Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
838/05.2TBPCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: JUROS DE MORA
TAXA DE JUROS
CONSUMIDOR
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 559º DO CC, 102º DO CCOM, 12º E 13º DA CRP, DL 32/03,17-02
Sumário: I. Tendo um Município adquirido em 28-04-04 mercadorias a uma empresa, aquele não se deve considerar consumidor para os efeitos da exclusão estatuída no art. 2º nº1 al. a) do DL 32/03.

II. Em mora quanto ao pagamento do preço, o Município deve pagar os juros comerciais e não juros civis, independentemente da natureza, forma ou designação da transacção.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE:

I- Relatório:
A...”, instaurou aos 27-10-2005 procedimento especial de injunção contra o MUNICÍPIO DE B..., exigindo o cumprimento de obrigação emergente de transacção comercial, para pagamento da quantia de € 52 225,72 (como correspondente à soma do preço de € 45.205.96, nele incluído o IVA que só vem discriminado em doc., e de € 6 752,76 de juros de mora vencidos desde 28-4-2004 até àquela data às taxas sucessivas de 12%, 9,01% e 9,09%), bem como os vincendos e a taxa de justiça de € 267 que pagou.
Juntou cópias do “contrato de fornecimento de equipamento de musculação e actividades de ginásio para a piscina municipal” (datado de 28-4-2004) e de factura datada de 11-5-2004.
Citado, o Município deduziu oposição, discordando das taxas de juros indicadas pela requerente, por entender que, enquanto consumidor final e não comerciante, lhe são aplicáveis os juros de mora legais previstos no art. 559º do Código Civil (4%), em virtude do disposto no art. 2º, nº2 al. a), do DL nº 32/03 de 17-2 e conforme entendimento do acórdão do TRP de 24-01-2005 (Pº 6609/04-5ª sec.). Acrescentou que os juros terão de liquidar-se a partir da data de vencimento de cada uma das prestações em falta.
A A. apresentou réplica (!), juntando a fl. 39 o papel em que demonstra o cálculo dos juros que liquidou.
Foi proferido saneador tabelar e na mesma peça proferida sentença que, julgando a acção procedente, de mérito decidiu:
«I. Condenar o réu a pagar à autora a quantia de € 45.205,96 (quarenta e cinco mil duzentos e cinco euros e noventa e seis cêntimos), para pagamento do preço devido pelo contrato de fornecimento outorgado entre ambos, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 12%, que se venceram desde as datas de vencimento das prestações até 30 de Setembro de 2004; dos juros de mora compreendidos entre 1 de Outubro de 2004 a 31 de Dezembro de 2004, à taxa de 9,01%, e dos vencidos desde 1 de Janeiro de 2005 à taxa legal de 9,09%;
«II. Condenar o réu a pagar à autora os juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento».
Da sentença recorre o Município de B..., pretendendo a aplicação da taxa de juros civis, para o que a sua alegação conclui:
a) O Tribunal “a quo” proferiu sentença na qual, além do mais, condenou o Município de B... ao pagamento de juros comerciais.
b) A Dinamic, ora Recorrida, é uma sociedade comercial e, por isso, adquire a qualidade de comerciante, ao contrário do ora Recorrente que jamais poderá adquirir tal qualidade, em conformidade com o artigo 17º do Código Comercial.
