Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3799/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: BALDIOS
CONTRATO
COMPRA E VENDA
NULIDADE
LEGITIMIDADE PARA A SUA ARGUIÇÃO
Data do Acordão: 02/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 4º, Nº 1, DA LEI Nº 68/93, DE 4 DE SETEMBRO
Sumário: A Lei dos Baldios (Lei nº 68/93, de 4 de Setembro) penaliza com a nulidade os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento tendo por objecto terrenos baldios, determinando que os mesmos são nulos, nos termos gerais de direito (artº 4º, nº 1).
No entanto, tal nulidade não é de conhecimento oficioso, só podendo a respectiva declaração ser requerida pelo Ministério Público, por representante da administração regional ou local da área do baldio, pelos órgãos de gestão ou por qualquer comparte (nº 2), as quais têm também legitimidade para requerer a restituição de posse do baldio a favor da respectiva comunidade (nº3). Estamos perante uma invalidade mista ou atípica, em que a nulidade apenas pode ser invocada por determinadas pessoas ou entidades, estando vedado ao tribunal o seu conhecimento ex officio.
Decisão Texto Integral: 12
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A Magistrada do M.º P.º junto do Tribunal Judicial de Torres Novas (nos termos do disposto, designadamente, nos art.ºs 1.º e 4.º da Lei n.º 68/93, de 04-09, 3.º, n.º 1, al. e), e 5.º, n.º 1, al. a), estes da Lei n.º 47/86, de 15-10, na redacção dada pela Lei n.º 60/98, de 27-08), intentou, em 31/05/2001, acção declarativa, com forma ordinária, contra A... (ou só B...), C... e mulher, D..., E..., e F... e mulher, G..., pedindo que venha a:
a) - Declarar-se a nulidade do contrato de compra e venda outorgado – trata-se do contrato de compra e venda, outorgado no Cartório Notarial de Torres Novas por escritura respectiva de 12 de Março de 1998, referente ao prédio urbano composto de casa de habitação e palheiro, em ruínas, com a área coberta de cem metros quadrados, e logradouro, com 2.256 m2, sito na Rua dos Moinhos, no lugar da Charruada, freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a confrontar do norte, sul e poente com terreno do domínio público e do nascente com serventia, omisso no registo e inscrito na matriz urbana sob o art.º 2.862.º – na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro;
b) - Declarar-se que o réu Sérgio não adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz urbana sob o art.º 2.862.º;
c) – Ser pedido à Conservatória do Registo Predial de Torres Novas o cancelamento do registo do referido prédio, nos termos do art.º 8.º do Código de Registo Predial;
d) – Ser restituída à comunidade de Chancelaria a posse do referido terreno.

Para tanto, alegou, em síntese, que:
- No dia 12/03/1998, no Cartório Notarial de Torres Novas, foi lavrada escritura pública de compra e venda, em que os réus A..., C... e mulher, E..., figuram como vendedores e o réu F... como comprador, relativamente ao prédio urbano composto de casa de habitação e palheiro, em ruínas, com a área coberta de cem metros quadrados, e logradouro, com 2.256 m2, sito na Rua dos Moinhos, no lugar da Charruada, freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a confrontar do norte, sul e poente com terreno do domínio público e do nascente com serventia, omisso no registo e inscrito na matriz urbana sob o art.º 2.862.º;
- Em tal escritura declararam os réus vendedores que o referido prédio veio à sua posse por herança aberta por óbito de seu marido e pai, respectivamente, António Agostinho, falecido a 03 de Janeiro de 1997;
- E fizeram constar dessa escritura que, à data da respectiva elaboração, o dito prédio se encontrava omisso na Conservatório do Registo Predial;
- Munido dessa escritura, requereu o réu Sérgio, e logrou proceder, o registo do dito prédio a seu favor (registo de 18/03/1998, com o n.º 03076, na Conservatório do Registo Predial de Torres Novas);
- A casa de habitação e o palheiro aludidos na dita escritura vieram a ser demolidos posteriormente pelo réu Sérgio, encontrando-se as respectivas pedras amontoadas no local;
- Em 15/09/1998, o réu Sérgio requereu à Câmara Municipal de Torres Novas o licenciamento de uma obra a construir próximo do local onde anteriormente se situavam a casa de habitação e palheiro;
- Obra essa que visa servir de unidade de apoio aos Moinhos da Pena;
- Sendo que o respectivo projecto foi licenciado por alvará de licença de construção;
- O prédio em causa está afecto à utilização da freguesia de Chancelaria, para dele retirar as utilidades comunitárias que entenda, situando-se na aludida freguesia, no sítio dos Moinhos da Pena, localidade da Pena;
- Desde tempos imemoriais, a comunidade local utilizava o terreno em causa, nomeadamente para exploração cinegética, a título gratuito, com a convicção de que o mesmo lhe pertencia, sem oposição de quem quer que fosse e à vista de toda a gente;

