Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3672/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: COMPETÊNCIA - CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
Data do Acordão: 01/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 3º JUÍZO CRIMINAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 77º E 78º, DO CP E 14º, 16º E 122º, DO CPP
Sumário: I – Nada obsta à efectuação de cúmulo jurídico de uma pena de prisão suspensa com uma pena de prisão que com a mesma se encontre em concurso, pelo que nestes casos deve ser efectuado cúmulo jurídico de penas que formam o concurso.
II – A obrigatoriedade de efectuação de cúmulo jurídico verifica-se, quer os crimes em concurso sejam objecto do mesmo processo quer sejam objecto de processos diferentes.
III – No caso de concurso de infracções passíveis, individualmente, de pena máxima não superior a cinco anos, mas que, em cúmulo jurídico, corresponda pena máxima superior àquele limite, é competente para o julgamento o tribunal colectivo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.
No processo comum singular n.º 1905/01, do 3º Juízo Criminal de Coimbra, após a realização do contraditório foi proferida sentença que condenou o arguido A..., devidamente identificado, como autor material de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelos artigos 203º, n.º1 e 204º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
Interpôs recurso o arguido com formulação de conclusões nas quais se limita a impugnar a matéria de facto, com o fundamento de que a prova produzida é manifestamente insuficiente tendo em vista os factos dados como provados.
Na contra-motivação apresentada a Digna Magistrada do Ministério Público pugna pela improcedência do recurso por entender que a prova produzida foi correctamente valorada e apreciada, não havendo dúvidas de que os factos delituosos objecto do processo foram perpetrados pelo arguido.
Igual posição assumiu o Exm.º Procurador-Geral Adjunto.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.
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Questões prévias que oficiosamente se suscitam são a da incompetência do tribunal e a da nulidade da sentença.
É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto ( - O texto que a seguir se transcreve corresponde ipsis verbis ao da sentença recorrida.):
Fundamentação
A) De facto
Realizada a audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos:
1- No período compreendido entre os dias 1 e 5 de Agosto de 2001, a horas não concretamente apuradas, o arguido dirigiu-se ao Edifício Panorama, sito no nº 11 da Rua de Aveiro , em Coimbra e aí até junto do rés-do-chão que sabia estar desabitado, pois que também ali morava no 10º-A, residência de seus pais.
2- Ali chegado, o arguido levantou a persiana de um dos quartos, retirou-lhe algumas réguas e depois partiu o vidro da janela, junto ao respectivo fecho, após o que a abriu e trepou pela mesma introduzindo-se naquela residência, dirigindo-se ao quadro eléctrico onde ligou a electricidade.
3- Depois, do interior da residência, o arguido retirou e levou consigo os seguintes objectos:
-» um micro-ondas “Moulinex”, avaliado em esc. 30.000$00;
-» uma aparelhagem “Grundig”, avaliada em esc. 40.000$00;
-» oitenta e quatro CD´s, de valor não concretamente apurado;
-» um televisor “Samsung”, avaliado em esc. 100.000$00;
-» um vídeo, avaliado em esc. 50.000$00;
-» um computador “Olivetti”, avaliado em esc. 150.000$00;
-» uma impressora “Olivetti” avaliada em esc. 300.000$00;
-» um fato de homem;
-» várias camisolas;
-» um saco de viagem e um rádio-despertador.
4- Todos este objectos pertenciam a Ivone Cristina Amaral Alves Barbosa e Francisco Luís Lopes Gomes Alvo.
5- Retirou igualmente os seguintes objectos pertencentes a Pedro Miguel Rodrigues Almeida Prazeres:
-» uma viola acústica, avaliada em esc. 50.000$00;
-» um par de auscultadores sem fios, avaliados em esc. 15.000$00;
-» trinta CD´s, avaliados em esc. 90.000$00;
-» um par de ténis “Adidas”, avaliado em esc. 7.000$00;
-» um blusão “XDEY”, avaliado em esc. 8.000$00 e dois batuques em madeira, avaliados em esc. 23.000$00.
