Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
386/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
DIREITO DE TAPAGEM
COLOCAÇÃO DE UM PORTÃO NA PASSAGEM
ENTREGA DAS CHAVES AOS DONOS DO PRÉDIO DOMINANTE
Data do Acordão: 05/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 1543º, 1544º, 1547º E 1356º DO C. CIV.
Sumário: I – Encontrando-se o direito de servidão de passagem estruturado em normas que o definem – artº 1543º C. Civ. -, disciplinam o seu conteúdo – artº 1544º C. Civ. - e o seu modo de constituição – artº 1547º C. Civ. -, não encontramos razões para apelidar de abusivo o pedido de remoção de portões que obstam/impedem o exercício desse direito.

II – A servidão de passagem deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, mas a sua satisfação deve ter em conta o menor prejuízo possível para o prédio serviente.

III – No pedido de retirada dos portões cabe a condenação dos R.R. na entrega das chaves, já que tal condenação se contém nos limites do pedido inicial e, por isso, não viola o disposto no artº 661ºdo CPC.

IV – Quando a colocação de um portão no topo de uma serventia tem por finalidade proteger a privacidade e segurança dos moradores do prédio serviente, este direito em nada bole com o direito de passagem que a lei concede aos proprietários do prédio dominante, desde que para tanto lhes seja facultada a respectiva chave.

Decisão Texto Integral:

Acórdão

                Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Coimbra

                1.Relatório

                A... e esposa, B..., C... e esposa, D... e E... e esposa, F..., na qualidade de únicos herdeiros da herança indivisa aberta por óbito de G..., intentaram a presente acção com forma de processo sumário contra H... e esposa, I... e J... e esposa K.... Para tanto alegaram que são os únicos e exclusivos representantes da herança jacente aberta por óbito de G... e L....

                Integram o acervo hereditário, entre outros, os seguintes prédios: casa de habitação com uma dependência e pátio inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 860 da freguesia e concelho de Cantanhede e a casa de rés-do-chão, destinada a adega e logradouro inscrita na matriz predial sob o artigo urbano nº5.471 da mesma freguesia e concelho. Desde há mais de 20 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse usufruem como coisa própria e exclusiva e em nome próprio os prédios urbanos supra identificados.

                Por sua vez os primeiros réus, por si e ante – proprietários são possuidores e legítimos proprietários do prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 2.522, prédio este que a poente confronta com serventia. Já os segundos réus são donos e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 12.578.

                Por via da escritura de compra e venda exarada em 11 de Junho de 1926, a autora/seus representantes ficaram com o direito de servidão de passagem de pé e carro por aquele terreno que dá servidão de passagem a vários, não só para a metade comprada, mas também para o seu prédio de casas e pátio. O acesso sempre se fez através de faixa de terreno com 3 metros de largura desde a Rua Manuel Belo até tais prédios já identificados. Acontece que os réus, após escritura de compra e venda realizada em 20 de Agosto de 1998 colocaram dois portões que mantêm sempre fechados, impedindo a saída e entrada de pessoas e bens, embaraçando o exercício normal da passagem pelos autores/herança.

Concluíram peticionando que:

   a) Se declare a existência de uma servidão de passagem de pé, carros de animais e animais, desde a estrada pública até aos portões dos pátios dos autores/herança, com as características supra referidas.

   b) – Se condene os réus a reconhecer a existência de tal servidão a absterem-se de, por qualquer modo, impedirem ou de perturbarem os autores no seu exercício, designadamente reconstruindo-a arrancando os dois portões ali colocados nos topos norte e sul, retirando ainda da passagem tudo o que possa impedir o seu livre exercício.


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                Os réus foram regularmente citados.

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                Na sua contestação começaram por suscitar a ilegitimidade passiva dos réus H... e I..., na medida em que sendo é certo os proprietários do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2.522, a verdade é que os autores não alegam a existência de direito de passagem sobre o seu prédio.