c) Em conformidade com o artigo 464º do Código Comercial, a compra e venda “sub judice” é não comercial, ou seja, é uma compra e venda civil, pois fora estabelecida entre uma comerciante (a sociedade comercial) e um consumidor (o Município).
d) Os juros comerciais, resultantes da conjugação do artigo 102º do Código Comercial com as Portarias e os Avisos da DGT entretanto vigentes, apenas são aplicáveis às relações comerciais firmadas entre comerciantes e relativamente a contratos comerciais.
e) Tal posição foi reforçada pela entrada em vigor do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/2, pois a sua alínea a) do nº 1 do artigo 2º, exclui do seu âmbito de aplicação as “transacções comerciais” estabelecidas entre “empresas” e “consumidores”.
f) Logo, não é aplicável o artigo 4º do mesmo diploma legal e, por conseguinte não são aplicáveis os juros comerciais previstos no artigo 102º do Código Comercial.
g) Com efeito, os juros que se aplicarão ao caso “sub judice”, não poderão deixar de ser os juros legais previstos no artigo 559º do Código Civil, conjugados com a Portaria nº 291/2003, de 8/4 (fixou os juros em 4%).
h) E uma interpretação que permita aplicar ao consumidor final juros comerciais, mesmo que seja uma pessoa colectiva, não pode deixar de postergar os artigos 12º e 13º da Constituição da República.
i) E os Tribunais de 1ª Instância estão obrigados, por força do artigo 8º do Código Civil, a seguir as orientações perfilhadas pelos Tribunais Superiores, como é o caso do Aresto do Superior Tribunal da Relação do Porto de 24/01/2005, tirado no Proc. Nº 6609/04-5, da 5ª Secção Cível, dado que este julgou pela aplicação de taxas de juros não comerciais a transacções estabelecidas com o ora Recorrente.
j) No fundo, a decisão posta em crise violou os artigos 13, 14º, 17º, 102º, 463º e 464º, todos do Código Comercial, a alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, os artigos 559º e nº 3 do artigo 8º, ambos do Código Civil e os artigos 12º e 13º da Lei Fundamental.
A apelada contra-alegou, a favor da confirmação da decisão impugnada.
Mediante solicitação, foi junta a fls. 113 ss uma cópia do referido douto acórdão do TRP.
Correram os vistos legais e nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II- Fundamentos:
São factos provados (art. 712º nº1 al. a) do CPC):
I. A A. e o réu celebraram, em 28 de Abril de 2004, um contrato escrito tendo por objecto o fornecimento, pela primeira ao segundo, de equipamento de musculação e actividades de ginásio para a piscina municipal (vd. fl. 2 a 5).
II. Na cláusula 4ª desse contrato convencionaram, sobre “preço e condições de pagamento”: «1- O encargo total do presente contrato é de 45 205,96 Euros, sendo 37 988,20 Euros referentes ao valor do fornecimento dos bens e 7 217,76 Euros relativos ao valor do IVA. 2- O pagamento do encargo previsto no nº anterior será efectuado em 5 prestações mensais iguais e sucessivas».
III. A autora entregou ao réu os bens constantes da factura nº 120/04 que emitiu, com cópia junta a fls. 6 e 7, datada de 11-05-2004, na qual também constam os montantes referidos em II e que “ os artigos facturados foram colocados à disposição do adquirente na data desta factura”.
IV. O réu não pagou a referida quantia de 45 205,96 Euros nos prazos fixados no contrato e a factura nº 120/04 encontra-se por pagar.