6- Também retirou os seguintes objectos pertencentes a Brigitte Gomes Martins:
-» uma aparelhagem com leitor de CD “Sony” avaliada em esc. 30.000$00;
-» doze CD´s avaliados em esc. 36.000$00;
-» uma viola de estilo clássico, avaliada em esc. 30.000$00;
-» quinze cassetes audio, avaliadas em esc. 5.000$00;
-» uma estatueta em pau preto, avaliada em esc. 5.000$00;
-» um cachimbo de vidro, avaliado em esc. 15.000$00;
-» dois pares de sapatilhas “Globe” e “Emerica”, avaliados em esc. 20.000$00 cada e um par de botas de montanha, avaliado em esc. 15.000$00.
7- Para retirar todos aqueles objectos e no final sair, o arguido colocou no passeio, por baixo da janela que partira e abrira, uma cadeira daquela casa, ali a deixando ficar depois de se afastar do local e de ter baixado a persiana.
8- O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de fazer seus aqueles objectos, apesar de saber que os mesmos não lhe pertenciam e que estava a actuar contra a vontade dos respectivos donos.
9- O arguido sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
10-Não foram recuperados quaisquer dos referidos objectos.
11- O arguido é solteiro, trabalha como empregado de armazém ganhando, mensalmente, cerca de € 500,00; tem dois filhos de 8 e 3 anos de idade; vive em casa da mãe e tem como habilitações escolares o 12º ano de escolaridade.
12- Na altura, o arguido tinha problemas relacionados com o consumo de estupefacientes; entretanto, efectuou tratamento de recuperação.
13- O arguido está preso preventivamente desde 06.01.2004.
14- O arguido foi julgado no processo comum singular nº 2114/02.3PCCBR, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, tendo sido condenado, por sentença de 20.12.2002, pela prática do crime de furto qualificado, na forma tentada, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, sob a condição de continuar o tratamento que se encontra a fazer na comunidade terapêutica “Encontro”.
15- O arguido não demonstra arrependimento.
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Factos não provados
Nenhuns outros factos com relevância para a decisão se provaram em audiência de julgamento nomeadamente não se demonstrou qual o valor efectivo dos CD´s pertencentes a Ivone Cristina Amaral Alves Barbosa.
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Motivação
Nos termos do artº 205º, nº 1, da actual versão da Constituição da República Portuguesa as decisões dos tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos artigos 97º, nº 4 e 374º, nº 2 exigindo que sejam especificados os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artº 125º, do Código de Processo Penal).
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: o juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca --- derivados da(s) finalidade(s) do processo (Cristina Libano Monteiro, “Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo»”, Coimbra, 1997, pág. 13).
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artº 127º, do Código de Processo Penal).
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (Maia Gonçalves, "CPP anotado", 4ª ed., 1991, pág. 221, com cit. de A. dos Reis, C. de Ferreira, Eduardo Correia e Marques Ferreira).
Daqui resulta, como salienta Marques Ferreira, um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir-se um efectivo controle da sua motivação ("Jornadas de Direito Processual Penal” pág. 228").
Como é referido em acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.05.1997, quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a mediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, 'olhares de súplica' para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal: Ricci Bitti/Bruna Zani, “A comunicação como processo social”, editorial Estampa, Lisboa, 1997).
Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras e que estas devem ser apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Aliás, segundo pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra sendo que o tom de voz e a fisiologia, que é a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder (Lair Ribeiro, "Comunicação Global", Lisboa, 1998, pág. 14).
Trata-se de um acervo de informação não verbal, rica, imprescindível e incindivel para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras de experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Por isso, o juiz deve ter uma atitude crítica de 'avaliação da credibilidade do depoimento' não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso 'saber' (ac. de 17.01.94, do 2º Jz Criminal de Lx, pº 363/93, 1ª sec, in "SubJudice" nº 6-91).
Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.12.1998, se escreve que a apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, “há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal” (http://www.terravista.pt.bilene/ 2850/00197ti.html).
Como ensina o Sr. Prof. Enrico Altavilla, "o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à critica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" ("Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12).
Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo como salienta Carrington da Costa, advertindo para que “todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade. Deve, antes, ter-se bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»” (“Psicologia do testemunho”, in Scientia Iuridica, pág. 337).
Os factos provados resultaram da análise da prova produzida em audiência de julgamento tendo em conta os parâmetros referidos.
O arguido admitiu que já tinha entrado na casa anteriormente, sustentando que foi convidado a tal por um dos inquilinos; negou a prática dos factos imputados e sustentou que as impressões digitais encontradas foram deixadas dessa vez.
A testemunha Ivone Cristina Amaral Alves Barbosa, uma das residentes no apartamento e a quem foram retirados objectos, salientou o conhecimento que o arguido tinha do apartamento, como entrou uma vez, como ia consumir droga para junto da janela do quarto por onde se deu a introdução para o furto, de como estavam todos de férias; confirmou os objectos furtados e valores excepto quanto a alguns dos seus CD´s; esclareceu que nenhuns dos objectos foram recuperados e que quando saíram para férias deixaram o quadro eléctrico desligado sendo que o mesmo se encontrava dissimulado dentro de um armário no hall de entrada.
A testemunha Francisco Luís Lopes Gomes Alves, outro dos inquilinos e donos de objectos furtados, descreveu o modo o arguido se insinuou para ter acesso ao interior do apartamento, dizendo que pertencia à direcção do condomínio e que poderia resolver o problema do termoacumulador, e como andou e observou toda a casa; descreveu o estado em que encontrou o apartamento após o “assalto”; salientou a alteração de comportamento do arguido após a ocorrência dos factos, como se deu a entrada pela janela, os vestígios deixados, o quadro da electricidade [que ficara desligado] mexido e ligado e a dificuldade de localização do mesmo para quem não conheça a casa; as diversas vezes que, anteriormente, viu o arguido junto à janela utilizada a espreitar para o interior, a cadeira deixada junto à janela; confirmou os objectos e valores dos mesmos.
A testemunha Pedro Miguel Rodrigues de Almeida Prazeres, outro dos inquilinos, confirmou a lista dos objectos entregue à polícia, descreveu como ficou o apartamento quando foram para férias, como estava partido o vidro, a situação do termoacumulador e demais alterações de comportamento do arguido.
A testemunha Brigitte Gomes Martins, a inquilina que morava no quarto cuja janela foi usada para entrada no apartamento, descreveu como encontrou o vidro partido, a altura da janela para o terraço, a ida do arguido aquando da situação/insinuação do termoacumulador, a sua cadeira que foi usada como degrau para retirar as coisas através da janela; confirmou a lista de objectos entregue à polícia.
A testemunha Henrique Moura Branco, o administrador do prédio na altura dos factos, referiu o vidro e a persiana partidos e salientou que o arguido não pertencia à administração do prédio.
Os depoimentos destas testemunhas mostraram-se sérios, serenos, coerentes e consistentes pelo que mereceram credibilidade no âmbito do conhecimento decorrente do respectivo contacto com a situação em apreço.
Foi igualmente relevante a análise do teor de fls 7 que foi conferido e confirmado pelas testemunhas, fls 11, 12, 44 e 45 [quanto à identificação do vestígio lofoscópico recolhido na janela como pertencente à mão direita do arguido].
O tribunal não teve dúvidas de que este vestígio foi deixado no local aquando do furto em causa desde logo porque o arguido, na altura do termoacumulador, não chegou junto à janela em causa [embora a testemunha Brigitte, em absoluta sinceridade, imparcialidade e isenção não fosse capaz de afirmar a certeza absoluta acerca desse ponto demonstrou que se o arguido lá se tivesse deslocado teria que atravessar o seu quarto e recordar-se-ia de tal], depois porque o tempo decorrido, seguramente mais de dois meses, teria sido suficiente para que os vestígios desaparecessem fosse pela limpeza fosse por outros contactos.