- Integrando terreno do “Baldio de Serra D’ Aire”, inscrito na matriz com o n.º 0001 da secção AAA 16 da freguesia de Chancelaria;
- E, como tal, do domínio público e insusceptível de apropriação ou apossamento por particulares, inalienável e imprescritível;
- Tendo ocorrido demolição dos edifícios, deixou o terreno onde os mesmos se encontravam implantados de pertencer ao R. Sérgio;
- Sendo gerido por uma comissão local de compartes que, em 25 de Março de 2000, delegou na Junta de Freguesia de Chancelaria a respectiva gestão;
- O dito logradouro está em terreno baldio, pelo que a respectiva venda é nula.
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Apenas contestaram os réus F... e mulher, excepcionando a ilegitimidade activa na acção, defendendo que o prédio em causa se situa na área da freguesia de Assentiz, pelo que a freguesia de Chancelaria não tem legitimidade para requerer a intervenção do M.º P.º.
Por impugnação, alegam que os réus têm a posse do dito prédio (edifícios e logradouro), por si e antecessores, desde há cerca de 50 anos até ao presente, posse essa em termos de direito de propriedade, pacifica, pública e ininterrupta, sendo que o prédio foi doado, verbalmente, no passado, pela Junta de freguesia de Assentiz, a antecessores do réu Sérgio para ali construírem a sua casa de habitação, ocorrendo aquisição do direito de propriedade por usucapião a favor dos réus. O réu Sérgio e cônjuge adquiriram por escritura pública de compra e venda, após o que reconstruíram o imóvel, com licença camarária para o efeito, não tendo ocorrido demolição;
Concluem pela procedência da excepção de ilegitimidade invocada e pela improcedência da acção.
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O A. replicou, apresentando razões para concluir pela total improcedência da matéria de excepção apresentada pelos réus.
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Procedeu-se à realização da audiência preliminar e foi então proferido despacho saneador, vindo a afirmar-se a verificação dos pressupostos de validade e regularidades da instância (designadamente em sede de legitimidade processual, termos

em que se julgou improcedente a deduzida excepção de ilegitimidade activa).
Procedeu-se depois à elaboração do elenco dos factos assentes e à feitura da base instrutória, de que não veio a ser apresentada qualquer reclamação.

Teve, depois, lugar a audiência de julgamento, com gravação da prova, e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção procedente.

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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:

Factos Assentes

A) – No dia 12/03/1998, no Cartório Notarial de Torres Novas, foi lavrada, a fls. 11, do livro 267, escritura pública de compra e venda do prédio urbano, composto de casa de habitação e palheiro, em ruínas, com a área coberta de cem metros quadrados, e logradouro, com 2.256 m2, sito na Rua dos Moinhos, no lugar da Charruada, freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a confrontar do norte, sul e poente com terreno do domínio público e do nascente com serventia, inscrito na matriz urbana sob o art.º 2.862.º;
B) – Como outorgantes na referida escritura intervieram os réus A..., C... e mulher, e E..., na qualidade de vendedores, e o réu F..., na qualidade de comp
C) – Na escritura referida em A), declararam os réus vendedores que o referido prédio veio parar à sua posse por virtude de herança aberta por óbito de seu marido e pai, respectivamente, António Agostinho, falecido a 03 de Janeiro de 1997;
D) – Através de escritura pública de habilitação lavrada no dia 12/03/1998, a fls. 9, do livro 267, do Cartório Notarial de Torres Novas, os réus A..., C... e mulher, e E..., foram declarados meeira e únicos herdeiros daquele António Agostinho;
E) – Na escritura de compra e venda referida em A) fez-se constar ainda que, na data em que a mesma foi lavrada, o prédio mencionado em A) se