De Direito:
Perante as conclusões da alegação, as questões essenciais a resolver são as seguintes:
1ª- A de saber se a decisão impugnada violou ou não o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de Fevereiro, ou seja: o réu Município deve ou não considerar-se como sendo consumidor para os efeitos da exclusão estatuída nesse preceito perante o ajuizado contrato por ele incumprido, de modo que, sendo-o, se não devam aplicar os juros comerciais que esse diploma manda aplicar às transacções comerciais ali definidas e antes se devam aplicar os juros civis?
2ª- A de saber se, na interpretação normativa seguida, há ou não violação do disposto nos artigos 12º e 13º da Lei Fundamental.

1. Previamente há que tecer breves considerações de enquadramento.
A)- Analisando o DL nº 32/03 citado, não se pode concordar com a posição do apelante segundo a qual «os juros comerciais (…) apenas são aplicáveis às relações comerciais firmadas entre comerciantes e relativamente a contratos comerciais (se entendermos como tais tão só os actos comerciais na acepção do art. 2º do Código Comercial antes da dimanação daquele DL) e que tal posição foi reforçada pela entrada em vigor do Decreto-Lei nº 32/2003, de 17/2» (v. conclusões d) e e)).
O DL 32/03 (doravante apenas DL) estabelece um regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais, tal como esse diploma as define, em transposição da Directiva nº 2000/35/CE, e altera o art. 102º do Código Comercial (C. Com.) e o regime do procedimento de injunção.
Com a nova redacção dada ao art. 102º do C. Com. pelo DL 32/03, os juros comerciais aplicam-se não só aos actos comerciais definidos no art. 2º desse Código como o apelante parece defender, mas também aos pagamentos por “transacções comerciais” no âmbito e nos termos definidos pelos art. 2º e 3º desse novo diploma que, transpondo a Directiva para a ordem interna, ampliou o anterior âmbito de aplicação dos juros comerciais. Não há manutenção do anterior âmbito, mas uma ampliação, como aliás o § 4º do relatório do DL o confirma. A inexistir tal ampliação, resultava inútil e injustificado o disposto no art. 4º, nº1, do DL, segundo o qual «os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções previstas no presente diploma são os estabelecidos no Código Comercial».

B)- Convém que se tenham em atenção as circunstâncias (contexto externo) em que surgem a Directiva e o DL e qual a “ratio legis”. Sucintamente:
Em geral, mas sobretudo em economias débeis e fortemente dependentes como a portuguesa e onde predominam as PME, um dos sérios entraves à normal actividade económica das empresas reside nos atrasos dos pagamentos dos seus créditos. A proliferação desses atrasos em países como Portugal é uma pecha tradicional. Gera-se um efeito dominó ou de bola de neve: não solvidos os créditos, a empresa credora atrasa por sua vez os seus pagamentos e assim sucessivamente; aquela empresa, porventura já em dificuldades financeiras ou económicas, provoca por sua vez dificuldades nas outras empresas suas credoras. Causadoras desses atrasos não são porém apenas as empresas, pois é consabido que amiúde a própria Administração Pública, Central ou Local, enfim as entidades públicas em geral, são taxadas de más pagadoras, ou seja, pagam mas pagam “tarde e a más horas”, logo contribuindo para a dificuldade económica das empresas credoras.
Tais atrasos, quer imputáveis a empresas, quer imputáveis a entidades públicas, constituem—reconhece-o o legislador no relatório do DL—“uma das principais causas de insolvência dessas empresas”. Daí que o legislador tenha tentado atalhar o problema, através de medidas fortemente dissuasoras dos funestos atrasos e medidas compensatórias para os lesados, designadamente:
- sujeitando as transacções comerciais, que o DL define, a taxas de juros agravadas, sem prejuízo de indemnização complementar (art. 4º, nº1 e nº3, e 6º) ( Afigura-se-nos que para o DL transacções comerciais são contratos de fornecimento de mercadorias ou de prestação de serviços mediante remuneração, seja qual for a natureza, forma ou designação desses contratos, mas com restrição às espécies de sujeitos outorgantes, referidas no art. 3º al. a), e com as exclusões do nº2 do art. 2º). Evidentemente, os fornecimentos em geral podem ocorrer mediante vários tipos contratuais possíveis: compra e venda, leasing, etc (cf. Pedro R. Martinez, Dir. das Obrig.- Contratos…, 2003, p. 26, 49, 54, 62, 69, 335 e 336 e notas aí contidas). );
- englobando no âmbito subjectivo dessas transacções comerciais não só as empresas como também as entidades públicas (art. 3º al. a));
- definindo com rigor a verificação “automática” da mora (art. 4º nº2);
- estendendo a providência da injunção a qualquer montante da dívida (art. 7º do DL nº 269/98 na redacção dada pelo art. 8º do DL nº 32/03).