Assim, a convicção do tribunal quanto ao facto de o arguido ter entrado e retirado os objectos do apartamento assenta, essencialmente, na impressão digital deixada, nessa altura, pelo arguido, o conhecimento que o mesmo tinha pela casa, a mentira quanto ao termoacumulador para reconhecer a casa, o quadro de empatia desenvolvido para saber quando as pessoas iam de férias, o conhecimento da localização do quadro eléctrico, entre o mais.
Antecedentes criminais: CRC.
A testemunha Nuno Miguel Simões da Costa nada sabia, não foi á casa nem percebeu porque ganhou o estatuto de testemunha.
No que respeita ao facto não provado tal resultou da dúvida que a própria dona dos CD´s apresentou em audiência de julgamento quanto ao valor dos mesmos.
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B) De direito
O arguido está acusado pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artºs 202º, alíneas a) e d), 203º, nº 1 e 204º,
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Incompetência do Tribunal
Como se deu por provado na sentença e resulta do certificado de registo criminal de fls.193/194, o recorrente foi condenado no 3º Juízo Criminal de Coimbra – processo comum singular n.º 2114/02 –, por decisão de 20 de Dezembro de 2002, transitada em julgado, na pena de 7 meses de prisão, cuja execução foi suspensa por dois anos, pena que lhe foi aplicada pela prática de factos ocorridos em 10 de Julho de 2002.
No presente processo o recorrente foi condenado na pena de 2 anos e 6 meses de prisão por factos ocorridos entre os dias 1 e 5 de Agosto de 2001.
Daqui decorre que os crimes pelos quais o recorrente foi condenado neste processo e no processo n.º 2114/02 referido, encontram-se numa relação de concurso. Com efeito, o crime pelo qual o recorrente foi condenado nos presentes autos foi praticado antes do crime pelo qual o mesmo foi condenado naqueloutro processo – artigo 78º, n.º1, do Código Penal.
Deste modo e uma vez que a lei substantiva penal manda punir as situações de concurso de crimes com uma única pena – artigos 77º, n.º1 e 78º, n.º1, do Código Penal –, cumpre averiguar se no caso vertente deve ou não proceder-se a cúmulo jurídico das penas cominadas ao recorrente, cúmulo que, presumimos, o tribunal a quo nem sequer hipotisou, face à suspensão da execução da pena aplicada no processo n.º 2114/02.
Como é sabido, os nossos tribunais superiores têm assumido posição, praticamente consensual, no sentido de que nada obsta à efectuação de cúmulo jurídico de uma pena de prisão suspensa com pena de prisão que com a mesma se encontre em concurso, pelo que nestes casos deve ser efectuado cúmulo jurídico das penas que formam o concurso ( - Cf. entre outros os acs. do STJ, de 86.02.26, 86.11.19, 91.03.20 e 95.01.11, o primeiro e o segundo publicados nos BMJ, 354, 345 e 361, 278, e os demais proferidos nos processos n.ºs 88/91 e 47350, respectivamente.).
No caso vertente a situação com a qual nos deparamos enquadra-se na atrás referida.
Assim sendo e tendo por certo que, ocorrendo um concurso de crimes há que efectuar, necessariamente, o cúmulo jurídico de todas as penas – não prescritas, extintas ou cumpridas – dos crimes que formam o concurso, quer estejamos perante um só processo quer estejamos perante dois ou mais processos, tanto mais que o tribunal face a um concurso de crimes só pode decidir da substituição de pena detentiva por pena não detentiva após haver determinado a pena conjunta ( - Vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime (1993), 285, onde refere que: «Em princípio, dir-se-ia nada opor a que o tribunal considerasse que qualquer das penas parcelares de prisão deveria ser substituída, se legalmente fosse possível, por uma pena não detentiva… .