                Por impugnação alegaram desconhecer o que os autores referiram nos artigos 1º a 14º da petição, sendo que os autores sustentaram um alegado direito de passagem não só para a metade comprada, mas também para o seu prédio de casas e pátio, sem, todavia, especificarem que prédio está onerado com tal direito se o artigo urbano 2.522 se o artigo rústico 12.578. Por outro lado, os autores reconhecem que o artigo 860 confronta a nascente com rua, mais reconhecendo que adquiriram o imóvel descrito no artigo 5.471, havendo reunião e comunicação entre eles. Assim, os prédios alegadamente encravados o não são já que o urbano artigo 860 confronta a nascente com a rua. Em sede de reconvenção sustentaram que a pretensão dos autores configura um abuso de direito, já que podem perfeitamente comunicar com a rua, com a qual confronta o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo 860, o que podem fazer sem custos e incómodos. Mais alegaram que com a reunião de dois prédios pertencentes à herança verificou-se uma mudança objectiva do prédio dominante, em momento posterior à constituição da servidão, estando assim verificados os pressupostos que conduzem à extinção da servidão. Caso assim se não entenda deve ser reconhecida aos réus a possibilidade de adquirirem os alegados prédios encravados.

                Concluem pela improcedência da acção e julgadas procedentes as excepções ou quando assim se não entenda pela procedência do pedido reconvencional com a consequente declaração de extinção da servidão ou reconhecendo-se aos réus/reconvintes o direito de adquirirem os prédios encravados.


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                Responderam os autores sustentando a legitimidade dos réus e que os seus prédios confrontam com a serventia que, abusivamente, foi ocupada pelos réus.

                Concluem pela improcedência da excepção e da reconvenção.


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                Realizada a tentativa de conciliação, com deslocação do tribunal ao local da contenda, veio a mesma a revelar-se infrutífera em virtude da falta de acordo das partes.

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                Por despacho de folhas 139 e vº foi admitida a reconvenção.

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                No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva dos réus H... de Almeida e mulher I.... No mais julgou-se a instância válida e regular.

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                Consignaram-se os factos assentes e elaborou-se a base instrutória que notificados não foram objecto de reclamações.

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                Foram habilitados como herdeiros de A... – falecido na pendência dos autos – B..., O... e N.... 

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                Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi designado dia e hora para a leitura da decisão sobre a matéria de facto controvertida que não mereceu qualquer reparo – folhas 268/9.

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                Na sequência da prolação de sentença veio a acção a ser julgada procedente por provada e consequentemente:

1. Foram reconhecidos como propriedade comum dos autores os prédios descritos nos §§ 2.º e 3.º dos factos provados;

2. Foi reconhecida a existência de um direito de servidão de passagem de pessoas, animais e veículos, a favor dos autores, sobre a parcela de terreno identificada nos §§ 14.º e 15.º dos factos provados;

3. Condenaram-se os réus a retirarem os portões descritos nos §§ 8.º, 16.º e 23º a 25º dos factos provados, bem como, tudo o que possa impedir a passagem de pessoas, animais e veículos pela supra referida parcela de terreno.


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                A reconvenção foi julgada totalmente improcedente, por não provado, e consequentemente absolveram os autores dos pedidos contra si formulados.

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                Inconformados com o pronunciamento decisório, os réus H..., J... e esposa interpuseram recurso – folhas 287 – que foi admitido como apelação a subir imediatamente e nos próprios autos e ao qual foi fixado o efeito meramente devolutivo (folhas 301).

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                Os réus/apelantes atravessaram nos autos as suas alegações que remataram, na parte que releva ao conhecimento do recurso, formulando as seguintes conclusões:

[…]

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                Contra alegaram os autores/recorridos, manifestando-se contra o pedido de manutenção dos dois portões colocados no início e fim da servidão de passagem, porque impeditivos do exercício do seu direito de passagem, mesmo com a entrega das chaves. Concluem pela manutenção do decidido.

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                2. Delimitação do objecto do recurso

                As questões a decidir no presente recurso de apelação e em função das quais se fixa o seu objecto, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:

· Ao condenar os réus a retirarem os portões a sentença recorrida viola os seus direitos de propriedade e personalidade.

· Os autores/apelados exercem o seu direito de passagem com a entrega de uma chave de cada um dos portões.

· O incómodo dos autores deve ceder perante os direito dos réus à tapagem do seu prédio e à reserva da intimidade da sua vida privada, sob pena de se estar a cometer um flagrante abuso de direito.


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                3. Matéria de facto dada como provada pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede

[…]

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                4. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir

                4.1 – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia

                A dado momento da sua contestação os réus negaram ter criado qualquer embaraço aos autores, avançando mesmo que as obras tornaram mais cómoda e limpa a faixa de terreno (…) pelo que o pedido de reposição do leito da serventia e arranque de portões constitui um claro e flagrante abuso de direito – facto 28º da contestação.