C)- O DL contempla, no discurso do seu articulado, três tipos de entes ou entidades susceptíveis de intervir como sujeitos nas relações jurídico-económicas, qualificadas como comerciais: empresas, entidades públicas e consumidores. Aparentemente esses três tipos esgotam o universo dos possíveis sujeitos de tais relações, embora seja claro que as entidades públicas e os consumidores apenas poderão figurar como adquirentes dos bens ou serviços objecto das transacções comerciais, portanto eventuais devedores dos preços respectivos. O DL discrimina as entidades públicas para as incluir na definição das transacções comerciais a que o diploma se aplica (arts. 3º al. a) e 2º nº1) e discrimina os consumidores para os excluir da aplicação do diploma (art. 2º, nº2 al. a)). Logo, a lei quis excluir os consumidores das medidas gravosas (gravosas para os devedores), nomeadamente da sujeição aos juros comerciais que implementou através do DL, juros esses muito mais elevados que os civis.
É de entender como razoável essa exclusão dos consumidores enquanto pessoas singulares, porque estes, destinatários finais dos bens produzidos, surgem como parte especialmente débil e carente de protecção nas relações de consumo. Grassa o sobreendividamento das famílias, o mesmo é dizer: dos consumidores. É vária a legislação dispensando-lhes específica protecção, por exemplo a Lei de Defesa do Consumidor (LDC) e parte do regime do C.I.R.E. O especial agravamento dos juros previsto no DL poria os consumidores (individuais), em geral, numa situação económica dramática, com isso afectando por repercussão a própria actividade económica e portanto o comércio.
Não se vê que esta mesma ratio legis se aplique às autarquias locais enquanto adquirentes de bens e serviços.
Em suma: os pontos A) a C) apontam no sentido de solução desfavorável ao apelante. Há que confirmá-lo ou infirmá-lo.

2. Feito o enquadramento, debrucemo-nos agora mais directamente sobre as duas questões essenciais acima descritas.
Enquanto a autora defendeu e a sentença decidiu que são aplicáveis ao caso os juros comerciais previstos no regime especial das transacções comerciais (DL citado), o réu entendia e como apelante continua a defender que são devidos os juros civis.
A sentença considerou, para o efeito, o seguinte, em suma: (…) «estamos perante a existência de um contrato de compra e venda que tinha por objecto o fornecimento de mercadorias e por outro, a autora é uma empresa e o réu uma entidade pública, o município é uma categoria das autarquias locais (cfr. arts. 236º e 249 e seguintes da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, estamos perante uma transacção comercial, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 2º, nº 1 do referido DL nº 32/2003. Ora, de acordo com o artº 4º, nº 1 do diploma legal vindo de citar, os juros aplicáveis aos atrasos de pagamento das transacções comerciais previstas no DL nº 32/2003 são os estabelecidos no Código Comercial (…)».
Os argumentos do apelante, em termos de lei ordinária, são praticamente iguais aos fundamentos do citado acórdão da Relação do Porto de 24-01-2005 de que foi junta cópia. E estes são em suma os seguintes:
- a A. é uma empresa comercial e o R. é uma entidade pública;
- o contrato de compra e venda de coisa móvel destinada ao uso e consumo do comprador não tem natureza comercial (art. 461º nº1 e 463º do C.Com.). Logo, é aplicável a taxa de juros civis;
- pelo art. 2º nº2 al. a) do DL, estão excluídos da aplicação do DL os contratos com os consumidores. E o R. é consumidor final. O contrato celebrado entre o vendedor final e o consumidor não tem natureza comercial mas civil, conforme Prof. Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, 2ª ed., p. 45. Logo, não é aplicável a taxa prevista no art. 4º nº1 do DL (juros comerciais).
O apelante entende que o contrato celebrado não tem natureza comercial à luz do C. Com. (aqui lei geral). Nós entendemos que o contrato não tem essa natureza quanto ao adquirente Município à luz desse Código: é acto de comércio unilateral quanto à A. (art. 99º).
O apelante entende que celebrou o contrato como consumidor, para o efeito da exclusão prevista no art. 2º nº2 al. a) do DL, e que portanto não lhe são aplicáveis os juros comerciais por força desse DL. E é este ponto que agora vamos apreciar, sendo certo que esta Relação pode decidir, sobre o caso aqui sob recurso, em sentido diferente do que a Relação do Porto decidiu sobre outro caso ainda que semelhante.

