Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
120/06.8JAGRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: AUDIÊNCIA
GRAVAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 11/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 328º, Nº 6, 363º DO CPP
Sumário: 1. O termo “adiamento”do nº 6 do art.º 328ºdo CPP é utilizado em sentido amplo, compreendendo o adiamento em sentido técnico-jurídico e a interrupção.
2. Tendo-se verificado que os depoimentos de algumas testemunhas não ficaram registados ou continham deficiências de gravação e tendo sido ultrapassado o limite temporal o nº 6 do artº 328º do CPP toda a anterior prova perde a eficácia.
3. É atempada a invocação da nulidade no recurso sobre a matéria de facto.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 120/06.8JAGRD do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, após a realização da audiência de julgamento foi proferido acórdão que:
- Absolveu o arguido B... da prática de quatro crimes de incêndio, na forma consumada, que lhe eram imputados; ------- e,
- Condenou o mesmo arguido (por força da alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4Set., por aplicação do art.2º, n.º 4 do CP), como autor material de:
a) três crimes de incêndio, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 274º, n.ºs 1 e 2, al. a), 22º e 23º do Código Penal, na pena, cada um, de 1 ano e 6 meses de prisão;
b) um crime de incêndio, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 274º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, sujeito a regime de prova a delinear pelo IRS, que deverá enviar aos autos, ao longo do período da suspensão, relatórios semestrais relativos ao comportamento do arguido.
***
O Ministério Público e o arguido não se conformaram com a decisão proferida em 1ª instância, e dela interpuseram recurso, tendo extraídos das respectivas motivações as seguintes conclusões:
A- O Ministério Público:
1- A pena suspensa é notoriamente insuficiente para os fins a acautelar, de preven­ção especial e ressocialização do arguido.
2- Decorre da decisão terem as condutas sido marcadas pela intensidade do dolo, o elevado grau de ilicitude e a gravidade das consequências.
3- Não resultou do julgamento o arrependimento efectivo, traduzido na exteriori­zação de sentimentos e actos que denotem vontade do arguido em corrigir a personalidade.
4- Ou que o arguido tenha revelado preparação para manter uma conduta lícita.
5- Nem igualmente que o arguido tenha interiorizado o sentido de reprovação do mal praticado;
6- Ante os pressupostos enunciados na decisão, não se comprova a existência de factos que permitissem um juízo de prognose favorável à suspensão da execu­ção da pena.
7- É premente, no caso concreto, a aplicação de uma pena de prisão efectiva.
8- Assim se irá de encontro aos pressupostos enunciados na decisão, de intensida­de do dolo, elevado grau de ilicitude, gravidade das consequências e a dita falta de preparação para manter uma conduta lícita.
9- Mostram-se violados os artigos 50°, 70° e 71 ° do Código Penal.
*
B- O arguido:
A) Em 29/01/2009 foi ordenada a repetição do depoimento das testemunhas, em virtude de os depoimentos anteriormente prestados não terem sido gravados por deficiências do sistema. Nesse mesmo dia, foi retomada a audiência de julgamento, tendo sido ouvidas apenas as testemunhas AM…, FS…, JL…, JD…, JL… e JM…. Os depoimentos das demais testemunhas foram produzidos há muito mais de 30 dias, isto é, em 22/11/2007, conforme consta da acta de fls. ... dos autos.
B) Nos termos do disposto no n.º 6, art. 328.° do CPP, o adiamento da audiência não pode exceder 30 dias, e, não sendo possível retomar a audiência nesse prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada.
C) De acordo com a jurisprudência fixada, por Acórdão do STJ, de 29/10/2008 (Relator: Santos Cabral, disponível em www.dgsi.pt) "o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a trinta dias implica a perda de eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o art. 363º do mesmo diploma."
D) Tendo sido repetidos apenas alguns dos depoimentos, e atendendo ao longo período de tempo decorrido desde a produção da demais prova, incluindo a testemunhal (mais de um ano!), torna-se evidente que a mesma perdeu a sua eficácia, impondo-se a repetição da produção da prova, sob pena de nulidade, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 328.°, n.º 6: 120.º e 363.°, todos do CPP, o que expressamente se invoca.