                Ao lermos a sentença recorrida, verificamos que o Exmo. Juiz não se pronunciou sobre «um aspecto central e basilar da acção que era o de saber se o pedido formulado pelos autores/apelados – retirada dos portões – constituía ou não um caso flagrante de abuso de direito.

                A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC – verifica-se quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – ou seja, quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudicar a apreciação das restantes (artigo 660º, nº 2 do CPC).

                Deve sublinhar-se que a lei fala em questões, ou seja, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de direito e de facto em que as partes fundamentam as suas pretensões. Naquele substantivo – questões – como é jurisprudência uniforme não cabem razões ou argumentos usados pelas partes[1].

                Declara o nº 2 do artigo 660º do CPC que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes lhe tenham submetido (…)», pelo que o Exmo. Juiz não podia deixar de conhecer da excepção de direito material que as partes submeteram ao seu conhecimento, já que o mesmo não ficou de modo algum prejudicado – parte final do nº 2 do artigo 660º do CPC – pelo conhecimento de uma questão conexa.

                Assim, damos por verificada a nulidade da sentença por violação da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC, no entanto e tendo em consideração o que dispõe o artigo 715º do CPC, não podemos deixar de conhecer desta excepção.

                Prescreve o artigo 334º do Código Civil

                É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

                A propósito do abuso de direito, ensina o Sr. Prof. Antunes Varela que «na sua aparente simplicidade, o artigo 334º do novo Código – o tal que define o abuso do direito – constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos, harmonizando os poderes do proprietário com as concepções actuais da propriedade"[2]. Por sua vez, escreve-se no acórdão da Relação do Porto, citando Baptista Machado, que o instituto do abuso de direito assume-se, no sistema jurídico, como uma verdadeira «válvula de segurança» e visa impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto. O ordenamento jurídico compromete-se a assegurar a confiança nas condutas e comportamentos das pessoas responsáveis ou imputáveis. E é assim que, enquanto princípio ético-jurídico fundamental, o princípio da confiança não pode deixar de ser tutelado pela ordem jurídica dando guarida e protecção à confiança legítima baseada na conduta doutrem[3].

                Os autores formularam o pedido de arranque dos portões dos topos norte e sul, estribando-se no facto de a sua colocação impedir o seu legítimo acesso às suas propriedade através de uma servidão legal de passagem constituída por usucapião. Encontrando o seu direito de passagem estruturado em normas que definem a servidão legal de passagem – artigo 1543º do CC – disciplinam o seu conteúdo – artigo 1544º do CC – e modo de constituição – artigo 1547º do CC – não encontramos, salvo o devido respeito, razões para apelidar de abusiva a defesa do seu direito de passagem.

                No contexto da factualidade provada – aposição de dois portões nos topos norte e sul da servidão de passagem[4] – só se poderia considerar, à luz do artigo 334º do CC, como uma clara e flagrante situação de abuso de direito, se a sua colocação pusesse em causa a largura da serventia, o acesso dos autores a pé, de carro e com animais à sua propriedade e se os proprietários do prédio serviente lhes tivessem fornecido as chaves dos portões para acederem à respectiva servidão e através dela ao seu terreno, o que não sucedeu.

                Nos limites factuais desenhados na acção, entendemos como legítimos a defesa dos direitos dos autores, como legítimo era o pedido de arranque dos portões, uma vez que estavam clara e objectivamente impedidos de acederem ao seu terreno.

                Assim, entendemos que o pedido formulado se contém nos limites da boa fé e na afirmação de um direito que tem consagração legal. 


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                4.2 – Direito de tapagem. Direito de propriedade. Servidão de passagem. Tutela dos direitos de personalidade.

                Insurgem-se os réus/apelantes contra o pronunciamento decisório na parte em que os condenou a retirarem os portões existentes, bem como tudo o que possa impedir a passagem de veículos e animais pela referida parcela de terreno. Sustentam a sua irresignação no facto de lhes assistir o direito de tapagem, devendo assegurar-se o direito de servidão, que reconhecem existir a favor dos apelados, com a entrega das chaves dos referidos portões.

                Vejamos se lhes assiste razão.

                Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (…) – artigo 1543º do CC. Quanto ao seu conteúdo, expressa o artigo 1544º que podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.

                Como ensinam os Srs. Prof. P. Lima e A. Varela são quatro as notas a destacar da noção genérica de servidão reportada no artigo 1543º: a servidão é um encargo; o encargo recai sobre um prédio; aproveita exclusivamente a outro prédio; prédios pertencentes a donos diferentes[5].