3. Já dissemos que o DL institui um regime especial. E lei especial prevalece sobre lei geral.
O seu art. 2º preceitua no nº1: «O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais». E de entre várias exclusões consta a do nº2 al. a): «São excluídos da sua aplicação os contratos com consumidores». E o art. 3º contém na sua al. a): «Para efeitos do presente diploma, entende-se por transacção comercial qualquer transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração».
O DL definiu transacção comercial, englobando no seu âmbito subjectivo as entidades públicas além das empresas, mas não definiu o conceito de consumidor que utilizou (ao que parece contra as regras da legística), de modo que pelo menos à primeira vista tem cabimento perguntar o intérprete se, para o efeito do diploma, uma entidade pública pode ou não considerar-se consumidor, ao adquirir contratualmente de uma empresa bens que em geral podem ser de consumo. O legislador não atentou ou terá entendido que era desnecessária a definição nesse diploma, ou porque realmente a questão não tem cabimento, ou porque a definição resulta clara da restante legislação, ou porque quis deixar ao intérprete o preenchimento de tal conceito como conceito indeterminado. Veremos que, tudo bem analisado, a questão, a resolver mediante a fixação do conceito, só tem uma solução correcta possível (a solução negativa), com todo o respeito por opinião diferente.

4. É certo que a letra da lei, em outros diplomas, tem suscitado dúvidas sobre se uma empresa, ou uma entidade pública, se pode considerar juridicamente como consumidor:
(1) - Num caso de fornecimento de máquinas de distribuição automática de bebidas, a instalar nos locais de duas sociedades adquirentes e que se destinavam à utilização exclusiva do seu pessoal, o Tribunal de Justiça das C.E. (3ª secção) de 22-11-2001 interpretou o disposto no art. 2º al. b) da Directiva 93/13/ CE do Conselho de 5-4-93 no sentido de que pessoa diversa de pessoa singular que celebre um contrato com um profissional não pode ser considerada como consumidor na acepção desse preceito (ainda que destine o bem adquirido ao uso exclusivo dos seus trabalhadores). A Directiva é relativa às cláusulas abusivas nos contratos com consumidores. Contém aquele artigo 2º al. a): «Para efeitos da presente Directiva, entende-se por consumidor qualquer pessoa singular que nos casos abrangidos pela presente Directiva actue com fins que não pertençam ao âmbito da sua actividade profissional».
(2) - O art. 2º nº1 da LDC (Lei nº 24/96 de 31-7) contém: «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios». É imprecisa a expressão “…aquele a quem…”. O Prof. Calvão da Silva, op. cit., 2003, p. 44, pronuncia-se no sentido de que ali se consagra a noção de consumidor em sentido estrito, isto é, “…todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas”. No mesmo sentido se pronuncia João Alves, in Direito dos Consumidores, Coi. Ed., 2006, p. 207.
(3) - O Supremo Tribunal de Justiça decidiu no seu acórdão de 11-3-2003, na C.J./STJ 2003, t.1, p. 122: «Não é consumidor, sendo-lhe assim inaplicável a Lei de Defesa do Consumidor, aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou da sua empresa». Logo, no sentido da noção de consumidor em sentido estrito, com exclusão das pessoas jurídicas ou colectivas.

5. Nesta sequência, afigura-se-nos que, na ausência de indicação em sentido diverso, o legislador, ao utilizar o conceito de consumidor tout court como no DL nº 32/03, o utiliza em sentido estrito, referindo-se a pessoa singular fora do âmbito profissional ou empresarial ( Não se exclui que noutro diferente âmbito legal o Município se houvesse de considerar consumidor “final”, v. g. no âmbito das c.c.g. (cf. art. 20º do DL nº 446/85): neste sentido, ver JOÃO ALVES, op. cit., p. 207. ).
E, tendo em conta não só a ordem jurídica no seu conjunto com apelo à legislação que especificamente tutela as relações de consumo, mas também a ratio legis do DL nº 32/03 como se explanou acima em B) e C) (art. 9º do C.C.), conclui-se que o réu, como pessoa colectiva de direito público (mais compreensivamente como “entidade pública” na expressão do DL), adquirente da mercadoria no contrato sub judice, não deve ser havido como consumidor para os efeitos de exclusão desse regime especial e o dito contrato deve ser havido como transacção comercial para os efeitos da aplicação desse mesmo regime especial, logo com aplicação dos juros comerciais por força dos seus artigos 2º nº1, 3º al. a) e 4º nº1.

