Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
334/06.0GAVGS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO COM MOTOR
Data do Acordão: 12/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VAGOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 101º DO CP
Sumário: Ao arguido que padece de patologia que lhe provoca um muito rápido adormecimento durante o dia e exercendo a actividade profissional de motorista pode ser aplicada a medida de segurança de cassação da licença de condução, sem que se encontre junto parecer pericial, do qual resulte a existência de um fundado receio da prática de factos análogos e estritamente pelo período necessário para afastar tal risco e de onde resulte nomeadamente os tratamentos a que se deveria sujeitar o arguido.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO

Em processo comum singular do Tribunal Judicial da Comarca de Vagos, por sentença de 08.05.30, foi, para além do mais, decidido:
- absolver o arguido FM..., da prática do crime de homicídio por negligência de que vinha acusado, por verificação do estado de inimputabilidade.
- aplicar ao referido arguido a medida de segurança de cassação do título de condução de veículos de circulação a motor prevista no artº 101ºCP, pelo período de 2 anos.
Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, concluindo a sua motivação nos seguintes termos:

“ 1- Foi o ora recorrente absolvido da prática do crime de homicídio por negligência de que vinha acusado, por se verificar o estado de inimputabilidade.
2 - O ora recorrente, como provado ficou do relatório junto a fls. 313 dos autos, sofre de grave hipersónia diurna com latência média de 3m. 52, caracterizada por um muito rápido adormecimento durante o dia.
3- Facto que o ora recorrente desconhecia à data do sinistro.
4- Foi o arguido absolvido por inimputável.
5 - Entendeu o Tribunal a quo, que o ora recorrente teria de ser sujeito a uma medida de segurança de cassação do titulo de condução de veículos de circulação a motor, prevista no artigo 101º do Código Penal, pelo período de dois anos.
6 -O ora recorrente sofre de uma doença, que o impediu de controlar a sua acção e deste facto resultou que se visse envolvido num sinistro que, infelizmente, resultou a morte de uma pessoa.
7- O ora recorrente nunca se conformou com tal facto.
8- O ora recorrente é motorista profissional.
9 - É pessoa que vive exclusivamente do rendimento auferido na sua actividade.
10- É pessoa jovem.
11- Entende o ora recorrente, que a aplicação da medida de segurança, não pode ser efectuada sem mais, como se da aplicação de uma pena se tratasse.
12 - Necessariamente que se terá de aferir da personalidade do agente, bem como, das medidas a que este terá de se sujeitar para que possa eliminar o risco para sociedade em Geral e para si em particular.
13 - Contudo, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a norma em apreço e no caso concreto, não pode ser interpretada e aplicada no sentido em que o foi.
14 - Deixando, desde já, por assente toda a fundamentação vertida no ponto 3.2.1 da douta sentença, é no que concerne na fundamentação vertida no ponto 3.2.2 da mesma que importa fazer o seguinte reparo.
15 - Deveria, e porque no caso em concreto o ora recorrente sofre de doença que sustentou a sua inimputablidade, ter o Tribunal a quo, ter ordenado exames complementares com vista a determinar, em concreto, se o ora recorrente poderia ser sujeito a tratamento, ou se tratamento médico ou medicamentoso existe, que permita afirmar pela existência ou não de fundado receio da prática de factos na análogos.
15 - Aplicação de uma medida de segurança de cassação da carta de condução por dois anos, sem mais, coaduna-se nos casos em que existe uma efectiva condenação do arguido com comprovada existência de condução negligente de forma grosseira.
16 - No caso, a norma e a sua interpretação e aplicação não pode ser feita sem mais. Sem que, que se afira em concreto a potencialidade de risco.
17- Entendemos, que o artigo 101 do Código Penal, quando haja a sua aplicação por força de absolvição do arguido por inimputabilidade, resultando esta de doença, que deve implicar a sua interpretação e aplicação no seguinte sentido:
- ao arguido deve ser aplicada medida de segurança de cassação do titulo de condução de veículos de circulação motor, quando, mediante parecer pericial, resulte do mesmo que existe fundado receio da pratica de factos análogos, e estritamente pelo período necessário para afastar tal risco, devendo, para tanto, o perito médico indicar qual ou quais os tratamentos a que poderá ser sujeito o doente e por que período, para que seja considerado curado e assim possa exercer a sua actividade profissional.
18 - Isto sob pena, de aplicação da norma em apreço, ser efectuada como se de sanção se tratasse e não medida de segurança.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a medida de segurança aplicada ao ora recorrente ser revogada e interpretada e aplicada a norma 101 do CP, no seguinte sentido:
- ao arguido deve ser aplicada medida de segurança de cassação do titulo de condução de veiculas de circulação motor, quando, mediante parecer pericial, resulte do mesmo que existe fundado receio da pratica de factos análogos, e estritamente pelo período necessário para afastar tal risco, devendo, para tanto, o perito médico indicar qual ou quais os tratamentos a que poderá ser sujeito o doente e por que período, para que seja considerado curado e assim possa exercer a sua actividade profissional.
Determinando-se, após relatório pericial, qual a medida concreta da medida de segurança.
Caso assim, não se entenda, sempre se deverá considerar por excessiva a medida concreta da sanção de segurança aplicada e deverá a mesma ser reduzida para o seu mínimo legal.”
O Ministério Público respondeu, concluindo que o recurso não merece provimento.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, conclui que o recurso deverá improceder.
Foi dado cumprimento ao artº 417º nº 2 CPP
Colhidos os vistos, cumpre decidir.


