Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2487/04.3TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 10/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 334º, 562º E 566º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Atento o princípio da reparação integral dos danos sofridos pelo lesado, tem o lesado direito à indemnização pecuniária correspondente ao valor da reparação do veículo acidentado (três vezes sobre o valor venal), dado que o custo do conserto em causa tanto podia ser adequado para um veículo muito usado como para um novo e é inferior ao de aquisição de qualquer automóvel novo, inexistindo, assim, abuso de direito.

2. Não há lugar a considerações sobre a excessiva onerosidade, muito menos por referência ao valor venal do veículo à data do acidente, por duas razões: por um lado, a indemnização por facto culposo não pode corresponder ao valor de uma expropriação forçada, nem ao de uma venda, pois nada indicia que antes do acidente o lesado pretendesse vender o veículo; por outro lado, a avaliação do dano patrimonial deve ser, não a objectiva, mas a subjectiva, pois é esta que efectivamente corresponde aos prejuízos efectivamente sofridos pelo lesado e são estes que importa reparar.

3. No âmbito da indemnização pelas despesas com a recolha do veículo, um dos (possíveis) danos de imobilização que o responsável deve reparar, uma vez que o risco da despesa corre por conta de quem tinha o dever de tomar a seu cargo a reparação, ou seja, o lesante ou a sua seguradora, o que releva é o período de tempo em que o veículo teve de ficar recolhido na oficina ou garagem, sem o lesado poder dispor dele, por o responsável não ter tomado as medidas necessárias para que tal pudesse ocorrer, com as despesas correspondentes.

4. O dano da privação do uso é ressarcível de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil ainda que se reconduza a puro e simples impedimento de utilização.

Decisão Texto Integral: ACORDAM O SEGUINTE NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO:

