Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3287/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: BORDALO LEMA
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
GREVE DOS FUNCIONÁRIOS JUDICIAIS
Data do Acordão: 02/16/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE COIMBRA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº146º DO CPC .
Sumário: I – O impedimento é justo quando não permitir a prática atempada do acto, desde que o acontecimento que obste a essa prática não seja imputável à parte ou ao seu mandatário judicial .
II – A greve de funcionários judiciais constitui um facto notório e antecipadamente conhecido dos agentes judiciais, portanto previsível, porque noticiado com antecedência.

III – Mas o encerramento do tribunal, sem prestação de cuidados mínimos, pode constituir um justo impedimento à prática de actos urgentes .

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.1.A... veio instaurar contra B... a presente acção declarativa com processo comum emergente de contrato de trabalho, em que pede que (a) se declare ilícito o seu despedimento, promovido pela Ré e, em consequência, (b) que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 2.132,00 Euros a título de indemnização e, bem assim, (c) o valor de todas as retribuições que deixou de auferir desde o trigésimo dia posterior à data do despedimento até Julho de 2002, data em que foi admitida no novo posto de trabalho; (d) a diferença entre o valor que auferia à data do despedimento (533,00 Euros) e o valor da retribuição que aufere neste momento, até à sentença; (e) a quantia de 952,88 Euros a título de trabalho suplementar e/ou nocturno; (f) o complemento de retribuição no montante de 25% da retribuição de base, por se tratar de trabalho em turnos rotativos; (f) a quantia de 637,42 Euros a título de subsídio para falhas; e (g) as quantias devidas nos termos do nº4 da clª 16ª do CCT; (h) tudo acrescido de juros e mora.
Além do mais, a A. alegou que a sua mandatária, no dia em que se dirigiu ao Tribunal do Trabalho de Coimbra - 30/01/04 - deparou-se com o referido Tribunal encerrado por virtude da greve dos funcionários judiciais, verificando-se, assim, a impossibilidade de citação prévia da Ré, não imputável à A. e que constitui fundamento de justo impedimento
Na parte final do seu articulado, requereu:
- a citação prévia da Ré, " para comparecer pessoal ou se fazer representar por mandatário judicial com poderes para confessar, desistir ou transigir em audiência de partes e para querendo contestar a presente acção no prazo e sob cominação legal"; e
-"que face à invocação do justo impedimento que impossibilitou a citação urgente prévia à distribuição da Ré, seja legitimada e ordenada a citação da Ré nos termos supra referidos no dia útil seguinte, segunda feira, dia 2 de Fevereiro de 2004, devendo essa mesma citação, a ser ordenada, interromper o prazo prescricional em causa."
A acção deu entrada em juízo em 2 de Fevereiro de 2004.

1.2. No rosto da p.i. foi lançando o seguinte despacho, com data de 04/02/2004:
"Audiência de partes no próximo dia 16/2, pelas 10,00 horas. Cite-se a R‚ através da mandatária judicial, conforme requerido e com urgência, ao abrigo do disposto nos art.ºs 146º nº1 e 3 e 478º do C. Pr. Civil e ainda, 233 nº3, 245º, 246º nº1 e 235º b), todos do mesmo Cód. Pr. Civil e 154º nºs 3 e 4 do Cód. Pr. Trab.".

1.3. A citação da Ré foi efectuada nos termos requeridos em 2 de Fevereiro de 2004.

1.4. Em 16 de Fevereiro de 2004 teve lugar a Audiência de Partes, tendo nesse acto sido notificada a R‚ para contestar a acção no prazo legal.

1.5. Na sua contestação, a Ré, além de impugnar os fundamentos da acção, veio excepcionar a prescrição dos créditos peticionados pela A., dizendo para tanto, em síntese e de relevante, que a A. pretendeu que a acção desse entrada em juízo no último dia do prazo prescricional de um ano a que alude o nº1 do art.º 38º da L.C.T., pelo que seria completamente impossível que a citação se pudesse operar nesse mesmo dia, ou seja, a 30 de Janeiro de 2004; e que, por isso, a prescrição consumou-se nesse mesmo dia; e que não se pode aceitar que tenha existido justo impedimento motivado pela greve dos funcionários judiciais, antes ocorreu incúria da A. que não propôs a acção no prazo devido de forma a que a citação da Ré pudesse efectuar-se dentro do prazo de que a A. dispunha para reclamar os seus créditos.
Concluiu pela procedência da excepção da prescrição e pela improcedência da acção, com as legais consequências.
A A. respondeu à excepção, concluindo pela sua improcedência.

1.6. Foi proferida decisão em que se decidiu julgar totalmente procedente a excepção peremptória da prescrição suscitada pela Ré, com a consequente "extinção do direito que a A. pretendia fazer valer com a presente acção."