                Evidencia a matéria de facto provada que a servidão que onera o prédio dos réus foi constituída por usucapião – artigo 1547º do CC – o que é, de resto, admitido pelos réus/apelantes nas suas alegações, servidão que não questionam quanto ao seu conteúdo e extensão, insurgindo-se, apenas, contra a condenação de retirarem os dois portões.

                Em face do disposto no artigo 1305ºdo CC «o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas». Quanto ao direito de tapagem, o artigo 1356º do CC expressa que «a todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de qualquer modo».

                Embora onerados com servidão de passagem, os réus colocaram dois portões em ferro que mantêm fechados – facto 8 – um colocado no limite norte e outro no limite sul do terreno identificado em 14 e 15 – facto 24 – portões estes que foram colocados entre os anos de 1988 e 1993 – facto 23 – ou seja, entre o ano anterior à morte do pai dos autores e o ano de falecimento da sua mãe (documentos de folhas 15 e 16).

                Com a colocação dos portões, impedidos estão os representantes da autora de transportar animais, bens ou utensílios agrícolas de e para o prédio identificado em 2, nem podem entrar e/ou sair nem transportar bens de e para o prédio referido em 3 – facto 25.

                Em face desta realidade factual, não podia o Exmo. Juiz deixar de condenar os réus na existência de um direito de servidão de passagem a favor dos autores.

                E quanto à condenação na retirada dos portões?

                Ao lermos a contestação apresentada pelos réus/apelantes verificamos que, no plano substantivo, assentam a sua defesa em três pontos: inexistência da servidão; extinção da servidão; aquisição dos prédios encravados, sem fazerem alusão, ao menos subsidiariamente, à possibilidade de entrega das chaves como forma dos autores continuarem a aceder à servidão de passagem.

                Proferida a sentença que sabemos não ter acolhido as pretensões dos réus, mas ao invés deferido os pedidos formulados pelos autores, aqueles avançam, no âmbito das suas doutas alegações, com uma questão, – entrega das chaves dos portões aos réus – que só não consideramos “nova” e afastada do conhecimento desta Relação[6], por entendermos que no formulado pedido de retirada dos portões, sempre o Tribunal a quo podia ter condenado os réus na entrega das chaves aos autores, já que tal condenação, se continha nos limites do pedido inicial e por isso não violava o disposto no artigo 661º do CPC.

                Vejamos, pois, se a entrega das chaves introduz alguma limitação ao direito de passagem dos autores/apelados.

                A servidão deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, as quais devem ser satisfeitas com o menor prejuízo para o prédio serviente.

                Ou seja, «se a existência de servidão de passagem não retira ao dominus do prédio serviente o direito de tapagem contemplado no artigo 1356º do CC, a conciliação de interesses antagónicos dos proprietários dos prédios serviente e dominante deve ser analisada em função de cada caso concreto, ponderando-se inter alia, o tipo de construção efectivada e o conteúdo da servidão. Os interesses, do proprietário do prédio dominante que contam para o enunciado efeito, são tão só, os dignos de ponderação, os que, enfim, se prendem com a impossibilidade ou grande dificuldade do uso da servidão, não consequentemente, a pura comodidade ou meros caprichos – artigo 1568º, nº 1 do CC»[7].

                O direito de passagem dos autores/apelados pelo prédio dos réus/apelantes pode ser feito a pé, de carro e com animais que utilizavam para transportarem uvas, matos, matérias de construção e outros produtos necessários à agricultura – factos 16 e 17 – não se possa ver no direito de tapagem, levado a cabo pelos réus uma incomodidade relevante – abertura e fecho dos portões.

                Pese ser este o entendimento da maioria da Jurisprudência que conhecemos[8], a verdade é que não podemos deixar de evidenciar que, apesar da lei permitir a tapagem das zonas de entrada e de saída da servidão de passagem por cancela ou portão, mediante a entrega das chaves aos proprietários do prédio dominante, tal só é, legalmente, possível desde que se mantenha idêntica facilidade de acesso.

                Ou dito de outro modo, a colocação de portões não pode inviabilizar ou sequer criar dificuldades acrescidas aos proprietários do prédio dominante em acederem, através da dita serventia, aos seus prédios com carros ou animais.

                Diz-nos a matéria de facto provada que nos terrenos adjacentes ao prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 2.522 – facto 5 – os réus revestiram-no, em parte, com cimento e pedras de granito e colocaram dois portões em ferro que mantêm fechados – facto 8 – portões que impedem que os representantes da autora transportem animais, bens ou utensílios agrícolas de e para o prédio descrito em 2, como não podem entrar ou sair nem transportar bens de e para o prédio referido em 3 – facto 25.