E) Mesmo que assim se não entendesse, o que por mera hipótese académica se admite, sempre a prova testemunhal assim produzida teria perdido a sua eficácia, não podendo ser utilizada nem valorada na decisão aqui posta em crise. Ora, tal perda de eficácia fere a decisão aqui posta em crise de inconstitucionalidade, na exacta medida em que impossibilita o exercício do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado no art. 32.° da CRP. Algumas das testemunhas cujo depoimento perdeu eficácia, são precisamente as testemunhas apresentadas pela defesa pelo que, a facto de não ser ordenada a repetição dos depoimentos impossibilitaria o exercício do direito de defesa, ferindo a douta decisão aqui posta em crise de inconstitucionalidade.
F) Entendendo-se, porém, que a não repetição dos depoimentos não é geradora de nulidade nem inconstitucionalidade, sempre os mesmos depoimentos terão perdido a sua eficácia, pelo que não podem os mesmos ser valorados nem tidos em consideração na decisão, sob pena de nulidade, por violação do disposto no art. 355.°. CPP.
G) Padece ainda a douta decisão recorrida, salvo o devido respeito, de erro na apreciação e valoração da prova, na exacta medida em que não foi produzida em audiência de discussão e julgamento prova suficiente que permita imputar a autoria dos factos em discussão nos presentes autos ao arguido. Mas vejamos melhor!
H) Quanto aos factos ocorridos a 4 de Julho de 2006, no local conhecido por "Zebras" ou "moitas", nenhuma prova foi produzida, em sede de audiência de discussão e julgamento, que permitisse dar como provados os factos 2, 3, 4, 5 e 6. Aliás, testemunhas cujo depoimento se mantém válido, depoimentos estes que se deixaram transcritos em 12.° e 13º, referem expressamente nada terem presenciado nem tido conhecimento acerca dos factos do mencionado dia e muito menos relativamente ao seu autor.
Impõe-se, portanto, após uma justa e adequada análise e valoração da prova produzida, incluindo os depoimentos das testemunhas que se deixam transcritos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nesta parte, dar como não provados os factos 2. 3. 4, 5 e 6 absolvendo-se o arguido da prática de qualquer ilícito, por referência ao dia 4 de Julho de 2006.
I) No que concerne aos factos ocorridos a 16 de Agosto de 2006, também não foi efectuada uma correcta apreciação da prova produzida.
Do teor dos depoimentos das testemunhas, transcritos em 16.°, 17.°, 18.°, 19.°, 20.°, 21.°, 22.°, 23.° e 24.º resulta inequívoco que o arguido não se encontrava no local em que ocorreu o incêndio, no dia e hora em que o mesmo teve lugar. O arguido não é visto no local por nenhuma das testemunhas, não existindo qualquer elemento que permita imputar-lhe a autoria do ilícito. Uma correcta e adequada valoração dos depoimentos das testemunhas cuja validade se mantém, os quais se encontram transcritos de 16.° a 24.°, impõe que sejam dados como não provados os factos 7. 8 e 9, devendo, em consequência, ser o arguido absolvido do ilícito que lhe é imputado, por referência ao dia 16 de Agosto de 2006.
J) Relativamente aos factos do dia 19 de Agosto de 2006, foi produzida prova de que a conduta do arguido era inapta a consubstanciar o tipo de ilícito pelo qual vem condenado. As testemunhas presenciais, LD…, cujo depoimento está transcrito em 28.°, e LS…, cujo depoimento se transcreveu em 29.°, são unânimes em afirmar que "nada ardeu", tendo o "toalhete" sido apagado com a mão, sem ser sequer necessário o recurso a água.
Aliás, a testemunha LA… esclarece que os combustíveis estavam muito húmidos, pois havia ocorrido precipitação (depoimento transcrito em 30.°). E isto, para além de nenhuma testemunha ter conseguido, coerentemente, descrever a suposta forma de actuação do arguido. Ora, para além de se suscitarem fortes dúvidas acerca da efectiva presença do arguido nas circunstâncias de tempo e lugar em questão, é demasiado evidente que tal acto jamais seria susceptível e apto a provocar fogo e, muito menos, incêndio, pelo que se impõe a sua absolvição.