6. Acresce um argumento adjuvante, de natureza lógica, não despiciendo.
As entidades públicas não estão vocacionadas para a prática do comércio, de modo que, intervindo um Município ou outra entidade pública como sujeito de “transacções comerciais”, no sentido do DL, só é concebível a sua intervenção como adquirente de mercadorias ou serviços em geral.
Para este sentido aponta claramente a mens legis, porquanto consta do § 2º do preâmbulo do DL: «…Esta Directiva regulamenta todas as transacções comerciais, independentemente de terem sido estabelecidas entre pessoas colectivas privadas (…) ou públicas, ou entre empresas e entidades públicas, tendo em conta que estas últimas procedem a um considerável volume de pagamentos às empresas». Se a lei inclui as entidades públicas no regime especial encarando-as como pagadoras às empresas, encarou-as como adquirentes das mercadorias fornecidas ou dos serviços prestados (aliás, adquirentes finais, admitido que por natureza as entidades públicas em geral não praticam a intermediação própria dos comerciantes), ou, o mesmo é dizer: encarou-as apenas como eventuais devedoras e não como credoras nas “transacções comerciais”.
Assim sendo, as entidades públicas, enquanto adquirentes finais nos contratos de fornecimento (por empresas) de mercadorias ou de prestação de serviços remunerados, sempre seriam consumidores em sentido lato.
Se o artigo 2º al. a) do DL, ao excluir do regime especial os consumidores, utilizasse a noção de consumidor em sentido lato, haveria pois uma contradição entre normas ou inutilização prática do preceituado no art. 3º al. a) quanto à inclusão das entidades públicas nas transacções comerciais seu objecto, em conexão com o art. 2º, nº1 e nº2 al. a): seria transacção comercial a celebrada entre as empresas e as entidades públicas «para efeitos do presente diploma» (o DL), mas a aplicação do regime especial deste diploma estava excluída porque tais entidades públicas seriam consumidores (em sentido lato).
As duas normas compatibilizam-se e salvam-se considerando que o legislador utilizou no art. 2º al. a) do DL a noção de consumidor em sentido estrito, isto é, com exclusão das empresas e das entidades públicas.

7. Actua, desta feita, o art. 9º do Código Civil.
Considerando a ratio legis aludida em B) e C), a mens legis captada através do dito § 2º do relatório do DL, a unidade do sistema jurídico mediante o apelo às interpretações legais reproduzidas acima em (1), (2) e (3) e presumindo que o legislador consagrou as soluções mais adequadas, -- a entidade pública Município ora réu apelante, adquirente da mercadoria que lhe foi fornecida pela empresa autora, não é consumidor para o efeito da exclusão consignada no art. 2º al. a) do DL nº 32/03 de 17-2 e à sua dívida são aplicáveis os juros comerciais, como a sentença decidiu.
Com referência à conclusão c) da alegação, convém precisar que nos termos do art. 3º do DL a qualificação de “transacção comercial” aí definida não depende da natureza (o apelante diz tratar-se de compra e venda civil), nem da forma, nem da designação da transacção.