2. Inconformada com tal decisão, a A. veio dela recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões alegatórias:
"1 - Estão verificados os requisitos que integram o conceito de justo impedimento invocado pela Recorrente:
- Dada a imprevisibilidade do evento,
- Sendo o mesmo estranho à vontade da Recorrente,
- O que determinou a impossibilidade de praticar o acto, vulgo, a citação da Recorrida,
- Ou seja, o Tribunal do Trabalho de Coimbra (tribunal competente em razão da matéria e da hierarquia) no dia 30 de Janeiro de 2004 encontrava-se encerrado devido à greve dos funcionários judiciais."
"2 - A Recorrente foi diligente, porquanto:
- Requereu a citação urgente prévia à distribuição, destinada a evitar dano irreparável e que pelas suas consequências imediatas era inadiável;
- A efectuar por mandatário judicial, um instrumento introduzido na Reforma de 1995 com vista à celeridade da prática de determinados actos, indicado e adequado no caso em apreço,
- Uma vez que se estava no último dia do prazo, não podendo requerer a interrupção da prescrição nos termos do art.º 323º nº2 do CC, visto que o processo foi remetido pelo anterior mandatário da Recorrente (que foi operado e internado de urgência) no dia 28/01/04,"
" 3 - Não ocorreu qualquer imprevisto que se relacionasse com a Recorrente ou a sua mandatária ou mesmo a Recorrida."
" 4 - A Recorrente actuou com a diligência normal, não lhe sendo exigível que entrasse em linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais como era o caso presente."
" 5 - Estando o Tribunal encerrado, a prática do acto devia ser transferida para o dia útil seguinte, isto é, o dia 2 de Fevereiro de 2004."
" 6 - Pelo que se impõe concluir que a Recorrente actuou com zelo, previdência e diligência exigíveis, "
" 7 - Devendo, atentos os factos e motivos invocados, ser considerado o justo impedimento."
" 8 - Houve violação dos Princípios constitucionais da Igualdade e da Proporcionalidade,"
" 9 - Verificando-se uma colisão entre dois direitos fundamentais, "
"10 - O direito da Recorrente indevida e ilegalmente cedeu, ou melhor, precludiu perante o direito à greve exercido pelos funcionários judiciais no termo do prazo prescricional da Recorrente."
" 11 - A não ser considerado o justo impedimento, verificar-se-á responsabilização do Estado Português nos termos do art.º 6º da CEDH por não ter assegurado os serviços mínimos para salvaguarda de actos urgentes por forma a não prejudicar o exercício dos direitos dos cidadãos como é o caso da Recorrente."
A Ré nas suas contra-alegações defendeu a confirmação da sentença impugnada.
O Exmo. Senhor Procurador-geral Adjunto da República nesta Relação emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso.
Foram corridos os vistos legais.

3. As ocorrências de facto relevantes para a apreciação e decisão do presente recurso resultam alinhadas, basicamente, na antecedente exposição esquemática da lide.

III.1. O justo impedimento à prática atempada de acto processual das partes, regido pelo princípio da preclusão constitui uma derrogação da extinção deste, a que alude o art.º 145º nº3 do Cód. Pr. Civil.
O impedimento ‚ justo quando não permitir a prática atempada do acto, desde que o acontecimento que obste a essa prática não seja imputável à parte ou ao seu representante, por via de regra, o mandatário judicial por ela constituído.
E o que decorre da letra actual do artº 146º, o qual no seu nº1 diz o seguinte:
"Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte, nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto."
A redacção do nº1 sofreu algumas modificações de redacção com a Reforma do CPC, pois anteriormente considerava-se "justo impedimento" o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte e que a impossibilitasse de praticar o acto, por si ou por mandatário.
No preâmbulo do referido diploma explicou-se a dita alteração com o propósito de "permitir uma jurisprudência criativa e uma elaboração, densificação e concretização centradas essencialmente na ideia de culpa, tudo por forma a obstar a uma excessiva rigidez que algumas decisões, com base na definição então constante da lei, revelavam."
De qualquer modo, nunca é demais atentar na verdadeira natureza do justo impedimento: o justo impedimento só se verifica quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligências normais não fariam prever.
Dito de outro modo, o que dever relevar decisivamente para a verificação do "justo impedimento" - mais do que a cabal demonstração da ocorrência de um evento totalmente imprevisível e absolutamente impeditivo da prática atempada do acto - é a inexistência de culpa de parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, a qual dever naturalmente ser valorada em consonância com o critério geral estabelecido no nº2 do art.º 487º do C. Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas.

2. A situação dos autos que impediu a prática do acto judicial (a entrega da p.i. pelo A.) é, "in casu" materializada ou concretizada pela greve dos funcionários no último dia do prazo (30 de Janeiro de 2004).
Constituir tal greve - com encerramento da secretaria do Tribunal - facto impeditivo da propositura da acção e, como tal, relevante nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 144º nº2, 145º nº4 e 146º nº1?
Anote-se que o nº3 do art.º 146º foi aditado pelo Dec. Lei nº 125/98 de 12 de Maio, em estreita conexão com os efeitos resultantes da greve dos funcionários judiciais. No termos desse dispositivo legal, " É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o nº1 constitua facto notório, nos termos do nº1 do art.º 514º e seja previsível a impossibilidade da prática do acto dentro do prazo."
"In casu", a greve dos funcionários judiciais constitui um facto notório e antecipadamente conhecido dos agentes judiciais, portanto inquestionavelmente previsível, porque amplamente noticiado com antecedência.
Todavia, como lucidamente salienta o Exmo. Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer, "já o mesmo não se poder afirmar em relação à consequência dessa greve, ou seja, em relação ao encerramento do tribunal. Em regra, no intuito de serem prevenidos ou acautelados os efeitos negativos das greves, os serviços dos tribunais devem organizar-se, em articulação e mesmo com a colaboração dos organismos sindicais, de forma a dar resposta aos casos urgentes ou a situações, como a dos autos, em que, tal como determina o nº2 do art.º 143º do Cód. Pr. Civil, se impõe dar seguimento a citações, notificações e a actos que se destinem a evitar dano irreparável. Nada disto foi feito no caso vertente, tendo-se antes avançado para o encerramento de portas sem salvaguarda dos serviços mínimos, o que a ser verdadeiro, parece constituir assim ocorrência a que a A. de todo é alheia, obstaculizadora da prática dos actos urgentes por ele reclamados do Tribunal, e que um cuidado e diligência normais não faria prever."

IV. Em face do exposto, decide-se, em provimento do recurso, revogar o douto despacho recorrido, deferindo-se o justo impedimento e ordenando-se a junção do articulado inicial, seguindo-se a adequada e subsequente tramitação processual.
Sem custas.