K) Também relativamente à apreciação da prova produzida quanto aos factos ocorridos em 23 de Agosto de 2006, andaram mal, salvo o devido respeito, os Meritíssimos Juízes "a quo". Nenhuma das testemunhas, cujos depoimentos se encontram transcritos de 34.° a 41.°, identificou visualmente o arguido como condutor do veículo avistado ao qual, aliás, também ninguém conseguiu apontar qualquer características distintiva que permita afirmar, com certeza, tratar-se da viatura de que é proprietário o arguido.
Só através de suposições, sem apoio em termos de prova produzida, se consegue dar como provada a factualidade constante de 13, 14 e 16. Numa correcta e ponderada apreciação e valoração da prova produzida, deve ser revogada a douta decisão recorrida, dando-se como não provados os factos 13. 14 e 16, em decorrência do que resulta dos depoimentos transcritos de 34.° a 41.° e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, devendo, em consequência, ser o arguido absolvido do ilícito em questão.
L) Mesmo que assim se não entendesse, sempre padeceria a douta decisão aqui posta em crise de errónea qualificação jurídica dos factos. Se, antes da alteração introduzida pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de incêndio florestal se encontrava previsto no art. 272.° do CP, tal não sucede actualmente. Após a mencionada alteração, o crime em questão passou a estar previsto no art. 274.°, sendo punível nos termos do disposto no n.º 1 do mencionado artigo.
Ora,
M) pese embora os Meritíssimos Juízes tenham aplicado a Lei nova, por mais favorável ao arguido, efectuaram uma errónea qualificação jurídica, na exacta medida em que não subsumiram os factos à previsão normativa que prevê a punição como crime.
Nos termos do n.º 1 do art. 274.° do CP., o crime de incêndio florestal é punível com pena de prisão de um a oito anos e, portanto, benéfico para o arguido, acrescendo ainda que, a ter o arguido praticado algum ilícito, foi na forma tentada. Jamais poderia estar preenchida a previsão do n.º 2 do mencionado artigo. Isto é, resultando provada, por mera hipótese, a tentativa de incêndio florestal, jamais tal conduta (de tentativa) poderia consubstanciar perigo para bens alheios de elevado valor, uma vez que a previsão normativa apenas prevê a criação de tal perigo pela conduta consumada, jamais tentada.
Nos termos expostos e nos melhores de direito, devem ser julgadas procedentes as invocadas nulidades da decisão recorrida, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra, nos termos da qual se dê provimento ao recorrente, assim se fazendo JUSTIÇA!
*
Ao recurso interposto pelo MP, respondeu o arguido, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso, atendendo a que «a prova que se pretende reapreciada perdeu a sua eficácia, não podendo ser tida em consideração para a apreciação da questão a que se reportam os presentes autos», porém, «no que à suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido concerne, resultam provados nos autos elementos que impõem um juízo de prognose favorável ao arguido, resultando claramente demonstrada a sua capacidade para manter uma conduta lícita».
Por sua vez, na resposta que apresentou ao recurso do arguido, o Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância defendeu a improcedência do recurso e, no que à invocada perda da eficácia da prova respeita, sustenta que «trata-se de uma arguição extemporânea, porquanto esta matéria configuraria, não uma nulidade insanável, mas uma nulidade dependente de arguição. E o momento em que a faculdade de a arguir se podia exercer era até ao fim do acto em curso, isto é, da audiência do julgamento, como decorre do art. 120º, n.º 3, al. a). Arguição, porém, que não ocorreu, como se vê da acta da única sessão de julgamento efectuado após o invocado longo período de interrupção – fls.703».
Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.
Os autos tiveram os vistos legais.
***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Consta da decisão recorrida (por transcrição):
Factos provados
Com relevância para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1. O arguido vive em casa dos seus pais, na Estrada da Lapa, em Manteigas.
2. No dia 4 de Julho de 2006, pelas I h e 30m, o arguido, utilizando o veículo FIAI UNO, matrícula XX-00-00, pertencente ao seu pai, dirigiu-se ao local conhecido por "Moitas", sito no perímetro florestal do Parque Natural da Serra da Estrela, envolvente à Vila de Manteigas, na estrada que liga esta Vila ao Poço do Inferno.
3. De seguida, de modo não concretamente apurado, ateou fogo a folhagem seca localizados na berma da estrada, que assim foi consumida, extinguindo-se por si só, numa área de 5 m2, sem causar quaisquer prejuízos.