encontrava omisso na Conservatória do Registo Predial;
F) – O prédio referido em A) foi descrito na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas sob o n.º 3.076, da freguesia de Assentiz, incidindo sobre o mesmo uma inscrição de aquisição a favor do réu F..., casado com a ré G..., sob o regime de comunhão de adquiridos, com o n.º G-1, por compra aos réus A..., C... e mulher, e E...;
G) – O réu F... levou a efeito uma obra no prédio referido em A), tendo o respectivo projecto apresentado sido licenciado pelo alvará de licença de construção n.º 349/2000, a 26 de Outubro de 2000;
H) – Consta da acta n.º 2, referente à reunião da comissão dos compartes com 21 presenças, realizada em 25-03-2000, que foi aprovada por unanimidade uma proposta apresentada à Assembleia e consistente em “Delegar na Junta de Freguesia de Chancelaria os poderes de administração dos terrenos baldios na área desta freguesia, referente a todas as modalidades de aproveitamento, incluindo a exploração cinegética, a título gratuito por um período de 10 anos”.

Base Instrutória
1º e 2º – A casa e palheiro que faziam parte do prédio referido em A) vieram a ser demolidos, posteriormente à outorga da escritura aludida em A), pelo R. F...., que ali procedeu a reconstrução, edificando uma nova casa.
3º – No dia 15 de Setembro de 1998, o R. Sérgio requereu à Câmara Municipal de Torres Novas o licenciamento de uma obra a construir no local onde anteriormente se situavam a casa de habitação e palheiro do prédio referido em A).
4º – A obra referida na resposta ao quesito 3.º destina-se a servir de unidade de apoio aos Moinhos da Pena.
5º – O prédio adquirido pelo R. Sérgio, e referido em A), esteve no passado afecto à utilização da freguesia de Assentiz, para dele as populações locais retirarem as utilidades comunitárias que entendessem por convenientes e necessárias.

6º e 12º – O prédio referido em A) localiza-se na área da freguesia de Assentiz e situa-se junto ao sítio dos Moinhos da Pena, arredores da localidade da Pena.
7º – Desde tempos imemoriais, e até 1950, a comunidade local utilizou o referido terreno nesses termos e com a convicção de que o mesmo fazia parte de baldio existente no local.
8º – Nomeadamente para exploração cinegética, a título gratuito.
9º – Tal utilização sucedeu à vista de todos os que por lá passassem.
10º – E sem a oposição de ninguém.
11º – O terreno do prédio referido em A) integrava-se no que tem a designação de Baldio da Serra D’ Aire, baldio este que, por sua vez, na sua parte situada na área da freguesia de Chancelaria, se encontra inscrito na matriz sob o art.º 1, da secção AAA 16, da freguesia de Chancelaria.
13º – Os RR. A..., C... e E..., por si e pelos seus ascendentes, ocuparam a terra onde se situa o prédio referido em A), percorrendo-a de extrema a extrema.
14º – Amanhando-a e cultivando-a.
15º – Avivando os seus limites.
16º – Cuidando das árvores, limpando-as e colhendo os seus respectivos frutos.
17º – Cultivando a horta.
18º – As actividades referidas nas respostas aos quesitos 13.º a 17.º foram realizadas pelos réus e pelos seus ascendentes desde 1950 até 12 de Março de 1998, data em que declararam vender o prédio ao réu F..., convictos de que estavam a exercer o seu próprio direito.
19º – Posteriormente, desde a data da escritura pública referida em A), que o réu Sérgio se encontra convicto que está a exercer o seu próprio direito.
20º – O prédio referido em A) foi transmitido gratuita e verbalmente a António Agostinho, mencionado em C), pela Junta de Freguesia de Assentiz, para aí construir a sua casa de habitação.
21º – Os réus aludidos sempre realizaram os actos referidos nas respostas aos quesitos 13.º a 18.º sobre o prédio mencionado em A) à vista de toda a

gente e de quaisquer interessados.
22º – Contínua e reiteradamente, e sem qualquer interrupção durante cerca de 50 anos.
23º – Os réus A..., C... e E... e seu cônjuge e ascendentes, respectivamente, pagaram impostos referentes ao prédio referido em A).
24º – Assim como o réu Sérgio e seu cônjuge o fazem.
25º – Após a aquisição do prédio referido em A), o réu Sérgio reconstruiu o mesmo com licença camarária para tal.

Prova Documental Junta
– A inscrição de aquisição (G-1) a favor do réu F..., aludida supra em F) dos Factos Assentes, foi efectuada em termos provisórios por natureza, tendo caducado com data de 090401 – cfr. documento / certidão junto a fls. 17 a 19, 92 e 93.