8. A apelante defende que essa dimensão interpretativa ofende o consignado nos artigos 12º e 13º da Constituição.
Afigura-se-nos que sem razão o defende. O manto da Constituição é muito amplo mas nem tudo cobre.
A Constituição incumbe o legislador de tutelar especificamente os consumidores e para o efeito o legislador dimanou vários diplomas. Mas sucede que, segundo nos parece, a Constituição não define o conceito de consumidor, deixando ao legislador ordinário a liberdade de conformação do conteúdo, usual em casos semelhantes.
Pelas razões acima descritas, afigura-se-nos legítimo, justificado e adequado que o legislador tenha imprimido, no âmbito do DL nº 32/03 cuja aplicação aqui está em causa, ao conceito de consumidor um sentido estrito, de modo a excluir desse conceito (além das empresas) as entidades públicas, sejam estas pessoas colectivas ou não, enquanto lhes sejam imputáveis atrasos de pagamento em prejuízo das empresas credoras, no âmbito das “transacções comerciais” para o efeito ali definidas (contratos de fornecimento de mercadorias ou de prestação de serviços mediante remuneração, seja qual for a natureza, forma ou designação desses contratos, mas com restrição às espécies de sujeitos outorgantes, referidas no art. 3º al. a), e com as exclusões do nº2 do art. 2º).
Pelas razões delineadas em B) e C), cremos estar justificada material e racionalmente a não equiparação e a diferença de tratamento jurídico entre os consumidores em sentido estrito e as entidades públicas, uns e outros enquanto adquirentes nas ditas transacções e com atrasos de pagamento em prejuízo das empresas fornecedoras.
E cremos igualmente justificada, para os efeitos do DL e atenta a intencionalidade que se percebe na instauração desse regime especial, a parificação de tratamento jurídico das (devedoras relapsas) empresas e entidades públicas. Em relação a umas e outras, colhe a necessidade de debelar os malefícios micro e macro-económicos que estão implicados pelos atrasos dos pagamentos, notoriamente conhecida que é a prática funesta desses atrasos, a elas em geral imputável indistintamente e que este caso dos autos cabalmente ilustra no que à ré entidade pública respeita.
Não se vislumbra qualquer ofensa ao princípio da igualdade perante a lei, seja igualdade no sentido interno, seja no sentido externo. Também não se encontra alguma justificação para discriminação positiva que devesse ter sido considerada, em benefício da entidade pública por contraponto com uma empresa também devedora relapsa.
Note-se que são cerca de 50 000 euros o que o Município deve à empresa, por pagamentos que estão em atraso já desde há cerca de dois anos (o efeito meramente devolutivo do recurso foi fixado em final de Abril/2006). Um montante desses com este atraso clamoroso é susceptível de causar terríveis dificuldades a uma qualquer PME, eventualmente outros atrasos em catadupa como acima dissemos (não só dívidas a trabalhadores como a outras empresas) e pode até levar à falência do credor: esses efeitos possíveis tanto podem ser causados pelo atraso no pagamento de € 50 000 imputável a uma entidade pública, como ser causados pelo atraso no pagamento de € 50 000 imputável a uma qualquer empresa devedora.
Também o efeito dissuasor e compensatório dos juros comerciais agravados e da eventual indemnização suplementar assenta que nem uma luva quer nas empresas, quer nas entidades públicas, umas e outras quando relapsas. Com várias agravantes contra estas: devem atender ao bem comum (é esta a sua finalidade essencial porventura ignorada aqui ou ali), gerem dinheiros públicos (e portanto devem ser rigorosas porque o dinheiro que gerem provém dos contribuintes), dispõem de instrumentos de gestão e meios de controlo que são rodeados de regras precisas (ao nível orçamental e de contas — veja-se o nº7 da cláusula 16ª do contrato: “O presente contrato será suportado por conta das verbas inscritas, sob a rubrica orçamental com a classificação orgânica 0102 económica 070109”), etc. Com tais agravantes, o mínimo racionalmente expectável, no contexto em que nos movemos, é que o legislador dispense, como se entende ter dispensado, o mesmo tratamento jurídico às entidades públicas e às empresas em mora para com as empresas fornecedoras.
Não se reconhece a arguida inconstitucionalidade.

9. Falecem as conclusões da alegação do recurso (devendo porém precisar-se que as conclusões a) e b) não são verdadeiras conclusões no sentido do art. 690º do CPC, pois que por elas não se pode entender pretender o apelante obter a revogação ou anulação da sentença).


III- Decisão:

Pelos fundamentos expostos, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a decisão impugnada.
Custas pelo apelante.