4. Após os factos descritos em 2. e 3., o arguido continuou pela mesma estrada.
5. Chegado a um local conhecido por "Chão de Celorico", nos limites da freguesia de S. Pedro, Manteigas, integrado na área do Parque Natural da Serra da Estrela, o arguido, voltou a atear fogo para a berma da estrada onde se acumulavam detritos florestais e folhagem seca, recolhendo-se, após, à casa dos pais onde reside.
6. Na sequência do referido em 5 ., os bombeiros acorreram ao local e, com a sua intervenção, evitaram a sua propagação a uma área de pinhal circundante.
7. No dia 16 de Agosto de 2006, cerca da 1 h e 30m, o arguido, conduzindo a viatura referida em 2., fez o percurso por um caminho de terra batida entre Carvalhais - Poço do Inferno.
8. Ao chegar ao local conhecido por "Leandres", utilizando o isqueiro que trazia na viatura, ateou o fogo a lenços de papel e com os mesmos a arder, lançou-os para a berma do caminho onde se acumulavam detritos florestais e folhagem seca.
9. Logo em seguida, o fogo referido começou a alastrar-se, propagando-se ao pasto seco circundante, começando por consumir a área de pinheiro bravo e castanheiros, constituída por povoamentos florestais daquelas variedades e de outras, como faias, carvalhos e pseudotsugas, que fazem parte do Parque Natural da Serra da Estrela, numa área de 1 ha.
10. O incêndio referido em 9. foi combatido pela equipa de Sapadores de Bombeiros que fazia vigilância ao perímetro florestal.
11. No dia 19 de Agosto de 2006, pelas 3 h e 50m, o arguido, conduzindo a viatura referida em 2 ., fez o percurso pela estrada que liga Manteigas à Nave de Santo António e, ao chegar ao local conhecido por "Fonte Santa", utilizando o isqueiro, deitou fogo a lenços de papel e com estes a arder, lançou-os para a berma esquerda da estrada, onde se acumulavam detritos florestais e folhagem seca.
12. Em seguida, o fogo propagou-se aos materiais referidos, acabando por consumir uma reduzida área devido à pronta intervenção dos Sapadores Florestais que, apercebendo-se da movimentação do veículo e do início do fogo referido, acorreram de imediato ao local, evitando desse modo que houvesse propagação à mancha florestal circundante.
13. No dia 23 de Agosto de 2006, pelas 3h e 20m, conduzindo a mesma viatura referida em 2., fez o percurso pelo caminho de terra batida que dá acesso aos Carvalhais.
14. Ao chegar ao lugar conhecido por "Santo António", utilizando o mesmo procedimento referido em 11., ateou fogo a detritos florestais e folhagem seca que se acumulavam na berma.
15. Em seguida, tendo uma equipa de Sapadores que fazia a vigilância, detectado tal ateamento, deslocou-se ao local e extinguiu-o, evitando assim a sua propagação à mancha florestal envolvente constituída por castanheiros, carvalhos, pinheiros bravos e pseudotsugas.
16. O arguido, nas circunstâncias referidas em 5, 6, 7, 8, 9, 11,12, 13, 14 e 15 quis provocar incêndio de grandes dimensões na área florestal do Parque Natural da Serra da Estrela e colocar em perigo bens patrimoniais de valor elevado, tais como as espécies arbóreas referidas e concretamente uma moradia que se encontrava próxima do perímetro florestal.
17. Nas datas referidas, o tempo estava seco e eram elevadas as temperaturas, quer durante o dia, quer durante o período nocturno.
18. Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
19. O arguido não tem antecedentes criminais.
20. O arguido mostrou arrependimento.
21. O arguido tem uma personalidade introvertida e tímida.
22. O arguido aufere € 480 mensais, comparticipando nas despesas familiares.
23. O arguido tem apoio familiar e é trabalhador.
24. O arguido tem o 5.° ano de escolaridade.
25. O arguido vive com os pais, em casa destes, onde também reside a sua irmã.
Factos não provados
Que esteve em perigo todo o Parque Natural da Serra da Estrela.
Convicção do Tribunal
O tribunal baseou a sua convicção na apreciação de todos os meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento valorados na sua globalidade.