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Inconformados com a decisão, interpuseram os réus Sérgio e mulher recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- O Mmº Juiz “a quo” decidiu que os ora recorrentes deveriam de ser condenados a restituir o logradouro à freguesia de Assentiz, pois na área desta freguesia se situa o logradouro.
2- A freguesia a quem o recorrente Sérgio foi condenado a restituir o logradouro não é sujeito processual. Nem,
3- Na acção foi pedido a restituição à freguesia de Assentiz, mas a outra freguesia, a de Chancelaria.
4- Atento o princípio da estabilidade da instância, esta deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.
5- Ao longo da sentença ficou provado que o que se teria que restituir à freguesia de Assentiz seria somente “…designadamente na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro…” sic.
6- Atento o teor das certidões matriciais e prediais juntas aos autos, a casa e o palheiro, encontram-se juntamente com o logradouro inscritos na matriz predial sob o artº 2.862º da freguesia de Assentiz e descrito na Conservatória do registo predial de Torres Novas

com o nº 3076 da identificada freguesia. No entanto,
7- O Sr. Juiz do Tribunal “a quo” retirou aos recorrentes o direito de propriedade e posse que detém sobre a casa. Sendo certo que,
8- A área respeitante à casa e ao palheiro, para além de não constar do pedido, ficou provado que a sua propriedade é dos ora recorrentes.
9- Está o Mmº Juiz incorrer no erro de retirar a posse e a propriedade da casa e do palheiro aos ora recorrentes, condenando os ora recorrentes, para além do que ficou provado, na própria sentença, e para além do que foi efectivamente pedido.
10- Podendo no entanto, salvaguardar a propriedade dos ora recorrentes, condenando apenas na rectificação do título, retirado somente a área respeitante ao logradouro, mantendo a escritura e respectivo registo, na parte referente à área da casa e palheiro.
11- Foi requerida a aclaração da sentença, tendo o Mmº Juiz “a quo” mantido todo o seu conteúdo, com clara violação, do dever prescrito no artº 666º, nº 2, do Código Proc. Civil.
12- Os ora recorrentes estão a ser condenados para além do pedido, com uma clara violação do princípio da estabilidade da instância, da imparcialidade, igualdade e do dispositivo. Pois,
13- O despacho proferido pelo Sr. Juiz a folhas, configura pelo respectivo conteúdo uma substancial modificação da instância, nomeadamente, a causa de pedir e os pedidos formulados pelo autor
Conclui-se que,
14- A sentença sob recurso viola entre outros o disposto nos artºs 3º, nº 1, 3º A, 264º, nºs 1 a 3, 268º, 273º e 667º, nºs 1 a 3, do Cód. Proc. Civil, sendo nulo, atento o disposto no artº 201º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.
15- Por conseguinte o Sr. Juiz fundou a decisão com base em factos não alegados, proferindo decisão condenatória em objecto diferente do pedido, a favor de sujeito que não interveio na acção como parte processual, pelo que a decisão sob recurso é nula, por violação do disposto nos artºs 264º, nºs 1 e 2, 661º, nº 1 e 668º, nº 1, als. b), c) e e) do CPC.
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O Mº Pº contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Como é sabido o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados em menção de proveniência).

Alegam os recorrentes que a freguesia a quem o recorrente Sérgio foi condenado a restituir o logradouro não é sujeito processual nem na acção foi pedida a restituição à freguesia de Assentiz, mas à de Chancelaria, pelo que foram os recorrentes condenados para além do pedido, sendo, por isso, a decisão nula.
Mis alegam que o Sr. Juiz fundou a decisão com base em factos não alegados, proferindo decisão condenatória em objecto diferente do pedido, a favor de sujeito que não interveio na acção como parte processual, pelo que a decisão sob recurso é nula, por violação do disposto nos artºs 264º, nºs 1 e 2, 661º, nº 1,e 668º, nº 1, als. b), c) e e), do Código Proc. Civil.
E isto seria assim, também, porque ao longo da sentença ficou provado que o que se teria que restituir à freguesia de Assentiz seria somente na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro, pelo que a área respeitante à casa e ao palheiro, para além de não constar do pedido, ficou provado que a sua propriedade é dos ora recorrentes, estando, assim, o Mmº Juiz a incorrer no erro de retirar a posse e a propriedade da casa e do palheiro aos ora recorrentes, condenando-os, para além do que ficou provado na própria sentença e para além do que foi efectivamente pedido.

Aquele artº 668º dispõe, no seu nº 1 (na parte que aqui interessa), que é nula a sentença:
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
e) Quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.


