A. Teles Pereira - Relator)

(Manuel Capelo)

(Jacinto Meca)



[1] E parece-nos evidente que o Apelante tinha perfeito conhecimento dessa incidência, como se intui do teor da respectiva motivação do recurso (além de que esteve presente no acto de julgamento em que essa gravação foi omitida).
[2] Disse-se expressamente no Acórdão, no relatório, no ponto 1.2. a fls. 212, e analisou-se circunstanciadamente essa incidência na respectiva fundamentação no ponto 2.2.1., no trecho de fls. 219/220 e nota 7.
Aqui se transcreve o trecho do Acórdão em que essa questão foi abordada:
“[…]
[N]a aferição das necessidades concretas das menores e das condições pessoais da Requerente/mãe, enquanto factores relevantes da determinação da medida dos alimentos, sempre haverá que ter presente, como resulta da fundamentação transcrita na nota 4 deste Acórdão, que a avaliação dessas necessidades pelo Tribunal conjugou aqui elementos recolhidos na prova documental e na prova testemunhal, sendo que esta última, cuja produção não foi objecto de gravação (v. a acta de fls. 152/153) é inacessível ao controlo desta Relação (v. artigo 662º, nº 1 do CPC), circunstância que inviabiliza a alteração por este Tribunal das asserções de facto para as quais essa prova foi relevante.
É certo que a falta de gravação configurou aqui, em nosso entender, a omissão da prática de um acto procedimentalmente devido (um acto imposto pelo artigo 155º, nº 1 do Novo CPC, disposição esta que há que entender ter substituído, por regulação divergente da mesma matéria, o artigo 158º, nº 1, alínea c) da OTM), acto omitido este com aptidão de influir no exame da causa (artigo 195º, nº 1 do CPC), mas cuja ocorrência o Apelante, necessariamente conhecedor da verificação dessa incidência desvaliosa (que teve lugar, aliás, na sua presença, v. fls. 152), não invocou na motivação do recurso, correspondendo a entrega de tal peça processual à sua primeira intervenção no processo subsequentemente ao cometimento do desvio do rito processual devido (v. os artigos 155º, nº 4 e 199º, nº 1 do CPC). Vale isto por dizer que não existe uma base válida que possibilite a alteração, no âmbito do presente recurso, do elenco dos factos provados, quanto às asserções respeitantes à aferição das necessidades concretas (especiais) das duas menores relativas à prestação de alimentos e quanto às condições económicas da mãe destas. Aliás, para sermos exactos, nada na prova controlável por esta Relação sugere minimamente a necessidade dessa alteração dos factos, sendo que, pelo contrário, tudo sugere ter ocorrido uma fixação correcta desses factos.
[…]”.
Na nota 7 ao texto acabado de transcrever disse-se no mesmo Acórdão o seguinte, a respeito da substituição pelo artigo 155º do Novo CPC do regime constante do artigo158º, nº 1, alínea c) da OTM:
“[…]
[7]Admitindo ser discutível esta asserção, quer-nos parecer ter aqui aplicação a conjugação dos nºs 2 e 3 do artigo 7º do Código Civil, no sentido em que o artigo 155º, nº 1 do CPC apresenta uma forte vocação de generalidade que não nos parece ceder perante razões específicas – lei especial – da adjectivação tutelar prevista na OTM, nos termos em que a gravação se coloca presentemente em relação à redução a escrito de depoimentos excluída pelo artigo 158º, nº 1, alínea c) da OTM. Com efeito, se a redução a escrito de declarações e depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento realizada nestes processos (a alínea c) do nº 1 do preceito vem da redacção originária do Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro) bulia com o carácter expedito e desformalizado pretendido imprimir a este tipo de procedimentos, no paradigma processual de 1978, a simples gravação é absolutamente compatível com esse carácter e potencia um efectivo direito ao recurso, no quadro processual actual.
[…]”.
[3] “A revogabilidade mediante recurso é o valor jurídico da sentença (ou decisão) injusta ou ilegal, que haja decidido contra direito […]” (João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III Vol., ed. policopiada da A.A.F.D.L., Lisboa, 1978/1979, p. 311).
[4] Que na nota 7 do Acórdão (que transcrevemos neste texto na nota 4 supra) referimos existir neste procedimento especial.
[5] E a Sentença aqui até foi proferida mais de dois dias depois da audiência não gravada (cfr. as datas de fls. 152 e de fls. 166), sendo que foi (a Sentença) notificada ao apelante em 13/11/2013, interpondo este recurso em 13/12/2013 (o histórico do processo electrónico comprova estas datas).
[6] O atendimento ou desatendimento das nulidades gerais previstas no artigo 195º, nº 1 do CPC, mesmo as que influam no exame ou na decisão da causa, não é – parece ser o que resulta do nº 2 do artigo 630º do CPC – recorrível (v. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, cit., p. 59).
[7] Com cujo teor o ora relator e o 2º Adjunto concordam inteiramente, ambos tendo subscrito, por mais de uma vez, decisões no mesmo sentido.
[8] Como também se referiu na nota 2 do Acórdão anterior (fls. 210) e como está pressuposto na intervenção processual do Apelante em toda a instância de recurso.