Foram valorados os depoimentos prestados pelas testemunhas, que depuseram com coerência, em si mesmo e entre si. AM…, FS…, JL…, JD…, JL…, JM…, LC…, SM… (todas estas testemunhas, por conhecimento directo, dado terem feito vigilâncias nos locais descritos na acusação, explicaram as diversas vicissitudes ocorridas nos dias em que os focos de incêndio deflagraram, adiantando pormenores que permitiram dar como certa a presença do arguido e a autoria por parte deste dos factos tal como provados ficaram), LA…a (elemento da G.N.R., que acompanhou o arguido com os inspectores da PJ. no reconhecimento dos locais onde o mesmo indicou ter ateado os fogos, tal como decorrem das fotografias, mais explicando o modo como tal reconhecimento foi feito pelo arguido de livre vontade e a forma como ele indicou os locais, mais identificando a caixa de lenços utilizados pelo arguido que estava no seu carro, mais adiantando um valor mínimo para a encosta da Serra que esteve em perigo, que estimou, em escudos, em 50 mil contos) e LA… . Foi ainda relevante a audição das testemunhas de defesa, em conjugação com o relatório social para se concluir ser o arguido uma pessoa trabalhadora.
O arguido, embora tenha declarado não querer prestar declarações no início da audiência, após a produção de prova e proferidas as alegações, quando lhe foi dada a palavra para, querendo, sem prejuízo do seu direito ao silêncio, dizer o que lhe oferecesse, afirmou estar muito arrependido pelo que tinha feito, ultrapassando, assim, a orientação inicial dada à sua defesa; aliás, tal declaração foi coerente com o seu comportamento processual em sede de inquérito, quando se disponibilizou a indicar os locais onde tinha ateado os fogos (as fotografias juntas aos autos a fls. 125 a 131. em que o arguido aparece a apontar para os locais onde ateou o fogo; todas as testemunhas inquiridas, quando confrontadas com tais fotografias, reconheceram o arguido em tais fotografias e, simultaneamente, identificaram os locais para onde apontava como sendo aqueles onde se iniciaram os fogos) e aliás resultam provados, bem como em coerência com o que declarou ao I.R.S. aquando da elaboração do relatório social (motivo que levou o tribunal a convocar o senhor técnico autor de tal relatório, AJP…). Esta sua declaração em audiência foi igualmente relevante para o tribunal dar como provado o seu arrependimento.
Foram analisados, em conjugação com os depoimentos referidos, os documentos constantes de fls. 42 e ss. (informações relativas às causas de incêndio, com indicação, por exemplo. dos níveis de humidade do ar, da orientação geográficas, áreas atingidas, velocidade do vento, características da vegetação, croquis e mapas de localização), 132, 133, 134, 171, 193, 222, 223, 224, 225, 226, 245, 248, 249 e 250 (que constituem fotografias).
Quanto às condições pessoais do arguido, o tribunal atendeu ao teor do relatório social junto aos autos; foi ainda ponderado o teor do relatório de exame de psiquiatria forense junto aos autos a f1s. 521 e 522.
Foi analisado o CRC de f1s. 459.
***

APRECIANDO

Atendendo ao texto das motivações e respectivas conclusões, nos recursos vêm suscitadas as seguintes questões:
- pelo MP, a suspensão da execução da pena;
- pelo arguido:
. a perda da eficácia da prova produzida, pelo que não poderia ser valorada e tida em consideração na decisão recorrida;
. a errada apreciação da prova;
. a errada qualificação jurídica dos factos.
*


Da perda da eficácia da prova produzida
Como questão prévia, vem o recorrente B… suscitar a questão da perda da eficácia da prova produzida em audiência (nos termos do artigo 328º, n.º 6 do CPP) e, consequentemente, da revogação do acórdão recorrido, dado que a prova não podia ser considerada, porquanto quando “em 29-1-2009 foi retomada a audiência para a repetição da inquirição das testemunhas, cujos depoimentos não haviam ficado gravados, (…) a demais prova, incluindo a testemunhal, havia sido produzida há muito mais de 30 dias – mais precisamente em 22-11-2007”.