                 Embora aceitemos um acréscimo de incomodidade de acesso aos seus prédios através da abertura e fecho dos portões, a verdade é que a matéria de facto nos mostra uma incomodidade espaçada no tempo – na medida em que os autores/apelados não utilizam diariamente a serventia para acederem aos seus prédios, que se encontram cheios de silvas, bichos, ratazanas e cobras, com as paredes interiores, chaminé e telhado derrocados, encontrando-se em total abandono e ruínas – facto 28. Note-se que a propriedade dos autores/apelados não é amanhada, pelo menos, desde 1993, ano em previsivelmente foram colocados os portões – facto 23 – o que é bem demonstrativo do abandono a que votaram os seus prédios, nada existindo nos autos que nos permita concluir que aquele abandono esteja directamente relacionado com a colocação dos portões, tanto mais que a presente acção só deu entrada em 15 de Julho de 2002, ou seja, no mínimo três anos depois da colocação dos mencionados portões.

                Não se discute o direito dos autores a passaram a pé, com carros e animais para as suas propriedades, até se aceita que a abertura e fecho de portões acarreta alguma incomodidade no acesso, no entanto, a sua incomodidade quando comparada com as dos réus/apelantes que habitam no prédio descrito em 5, é muito menor.

                O caso em análise é paradigmático do encargo que recai sobre o prédio dos réus/apelantes e daí a necessidade de se ponderarem os seus legítimos interesses, pese o facto, repete-se, da obrigação legal de cederem passagem, através de uma faixa de terreno, com a largura de três metros – facto 15 – existente a poente da sua propriedade – facto 14 –, a favor dos autores.

                É que a servidão de passagem deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis dos proprietários dos prédios dominantes, no entanto, a sua satisfação deve ter em conta o menor prejuízo possível para o prédio serviente. Embora os réus não o tenham alegado, com a clareza e profundidade que a situação obrigava, a verdade é que através da junção aos autos, por parte dos autores/apelados, dos documentos fotográficos de folhas 44, se percebe que a parte da serventia que onera, a poente, a propriedade dos réus/apelantes passa na frente da sua casa de habitação.

                Se bem interpretamos os factos 14 e 15, o portão colocado no topo norte da servidão de passagem bota para a Rua Dr. Manuel Belo, ficando perpendicular a esta rua. Este facto, assume, na acção, um significado que não pode deixar de ser analisado num contexto mais vasto, de modo a respeitarem-se os direitos dos proprietários do prédio dominante.

                Senão vejamos:

                O portão do lado norte, aquele que está documentado na fotografia de topo de folhas 44 e que dá para a Rua Dr. Manuel Belo tem a clara finalidade de proteger a privacidade e segurança dos moradores – artigo 70º do CC e artigos 26º, nº 1 e 27º, nº1 da CRP –, inviabilizando, desse modo, que pessoas estranhas devassem a sua vida privada ou a coloquem em perigo. É um direito seu tutelado por lei e que em nada bole com os direito dos autores/apelados em acederem aos seus prédios, desde que lhes seja facultada, como se impõe, a respectiva chave.

                O portão do lado sul – fotografia de folhas 44 – até pelo seu desenho e materiais utilizados na sua construção – rede – evidencia preocupações distintas por parte dos proprietários do prédio urbano, preocupações que estão bem patentes na matéria de facto provada.

                Na verdade, os prédios dos autores/apelados estão cheios de bichos, ratazanas e cobras que de modo algum podem integrar o conceito de «encargo» para o prédio serviente, já que uma coisa é, repete-se, o legítimo direito de passagem dos autores/apelados, outra bem diversa é os réus/apelantes terem de suportar a passagem e potencial «convívio» com daqueles bichos. Enquanto durar a situação vazada no facto 28 – os réus/apelantes têm o direito de proteger a sua saúde e segurança, colocando no topo sul da serventia um portão que evite ou impeça a mais que possível passagem daqueles animais para o seu prédio.

                Nesta colisão de direitos – de passagem dos proprietários dos prédios dominantes e de personalidade e segurança dos proprietários dos prédios servientes – artigo 335º do CC – devem estes dotar aqueles das condições técnicas – entrega de chaves – que lhes permitam aceder ao seu terreno através da servidão de passagem e devem aqueles suportar o incómodo de terem de abrir e fechar dois portões para acederem aos seus prédios.