Em relação à nulidade prevista na al. b) a lei exige que a sentença contenha a descriminação dos factos que se considerem provados (artº 659º, nº 2) e que indique, interprete e aplique as normas jurídicas correspondentes.
No entanto, é doutrina e jurisprudência praticamente uniforme que só a falta absoluta de motivação de uma decisão (e não a sua insuficiência, deficiência ou laconismo) tem a virtualidade de desencadear a sanção desta nulidade (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140, e Prof. Antunes Varela, e (outros), Manual de Processo Civil, pág. 687, e, entre outros, Acs. do S.T.J. de 03/07/1973, de 05/01/1985, de 01/03/1990 e de 22/01/1998, da R.P. de 08/07/1982, da R.L. de 17/01/1991 e da R.C. de 14/04/1993, in, respectivamente, BMJ 229º-155, 333º-398, 395º-479, 473º-427, 319º-343, CJ, T1-121, e BMJ 426º-541)
No presente caso, não ocorre a nulidade em questão, uma vez que a sentença está fundamentada, quer de facto quer de direito, visto que o Sr. Juiz discriminou os factos que considerou provados e indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes.

No que diz respeito à nulidade prevista na al. c), ela ocorre quando a fundamentação aponte num sentido e esta siga caminho oposto ou, pelo menos, diferente, isto é, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto, como seria o caso , por exemplo, de os fundamentos apontarem no sentido da procedência do pedido e, depois, julgar-se este improcedente, ou vice-versa (crf. Acs. do S.T.J. de 09/12/1993, de 26/04/1995, de 13/02/1997 e de 22/01/1998, in, respectivamente, BMJ 432º-342, CJ, Ano III, T2-57, BMJ 464º-525 e 473º-427, e Prof. Alberto dos Reis, Ob. cit., pág. 141).
Só ocorre, pois, tal nulidade quando existe um vício real no raciocínio do julgador. Este retira das premissas (fundamentos) uma conclusão (decisão) diversa do que a que a lógica impõe.
Ora, isso, não acontece no presente caso, uma vez que o Sr. Juiz, entendendo que os réus não adquiriram o direito de propriedade do prédio em questão por via da usucapião, tendo de se considerar terreno baldio e imprescritível e inalienável face ao quadro legal vigente, não podendo deixar de implicar a nulidade da escritura pública de compra e venda, por a mesma ter por objecto terreno baldio, decidindo em conformidade.

Quanto à nulidade prevista na al. e) – parte final (única enquadrável na invocação dos recorrentes), ela ocorre quando o juiz, condenando em objecto diverso do pedido, excede o limite imposto por lei (artº 661º, nº 1) ao seu poder de condenar, com infracção do princípio dispositivo que assegura à parte circunscrever o thema decidendum (cfr. Cons. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 3ª ed., pág. 195).
À primeira vista, e analisando o pedido formulado pelo autor, conjugado com o que vem alegado na petição inicial, parece que seria de concluir que a sentença condenou os réus em objecto diverso do pedido, na parte em que condenou na restituição do logradouro à Comunidade da Freguesia de Assentiz.
Com efeito, o autor alegou, na p.i., que o prédio adquirido pelo réu Sérgio está afecto à utilização da freguesia da Chancelaria, situando-se o mesmo na aludida freguesia, tratando-se de um terreno baldio, terminando por pedir que fosse restituída à Comunidade de Chancelaria a posse do referido terreno.
Entretanto, deu-se como provado que o referido prédio se localiza na área da freguesia de Assentiz (resposta aos quesitos 6º e 12º da B.I.).
Por isso, ou seja, por se situar na área desta freguesia, e não na de Chancelaria, ordenou-se, na sentença, a sua restituição à Comunidade da freguesia de Assentiz.
O Mº Pº tem legitimidade para requerer a restituição da posse do baldio a favor da comunidade ou entidade que legitimamente o explore, de acordo com o nº 3 do artº 4º da Lei nº 68/93, de 4 de Setembro (conhecida como “Lei dos Baldios”).
Se se tratasse de uma simples acção de restituição de posse, a condenação nos termos em que teve lugar, implicaria, sem dúvida, a nulidade da sentença, por condenação em objecto diverso do pedido, nos termos do disposto na referida al. e) do nº 1 do artº 668º.
No entanto, a restituição do terreno à Comunidade da freguesia de Assentiz teve lugar por força do disposto no nº 1 do artº 289º do Código Civil, como resulta expressamente da al. A) da decisão recorrida, conforme transcrição que se segue:
“(…) julga-se a acção procedente, por provada:
A) – Assim se declarando a nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelos RR., através de escritura pública outorgada por eles em 12 de Março de 1998 no Cartório Notarial de Torres Novas, e aludido supra em II-, A)- e B)-,