FUNDAMENTAÇÃO


Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:
A) No dia 21 de Junho de 2006, pelas 6h45m, o arguido conduzia o veículo pesado de mercadorias, de matrícula 00-00-TR, atrelado com o seu semi-reboque, de matrícula L-000000, na Rua de Alta Tensão, localidade da Gafanha da Vagueira, concelho de Vagos, no sentido de trânsito Gafanha do Carmo/Gafanha da Boa Hora, a uma velocidade de 60 Km/h.
B) Na mesma ocasião, o ofendido AS... conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula 00-00-GU, na Avenida Parque e Campismo, circulando no sentido Praia da Vagueira/Vagos, pela metade direita da faixa de rodagem.
C) No local, a via configura um cruzamento com boa visibilidade, em que se verifica a intersecção da Rua da Alta Tensão com a Avenida do Parque de Campismo.
D) O tempo estava bom e já era de dia.
E) A referida Avenida do Parque de Campismo configura uma recta com uma largura de 7,90 metros e duas faixas de rodagem destinadas ao trânsito em ambos os sentidos e nesse local possui uma linha longitudinal descontínua separadora das duas faixas de trânsito.
F) Por sua vez, a Rua da Alta Tensão configura igualmente uma recta com duas faixas de rodagem destinadas ao trânsito em ambos os sentidos, sendo que, considerando o sentido Gafanha do Carmo/Gafanha da Boa Hora, a via tem, antes do cruzamento, a largura de 11,90 metros e, depois o mesmo, de 7,90 metros.
G) Para quem se desloca, na referida Rua da Alta Tensão, no sentido Gafanha do Carmo/Gafanha da Boa Hora, na proximidade imediata com a intersecção, existe no berma do lado direito da via um sinal vertical de paragem obrigatória no cruzamento e cedência de passagem (vulgo ‘STOP”).
H) O Arguido pretendia virar à esquerda, em direcção a Vagos.
I) Sucede que o arguido não parou o veículo, não se certificou se na Avenida Parque de Campismo circulavam outros veículos e seguiu em frente.
J) Dessa forma, cortou a linha de marcha do veículo conduzido pelo ofendido AS..., que foi embater com a sua parte frontal na parte lateral direita do semi-reboque do veículo do arguido.
L) O embate ocorreu na zona de intersecção da Avenida do Parque de Campismo com a Rua da Alta Tensão, na metade direita da faixa de rodagem atento o sentido de marcha do ofendido, a cerca de 1,35 metros da linha descontínua delimitadora das faixas de rodagem.
M) Em consequência do embate, o ofendido AS... sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicâs, toraco-abdominais e vértebro-medulares, conforme descritas no relatório de autópsia de fls. 35 a 41, que se dá por integralmente reproduzido, que foram a causa directa da sua morte.
N) O arguido conhecia as características da via em que circulava, bem sabendo da existência de um sinal de paragem obrigatória e cedência de passagem (vulgo “STOP”) no local.
O) Não obstante, prosseguiu a sua marcha, desrespeitando o referido sinal de trânsito,
P) O arguido sofre de grave hipersónia diurna com latência média da 3m.52, caracterizada por um muito rápido adormecimento durante o dia.
Q) O acidente e as suas consequências ficaram-se a dever à circunstância do arguido, na ocasião, conduzir em desrespeito pelas regras elementares de circulação rodoviária, as quais devia ter adoptado, o que não fez por ter adormecido por força da patologia referida na alínea anterior.
R) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
S) O arguido é motorista profissional na «Empresa Paivense de Transportes», actividade que continua a exercer, auferindo em média €592,00 mensais, é casado tem uma filha menor de 12 anos sendo a sua mulher doméstica. Tem o 9º ano de escolaridade.
T) O arguido é pessoa bem inserida socialmente
U) Após o acidente o arguido teve necessidade de acompanhamento psicológico por apresentar sintomatologia ansiosa e depressiva, irritabilidade fácil, dificuldades de concentração e de memorização, baixa auto-estima, humor depressivo, isolamento social e familiar e insónias nocturnas.
V) A demandada Tranquilidade pagou em 15/02/2007, à viúva e filhos a quantia de 135.000,00 por todos os danos, patrimoniais e não patrimoniais, resultantes dessa morte, incluindo os anos patrimoniais futuros ou lucros cessantes
X) O ISSS, pagou à viúva do sinistrado subsídio por morte no valor de €2.315,40 e pensão de sobrevivência no período de Julho de 2006 a Maio de 2008 no montante de €5.738,89, sendo o valor mensal desta pensão de €218,29.
Z) Por requerimento entrado em juízo em 28-8-2007, o ISSS deduziu pedido cível contra a Companhia de Seguros Tranquilidade, SA reclamando o reembolso dos valores referidos na alínea anterior.
Factos não provados:
“Não se provaram quaisquer outros factos e designadamente não se provou:
- que o arguido conduzisse com falta de cuidado e de atenção e em manifesta distracção, não se tendo, por isso, apercebido da existência do mencionado sinal STOP e que tenha previsto a possibilidade de outros veículos circularem na Avenida Parque de Campismo, como efectivamente aconteceu, não se tendo conformado com a eventualidade da ocorrência de um embate.”.