Não pode, no entanto, recusar-se neste momento a valoração, pelo tribunal, da situação de concurso de crimes, a fim de determinar se a aplicação de uma pena de substituição ainda se justifica do ponto de vista das exigências da prevenção, nomeadamente da prevenção especial. Por outro lado, sabendo-se que a pena que vai ser efectivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta, torna-se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua substituição».).
De facto, dependendo a aplicação de penas não detentivas da medida da pena de prisão concretamente determinada (v.g a suspensão da execução da pena de prisão só é admissível relativamente a penas não superiores a três anos – artigo 50º, n.º1, do Código Penal), bem se vê que só após a efectuação do cúmulo jurídico se poderá decidir da eventual substituição da pena detentiva por pena não detentiva.
Aliás, se ninguém coloca minimamente em questão, ao que sabemos, a necessidade de efectuação de cúmulo jurídico relativamente a crimes em concurso cujas penas são cominadas no mesmo processo, não se vê razão para colocação de qualquer impedimento ou obstáculo quanto a crimes em concurso cujas penas são aplicadas em processos diferentes, sob pena de se criar uma desigualdade flagrante, injustificável e ilegal, entre condenados por crimes em concurso julgados no mesmo processo e condenados por crimes em concurso julgados em processos distintos.
Por outro lado, há que ter presente que o critério de determinação da pena conjunta não coincide totalmente com o critério de determinação das penas parcelares e, daí que, o cúmulo jurídico de penas, não seja uma pura operação aritmética de adição, nem o cúmulo jurídico se destina, tão só, a quantificar a pena conjunta a partir das penas parcelares cominadas.
Na verdade, segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias ( - ibidem, 290/292.), a pena conjunta deve ser encontrada em função do critério geral consignado no artigo 71º e do critério especial previsto no artigo 77º, n.º1, ambos do Código Penal, «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique», relevando, na avaliação da personalidade – unitária – do agente, «sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.
Deste modo, sendo certo que perante concurso de crimes há que proceder, obrigatoriamente, a cúmulo jurídico das penas cominadas a cada um dos crimes que formam o concurso, com exclusão das prescritas, extintas ou cumpridas, dúvidas não restam de que a pena que foi cominada neste processo ao recorrente José Júlio Sotaya devia ter sido cumulada com a pena que lhe foi aplicada no processo n.º 2114/02.
Sucede que o tribunal recorrido não dispõe de competência para proceder ao cúmulo jurídico das penas em concurso ex vi artigo 14º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal (diploma de que serão os demais preceitos a citar sem menção de referência).
Tal circunstância, qual seja a da falta de competência do tribunal recorrido para a efectuação do cúmulo jurídico, reflecte-se, obviamente, na sua competência para o julgamento do crime objecto do presente processo, face ao que preceitua a parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 14º. Efectivamente, estamos perante caso de concurso de infracções, uma já julgada com trânsito em julgado, cuja pena máxima conjunta, abstractamente aplicável, é superior a cinco anos de prisão, posto que a infracção já julgada foi punida com 7 meses de prisão suspensa na sua execução, sendo que ao crime objecto dos presentes autos cabe a pena de prisão até 5 anos – artigo 16º, n.ºs 3 e 4 ( - Neste preciso sentido os acs. desta Relação de 96.02.07 e de 03.06.04, proferidos nos recursos n.ºs 449/95 e 1409/03 e da RP de 91.11.13, 93.03.31 e 93.04.28, o primeiro e o último proferidos nos processos n.ºs 9110514 e 9350240 e o segundo na CJ, XVIII, 2, 242.).
A incompetência material do tribunal, ou seja, a violação das regras da competência material do tribunal, constitui nulidade insanável – artigo 119º, alínea e) – que, por isso, pode e deve ser conhecida e declarada oficiosamente – artigos 32º n.º 1 e 119º –, em qualquer fase do procedimento, isto é, até ao trânsito em julgado da decisão final.