Com relevância para a decisão há a considerar o seguinte:
- na sequência da audiência de julgamento a que se procedeu nos presentes autos foi o arguido condenado, por acórdão de 6-12-2007, pela prática de crimes de incêndio, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
- a audiência compreendeu duas sessões de produção de prova, realizadas em 8 e 22 de Novembro de 2007;
- em 17-12-2007, o arguido manifestando o propósito de recorrer da decisão de facto, solicitou a entrega de cópia das gravações da prova produzida oralmente em audiência;
- esta entrega ocorreu em 2-1-2008,
- em 8-1-2008, o arguido deu conhecimento ao tribunal da falta na gravação das cassetes 1 e 2 e do lado B da cassete n.º 3. E, alegando a impossibilidade de apresentar a respectiva motivação do recurso face à detectada falha, invocou a nulidade prevista no artigo 363º do CPP;
- em 15-1-2008 a secretaria judicial confirmou no processo a referida falha nas gravações;
- em reunião do colectivo, o tribunal considerou a omissão das gravações como mera irregularidade, e decidiu que não tendo a mesma sido arguida no prazo de 3 dias e, não tendo o arguido liquidado e pago a multa devida, deveria a secretaria proceder a tal liquidação, sob pena de o arguido perder o direito a praticar o acto (requerer a inquirição das testemunhas cujos depoimentos não ficaram registados) – fls. 597/598;
- a liquidação foi efectuada,
- o arguido pediu a aclaração do despacho, dado o artigo 363º do CPP referir expressamente que a falta de documentação das declarações orais configura uma nulidade processual;
- foi então proferido novo despacho, que indeferiu o requerido, e manteve o anteriormente decidido;
- o arguido interpôs recurso deste despacho e, por acórdão de 1-7-2008, esta Relação decidiu não ser exigível o pagamento da multa prevista no art. 145º/5 do CPC a que se refere o despacho de fls. 597/598, e revogou o despacho recorrido na parte em renovou tal exigência;
- em 29-1-2009 (tendo as testemunhas sido notificadas para comparecerem em tribunal a fim de serem inquiridas), após deliberação do tribunal colectivo, foi proferido despacho que, na sequência do acórdão da Relação, determinou se retomasse a audiência de julgamento, tendo-se então (nessa manhã) procedido à inquirição de oito testemunhas, e produzidas as alegações orais. Na mesma data (pelas 14.45h) o tribunal proferiu o acórdão recorrido (actas de fls. 703/708 e 729).
*
Tendo em vista a garantia de uma justiça mais célere e eficaz, estabeleceu-se no n.º 1 do artigo 328º do CPP o princípio da continuidade da audiência. Todavia, este princípio tem excepções – as previstas nos n.ºs 2 e 3.
E, determina o n.º 6 do mesmo preceito que “O adiamento não pode exceder 30 dias. Se não for possível retomar a audiência neste prazo, perde eficácia a produção de prova já realizada”
Se nos diversos adiamentos do julgamento, qualquer deles não ultrapassou 30 dias, não se mostra violado o n.º 6 do artigo 328º do CPP, não havendo consequentemente lugar à perda da eficácia da prova realizada nas anteriores sessões de julgamento ( - Ac. do STJ de 19-6-97, proc. n.º 473/97.
).
O termo “adiamento” é utilizado em sentido amplo, compreendendo o adiamento em sentido técnico-jurídico e a interrupção.
O artigo 328º, n.º 6 do CPP, não tem aplicação no caso de a leitura da sentença (ou acórdão) ocorrer depois de ultrapassado o prazo de 30 dias sobre o encerramento da audiência. Neste caso, há que ter em consideração o disposto no artigo 373º do mesmo Código ( - Ac. do STJ de 15-10-97, Acs. STJ, V, 3, pág. 197, BMJ 470-379.
).
Esta é a interpretação que se pode fazer da própria sistematização do Código de Processo Penal, onde temos o Livro VII que trata Do Julgamento, com três Títulos, sendo o II- Da Audiência e o III- Da Sentença.
Ainda, quanto às declarações orais prestadas em audiência, estando as mesmas documentadas em acta, verificaram-se divergências, na doutrina e na jurisprudência, se bem que a orientação maioritária era a de que, ainda que o julgamento se arraste por várias sessões, mesmo espaçadas por mais de 30 dias, deveria entender-se que não era ofendido o estabelecido no n.º 6 do citado artigo 328º ( - Ac. STJ de 29-1-2004, in CJ, tomo I, pág. 184; Ac. RL de 27-2-2002, in CJ, tomo I, pág. 153.