*


O âmbito dos recursos é determinado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
Assim, tendo por base as referidas conclusões, a única questão colocada é a de saber se pode ser aplicada ao arguido a medida de segurança de cassação da licença de condução, sem que se encontre junto parecer pericial, do qual resulte a existência de um fundado receio da prática de factos análogos e estritamente pelo período necessário para afastar tal risco e de onde resulte nomeadamente os tratamentos a que se deveria sujeitar.
Caso assim não seja entendido, entende que essa medida deve ser reduzida ao mínimo legal.
Vejamos.
E o que desde já se dirá é que face aos elementos constantes dos autos, não se nos afigura de qualquer interesse a realização de perícias complementares, como é a preconizada pelo recorrente.
Na verdade o arguido foi absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, por verificação de estado de inimputabilidade, já que ficou demonstrado que o arguido sofre de grave hipersónia diurna com latência média de 3m.52, caracterizada por um muito rápido adormecimento durante o dia, sendo que o acidente se ficou a dever ao desrespeito pelas regras elementares de condução por parte do arguido, por ter adormecido por força da referida patologia.
Ora estabelece o artº 101º nº 1 a) CP que, em caso “de absolvição só por falta de imputabilidade, o tribunal decreta a cassação da licença de condução quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente…. houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie”.
Não se trata como é evidente de uma medida de aplicação automática.
Como se escreveu no AcSTJ 99.06.30 Proc. 319/99-3ª, SASTJ, nº 32, 93, citado por Maia Gonçalves, in Código Penal Português, 18ª ed., pág. 415., ela depende da ponderação dos factos praticados e da personalidade do agente, de modo que dos mesmos seja possível concluir pelo receio, fundado, do perigo que o arguido representa para a segurança rodoviária e dos cidadãos, que certamente continuará, no futuro, a praticar idênticos factos.
Na mesma linha de pensamento Germano Marques da Silva Crimes Rodoviários Pena Acessória e Medidas de Segurança, pág. 34. diz-nos que “ A aplicação de uma medida de segurança criminal pressupõe um estado de perigosidade do sujeito, revelada pela prática de determinados factos de natureza criminal, e procura evitar o perigo da sua repetição ou de outros de idêntica natureza”.
Por seu lado Figueiredo Dias, em matéria de juízo de prognose ,diz-nos Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 443 e ss. “ Esta tarefa constitui sem dúvida - e de uma forma particular em matéria de aplicação de medidas de segu­rança - uma das mais difíceis e delicadas de todo o âmbito político­-criminal, por isso que tem a ver com uma questão tão problemática como é a da previsibilidade e determinabilidade do comportamento humano. A ciência criminológica, em geral, e as singulares ciências humanas, em especial, são aqui chamadas a desempenhar um papel de relevo muito particular, sendo absolutamente fundamental para o efeito o resultado da perícia criminológica, psiquiátrica ou psicoló­gica que porventura venha a ter lugar. Apesar