As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar, devendo a declaração de nulidade determinar quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordenar, sempre que necessário e possível, a sua repetição, aproveitando-se, porém, todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela – artigo 122º, n.ºs 1, 2 e 3.
Destarte, por efeito da violação das regras da competência material do tribunal e consequente nulidade insanável cometida, há que declarar inválido o julgamento efectuado e todos os demais actos processuais posteriores, devendo o julgamento ser repetido, sendo desta vez realizado pelo tribunal competente, isto é, pelo tribunal colectivo.
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Nulidade da Sentença
Certo é que independentemente da verificação da nulidade acabada de conhecer, sempre a sentença recorrida teria de se considerar e declarar nula.
Vejamos.
A alínea a), do n.º 1, do artigo 379º, estabelece que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no artigo 374º, n.ºs 2 e 3, alínea b).
As nulidades da sentença são de conhecimento oficioso, isto é, devem ser conhecidas pelo tribunal de recurso independentemente da sua arguição – artigo 379º, n.º 2.
Primeira menção referida no n.º 2, do artigo 374º, é a da enumeração dos factos provados e não provados.
Factos provados e não provados, ex vi artigo 368º, n.º 2, são todos os factos submetidos à apreciação do tribunal e sobre os quais a decisão terá de incidir, ou seja, os constantes da acusação ou da pronúncia e da contestação, quer sejam substanciais, quer sejam instrumentais ou acidentais, bem como os factos não substanciais que resultarem da discussão da causa e sejam relevantes para a decisão, e também os factos substanciais que resultarem da discussão da causa quando aceites nos termos do artigo 359º, n.º 2 ( - Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal (1994), III, 288.).
Da análise da sentença, mais concretamente do segmento em que se procedeu à indicação e exame crítico das provas que serviram para a formação da convicção do tribunal, resulta haver sido produzida prova de que o arguido algum tempo antes da ocorrência do furto objecto do processo esteve no interior da habitação assaltada, tendo ali entrado com permissão dos respectivos arrendatários, prova que decorre, segundo se consignou na sentença, quer das declarações do arguido quer dos depoimentos de várias testemunhas.
Tal facto, segundo também resulta do mesmo segmento da sentença, foi aliás alegado em audiência pelo arguido, em sua defesa, como justificativo da presença de um vestígio lofoscópico (impressão digital) recolhido da janela por onde se introduziu e penetrou o presumível autor do furto objecto do processo, vestígio esse que foi identificado como pertencendo à mão direita do arguido.
Certo é que o tribunal acabou por considerar, no mesmo segmento da sentença, que aquele vestígio foi deixado no local pelo arguido aquando do furto objecto do processo, posto que aquele quando penetrou na habitação assaltada, com permissão dos respectivos arrendatários, não chegou a estar junto da janela em causa, para além de que entre aqueles dois eventos teriam decorrido, seguramente, mais de dois meses, tempo suficiente para o desaparecimento do vestígio.
Ora, a sentença impugnada, na parte em que vêm enumerados os factos provados e não provados, é totalmente omissa relativamente aos factos acabados de referir, ou seja, ali não se faz a menor alusão ao facto de o arguido ter estado no interior da habitação em momento anterior ao do assalto (como, em que condições e quando) nem ao vestígio lofoscópico recolhido.
Tais factos, como é evidente, são do maior relevo para a decisão da causa.
Deste modo, dúvidas não restam de que, por falta de enumeração daqueles factos, é nula a sentença recorrida, nulidade cuja declaração se mostra prejudicada face à declaração de nulidade do julgamento.

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Termos em que se acorda julgar incompetente em razão da matéria o tribunal recorrido, julgando-se competente o tribunal colectivo e, consequentemente, declarar nulo e inválido o julgamento efectuado e demais actos processuais posteriormente praticados, ordenando-se a repetição do contraditório, que será efectuado pelo tribunal competente.
Sem tributação.
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