designadamente na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro, com a consequente restituição à Comunidade da Freguesia de Assentiz, pois que na área territorial da Freguesia de Assentiz se situa”.
Ora, declarada a nulidade do negócio, os seus efeitos produzem-se ope legis, como se vê do já aludido nº 1 do artº 289º do Código Civil, segundo o qual deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, havendo lugar à repristinação das coisas no estado anterior ao negócio.
Por isso, situando-se o referido logradouro na área da freguesia de Assentiz, é à comunidade desta que o mesmo deve ser restituído, independentemente de o pedido não ter sido nesse sentido.
Até porque o Ministério Público, ao propor a presente acção, tinha legitimidade para requerer a declaração de nulidade do contrato de compra e venda independentemente da localização do terreno baldio, conforme resulta do artº 4º, nº 2, da Lei nº 68/93.
Conclui-se, portanto, pela inexistência da nulidade invocada, prevista na al. e) do nº 1 do artº 668º, no que diz respeito à condenação da restituição do terreno à Comunidade da freguesia de Assentiz.

O mesmo já não se pode dizer da declaração da nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelos réus, abrangendo tal nulidade a totalidade do prédio objecto desse contrato e, portanto, também as construções, e não apenas, como pretendem os recorrentes, o logradouro.
É que o autor pediu, na p.i., a declaração da nulidade do contrato de compra e venda outorgado apenas na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro, sendo certo que o prédio em questão tinha também, além desse logradouro, uma casa e um palheiro (cfr. al. A) dos Factos Assentes).
A Lei dos Baldios (Lei nº 68/93), aplicável ao presente caso, penaliza com a nulidade os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento tendo por objecto terrenos baldios, determinando que os mesmos são nulos, nos termos gerais de direito (nº 1 do artº 4º).
No entanto, tal nulidade não é de conhecimento oficioso, só podendo a respectiva declaração ser requerida pelo Ministério Público, por representante da administração regional ou local da área do baldio, pelos órgãos de gestão ou por

qualquer comparte (nº 2 do mesmo artigo), as quais têm também legitimidade para requerer a restituição de posse do baldio a favor da respectiva comunidade (nº 3).
Estamos perante uma invalidade mista ou atípica, em que a nulidade apenas pode ser invocada por determinadas pessoas ou entidades, estando vedado ao tribunal o seu conhecimento ex officio (v. Profs. Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, pág. 358, e Pais de Vasconcelos, Teoria Geral de Direito Civil, vol. II, pág. 101).
Por isso, não podia o Mmº Juiz declarar, na sentença, a nulidade de todo o contrato de compra e venda, mas apenas, como foi pedido, da parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro.
Ao fazê-lo, cometeu, nessa medida, a nulidade prevista na aludida al. e) do nº 1 do artº 668º, por ter condenado ultra petita.

Compete a este Tribunal definir a solução correcta, à luz do nº 1 do artº 715º e que é a que já transparece do que se acabou de expor: a declaração de nulidade apenas abrange o contrato de compra e venda celebrado pelos réus através da escritura pública outorgada em 12/03/1998, no Cartório Notarial de Torres Novas, na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo, em conformidade com esta decisão.
Em consonância com a mesma, também o pedido de que seja declarado que o réu F... não adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artº 2862º, apenas procede em relação ao logradouro desse prédio e não à totalidade do mesmo.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em, dando parcial provimento ao recurso, julgar a acção parcialmente procedente, na medida do atrás exposto, e:
A) - Declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado pelos réus, através da escritura pública outorgada por eles, em 12 de Março de 1998, no Cartório Notarial de Torres Novas, e aludido nas als. A) e B) dos Factos Assentes, na parte referente à alienação da área respeitante ao logradouro, com a sua consequente restituição à Comunidade da Freguesia de Assentiz;


B) - Declarar, em consequência, que o réu F... não adquiriu o direito de propriedade sobre o logradouro do prédio inscrito na matriz sob o artº 2862;
C) - Ordenar o cancelamento do respectivo registo na Conservatória do Registo Predial de Torres Novas, com a restrição apontada em A) relativamente à área.

Custas, nesta e na 1ª Instância, na proporção de metade, não as pagando o autor por delas estar isento (artº 2º, nº 1, al. a), do C. C. Jud).