disto, porém, - e apesar dos avanços que a ciência criminológica tem experimentado em matéria de previsibili­dade do comportamento humano, no que toca tanto aos chamados métodos estatísticos (nomeadamente as tábuas de prognose), como à prognose (clínica) individual - não é ao perito, nem à ciência criminológica, que pertence decidir a questão da perigosidade, apenas estabelecer as bases da decisão, cabendo esta sempre, em último termo, ao tribunal… O que se exige é a probabilidade de repetição, não a mera possibilidade, nem obviamente a certeza de que ela irá ter lugar. Isto significa, no âmbito do processo penal, que o tribunal – pressuposta a verificação dos restantes requisitos - aplicará a medida de segurança se tiver alcançado a convicção da probabilidade de repetição; não a ordenará se se tiver convencido de que a repetição é possível mas não provável; como igualmente a não ordenará, de acordo o princípio in dubio pro reo, se tiverem persistido no seu espírito dúvidas inultrapassáveis quanto à probabilidade de repetição.”.
Assim a decisão da aplicação da medida de segurança assenta em factos concretos, reveladores de tal estado de perigosidade, no sentido de que perante tal quadro, é seguro que o arguido continuará a praticar factos da mesma espécie.
Ora tais factos estão nos autos.
Com efeito no caso em análise, considerando que o arguido padece de patologia que lhe provoca um muito rápido adormecimento durante o dia e exercendo a actividade profissional de motorista, fácil é concluir, com toda a probabilidade, que este continuará a cometer, no futuro, factos de idêntica espécie, colocando em risco não só a sua própria vida, como a daqueles que com ele se cruzam na estrada.
É a medida de prevenção e defesa social que se impõe, sem necessidade de realização de quaisquer outros exames complementares como pretende o arguido.
A sociedade não pode ficar à mercê de condutores que correm o sério risco de se adormecerem ao volante.
E muito menos relevam para a aplicação de tal medida a necessidade de indicação dos tratamentos a que o arguido deve ser sujeito.
Este é que se tiver interesse nisso deverá submeter-se a esses tratamentos com vista à sua cura, se possível e desejável, ou à redução dos seus efeitos, já que, como é sabido, o período fixado é prorrogável por outro período até 3 anos se, findo o prazo fixado na sentença, o tribunal considerar que aquele não foi suficiente para remover o perigo que fundamentou a medida (artºs 100º nº 2 e 101º nº 5 CP).
Finalmente quanto à proporcionalidade da medida de segurança aplicada e que este diz ser exagerada, discordamos do seu entendimento.
Com efeito, sendo o período de interdição, em abstracto, de 1 a 5 anos ( artºs 101º nº 5 e 100º nº 2 CP), e tendo a decisão recorrida fixado em 2 anos esse período, portanto muito próximo do seu limite mínimo, nada tem este Tribunal da Relação a censurar, pois julgamos ser a justa e adequada para o caso concreto.

DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente a douta decisão recorrida.
Fixam a taxa de justiça devida pelo recorrente em nove Ucs.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP)
Coimbra, 17 de Dezembro de 2008.