). Aliás, na esteira do entendimento de Maia Gonçalves, segundo o qual o que é susceptível de perder valor são as provas prestadas oralmente em audiência, pois a prova documental permanece nos autos e o risco de esvanecimento da memória relativamente a ela não existe ( - in CPP anotado, 9ª Ed. Almedina, pág. 589.
).
Contudo, o Acórdão do STJ n.º 11/2008, de 29-10-2008 (publicado no DR, I série, de 11-12-2008) veio resolver tal diferendo ao fixar jurisprudência no sentido de que «Nos termos do artigo 328º, n.º 6 do Código de Processo Penal, o adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda da eficácia da prova produzida com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do mesmo diploma».

Do exposto decorre que bem andou o recorrente quando, ao interpor recurso do acórdão, veio arguir um vício de procedimento adoptado pelo tribunal - quanto à gravação da prova (e não um vício da decisão), que lhe é prévio.
Como salienta Miguel Teixeira de Sousa ( - in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, pág. 216.) deverá distinguir-se «o erro na apreciação da matéria de facto ou na aplicação do direito aos factos – o chamado “error in iudicando” – do erro proveniente da inobservância das regras de procedimento – o designado “error in procedendo”. O “error in iudicando” conduz ao proferimento de uma decisão injusta, sem que necessariamente ela esteja afectada por qualquer “error in procedendo”; este “error in procedendo” leva à prolação de uma decisão viciada, cujo valor é independente da eventual justiça da decisão. Por exemplo: uma decisão a que falta a fundamentação padece de um “error in procedendo” e é nula [artigo 668º, n.º 1, alínea b)], mas isso não significa que essa decisão seja injusta, isto é, que ela também esteja afectada por um “error in iudicando”».
E acrescenta ainda que «nos vícios da decisão incluem-se apenas aqueles que a ela respeitam directamente. Quer isto dizer que não é considerado um vício da decisão a realização de um acto não permitido ou a omissão de um acto obrigatório antes do seu proferimento: tais situações são nulidades processuais, submetidas, na falta de qualquer regulamentação específica, ao respectivo regime geral».

Contrariamente ao sustentado pelo Ministério Público na sua resposta, na sequência de o tribunal a quo ter decidido retomar a audiência e procedido à inquirição das testemunhas, não tinha o arguido de, em acta e no final da audiência, arguir qualquer nulidade decorrente do longo período de interrupção da audiência. Esse foi um vício de procedimento adoptado pelo tribunal que, em tempo, foi suscitado pelo arguido no presente recurso.
A nulidade, invocou-a o arguido correcta e atempadamente quando, pretendendo recorrer da matéria de facto do acórdão proferido em 6-12-2007, verificou que o depoimento das testemunhas ouvidas em 8 e 22-11-2007, ou não ficaram registados, ou continham deficiências, atento o disposto no artigo 363º do CPP.
Ora, tendo a anterior prova perdido eficácia, por força do estabelecido no n.º 6 do artigo 328º do CPP, tudo tinha de ser repetido, o tribunal tinha de proceder à inquirição de todas as testemunhas (e ouvir o arguido, caso não se remetesse ao silêncio). Porém, assim não aconteceu, e o tribunal a quo acabou por fundamentar a sua convicção quanto à matéria de facto da decisão ora recorrida com base em tais depoimentos.
Como se refere no citado Acórdão de fixação de jurisprudência, de 29-10-2008, «(…) a perda de eficácia tem por consequência a necessidade da sua repetição. A mesma prova produzida deixa de ter qualquer virtualidade para fundamentar a convicção do julgador, ou para produzir qualquer efeito processual.».
Por conseguinte, tendo a prova perdido eficácia, há proibição quanto à sua valoração.
Logo, o procedimento em causa conduz à anulação do julgamento (e, em consequência, à anulação do acórdão recorrido) - art. 122º do CPP, ficando necessariamente prejudicadas as demais questões suscitadas nos recursos.
*****
III- DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:
- Conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, declarando nulo o julgamento realizado nos autos e ordenando a sua repetição.
Não são devidas custas.
*****
Coimbra,