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                Resumindo:

I. A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC – verifica-se quando o Juiz deixe de tomar posição sobre todas as causas de pedir invocadas na petição, sobre todos os pedidos formulados e mesmo sobre as excepções suscitadas ou de conhecimento oficioso, isto sem prejuízo do conhecimento de alguma delas prejudicar a apreciação das restantes (artigo 660º, nº 2 do CPC).

II. Deve sublinhar-se que a lei fala em questões, ou seja, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de direito e de facto em que as partes fundamentam as suas pretensões.

III. Encontrando o seu direito de servidão de passagem estruturado em normas que o definem – artigo 1543º do CC – disciplinam o seu conteúdo – artigo 1544º do CC – e o seu modo de constituição – artigo 1547º do CC – não encontramos razões para apelidar de abusivo o pedido de remoção de portões que obstam/impedem o exercício daquele direito.

IV. A servidão de passagem deverá satisfazer as necessidades normais e previsíveis dos proprietários dos prédios dominantes, no entanto, a sua satisfação deve ter em conta o menor prejuízo possível para os proprietários do prédio serviente.

V. No pedido de retirada dos portões, cabe a condenação dos réus na entrega das chaves, já que tal condenação, se contem nos limites do pedido inicial e por isso não viola o disposto no artigo 661º do CPC.

VI. Quando a colocação de um portão no topo de uma serventia tem por finalidade proteger a privacidade e segurança dos moradores do prédio serviente – artigo 70º do CC e artigos 26º, nº 1 e 27º, nº1 da CRP – este seu direito em nada bole com os direito de passagem que a lei concede aos proprietários do prédio dominante, desde que, para tanto, lhes seja facultada a respectiva chave.


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                Decisão

                Nos termos e com os fundamentos expostos acorda-se:

                1. Em declarar suprida a nulidade por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC.

                2. Em julgar improcedente a excepção material do abuso de direito suscitada pelos réus/apelantes na sua contestação.

                3. Em conceder provimento parcial ao recurso e consequentemente revoga-se a alínea ac) do pronunciamento decisório na parte que condenou os réus a retirarem os portões descritos nos pontos 8, 16, 23 e 25 dos factos provados.

                4. Em condenarem-se os réus/apelantes a entregarem à autora/apelada as chaves dos portões identificados em 8, 16, 23 e 25 dos factos provados, o que devem fazer no prazo de 8 dias contados a partir do trânsito em julgado deste acórdão.


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                No mais mantêm-se a decisão recorrida.

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                Custas da apelação a cargo da autora.

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                Notifique.

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                Coimbra[9], 27 de Maio de 2008


[1] Ac. STJ, datado de 4.3.2004, proferido no âmbito do processo nº 04B522, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[2] Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 92 e 93.
[3] Col. Jur. ano XXI, tomo V, pág. 227.
[4] Recorde-se por decisivo, neste contexto, que os portões foram colocados no topo norte e sul do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2.522, prédio este que é uma casa de habitação de rés-do-chão, primeiro andar, dependências e pátio.
[5] Código Civil Anotado, III, 613.
[6] Os recursos destinam-se a modificar as decisões recorridas e não a criar novas decisões sobre matéria nova, a menos que as questões a conhecer caibam no âmbito do conhecimento oficioso.
[7] Ac. STJ, datado de 8.6.2006, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Pereira da Silva, proferido no âmbito do processo nº 06B1480, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[8] Ac. RP, datado de 17.1.2005, proferido no âmbito do processo nº 0457016, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Sousa Lameira; Ac. RC, datado de 12.11.2002, proferido no âmbito do processo nº 2470/02, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Nuno Cameira; Ac. RP, datado de 19.02.2001, proferido no âmbito do processo nº 0051634, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Ribeiro de Almeida; Ac. RP, datado de 22.03.2000, proferido no âmbito do processo nº 0020081, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Lemos Jorge; Ac. RP, datado de 24.01.2000, proferido no âmbito do processo nº 9951299, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Fernandes do Vale; Ac. RP, datado de 18.02.1997proferido no âmbito do processo nº 9620882, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Mário Cruz; Ac. RP, datado de 101.11.93, proferido no âmbito do processo nº 9450460, relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador Azevedo Ramos; Ac. RP, datado de 02.10.1997, proferido no âmbito do processo nº 9820032, relatado pela Exma. Juiz Desembargadora Teresa Montenegro, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[9] Acórdão elaborado e revisto pelo relator.