Relatório:
A... intentou aos 13-7-2004 a presente acção contra a B... pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 6712,01 euros, mais juros desde a citação, bem como a quantia a apurar em execução pelas despesas efectuadas após o dia 13-7-2004 até à reparação do seu acidentado veículo QM-49-56, segurado na C... .
Computou aquela quantia líquida como total de: 3273,01 euros de reparação a efectuar ao veículo; despesas de recolha deste na oficina (à razão diária de 4 euros) e indemnização pela privação do uso (à razão diária de 15 euros), desde 14-1-04 até 13-7-04.
Alegou ainda, em resumo:
O acidente de viação, de 23-12-03, deveu-se a facto culposo de quem conduzia o veículo 82-99-BZ, segurado da ré;
O A. começou a tratar da questão junto da C... , sendo esta e a ré subscritoras da Convenção IDS. Aquela comunicou ao A. em 12 de Janeiro ter concluído pela inviabilidade da reparação dado o valor orçado, após o que o A. comunicou àquela em 26-1-04 e à ré em 8-3-04 que pretendia apenas a “reposição natural” da viatura.
E no art. 31 da petição:«O autor tem o direito à reposição natural, nos termos do art. 562 do CC, mesmo considerando que o valor da reparação é superior ao valor venal do veículo».
Citada em 16-9-04, a ré contestou, aceitando a culpa do segurado no acidente, mas impugnando parte do alegado e aduzindo, entre o mais: Tanto o orçamento junto pelo A. como o elaborado pelo perito da congénere são superiores, em mais do dobro, ao valor comercial do QM estimado à data do acidente. O A. não alegou dificuldades económicas em proceder à reparação do QM a partir da comunicação de 12-1-04. Por essas razões não se justifica o peticionado pela recolha e não uso a partir de 13-1-04.
E a ré suscitou a intervenção principal activa da C... , o que foi judicialmente admitido. Citada, esta contestou, invocando excepção referida ao art. 27 da Convenção IDS.
No saneador foi desatendida a excepção e elaborada a base instrutória.
Após audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que, na parcial procedência da acção, condenou a ré a pagar ao A. a quantia de 1834 euros, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até pagamento, ficando os salvados na posse do A.
Da sentença recorre o A., concluindo a sua alegação, no que interessa ao conceito de “conclusões” no sentido do art. 690º do CPC:
(...) 8ª-A MM Juiz, na sentença, considerou que a reparação era excessivamente onerosa e atribuiu ao autor uma indemnização inferior ao valor do custo da reparação.
9ª- O autor sempre pretendeu a reposição natural quer junto da Ré, quer na p.i., tendo pedido que a Ré fosse condenada, entre outros, nas despesas do custo da reparação (reposição natural).
10ª- A reparação não é excessivamente onerosa atendendo às circunstâncias já expostas, do valor de uso do automóvel para o autor, do desequilíbrio entre o preço das coisas e da sua reparação, encarecimento da mão de obra, como tem sido entendimento da Jurisprudência.
11ª- E mesmo que se considerasse que a reparação era excessivamente onerosa, a indemnização para comprar um veículo de iguais características, no estado de conservação em que se encontrava, teria que ser um valor aproximado do custo da reparação.
12ª- Nunca se verificaria um enriquecimento ilegítimo do A., caso a Ré fosse condenada a pagar a reparação, ao contrário do que refere a MM Juiz “a quo”, pois o autor sempre pediu a reposição natural e o óbice apontado pelo Tribunal recorrido poderia ser sempre controlado deixando para execução de sentença a liquidação do custo de reparação, como permite o nº 2 do artº 661º do C. P. C.
13ª- Cabia à Ré reparar o mais depressa possível os danos causados e facultar ao A. um veículo de substituição, ou indemnizá-lo por despesas que teve de suportar em consequência do acidente.
14ª– O autor como proprietário tem o dever de resguardar o veículo para que o mesmo não fosse danificado, o que cumpriu.
15ª- Tem pois direito a que lhe seja paga a recolha do veículo desde a data do acidente até às datas constantes do pedido.
16ª- O autor, independentemente dos prejuízos causados que foram muitos, tem sempre direito a ser indemnizado, com recurso a critérios de equidade, em consequência da privação do veículo desde o acidente até à data constante do pedido.
17ª- No fundo, a questão a decidir consiste em saber se o critério para avaliar da excessiva onerosidade da reparação de um veículo é o da Ré e da generalidade das Seguradoras (que entendem que, desde que o valor da reparação seja superior ao valor comercial, mesmo que em valor insignificante, é excessivamente oneroso, ou seja, critério aritmético) ou o que tenha em conta o desequilíbrio entre o preço da coisa e a sua reparação, o encarecimento da mão de obra e o valor de tem o uso para o seu proprietário, como é jurisprudência dos Tribunais Superiores.
18ª- E o Tribunal recorrido está obrigado a seguir as orientações dos Tribunais Superiores, o que não aconteceu.
19ª- Fez pois a MM Juiz uma errada interpretação dos artºs. 562º e 566º do CC. ao considerar a reparação excessivamente onerosa e ao condenar a Ré a uma indemnização em função da recolha do veículo apenas até ao dia 12/01/2004.
20ª- Bem como postergou o artº 661º nº 2 do CPC.
21ª- Deve revogar-se a sentença recorrida e condenar-se a Ré no pedido formulado na p.i.
Não houve contra alegação. Correram os vistos. Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

Fundamentos:
I. De facto:
Dado que não vem posta em causa a responsabilidade civil do segurado da ré e a culpa exclusiva do mesmo no acidente, transcrevem-se apenas os seguintes factos provados necessários ao recurso:
...3. No dia 23 de Dezembro de 2003, pelas 18h. 45m, circulava na rua Armando Gonçalves o veículo QM-49-56, pertencente ao Autor e conduzido pela filha, Carla Sofia Teixeira Cavaleiro – als. C) e D).
...10. O autor entregou a declaração amigável do acidente na sua companhia de seguros C... em 25/12/2003 – al. G).
11. Em 10/01/2004, um perito da companhia deslocou-se à oficina onde teve conhecimento do orçamento da reparação – al. H).
12. A companhia de seguros C... apenas pôs à disposição do autor uma viatura de 9 a 13 de janeiro de 2004 – al. I).
13. Em 12/01/2004, a C... comunicou ao Autor que os serviços técnicos haviam procedido à vistoria do veículo, tendo concluído pela inviabilidade da reparação, atento o valor orçamentado ser superior ao valor real da viatura à data do acidente e colocou à disposição do autor a quantia de 700,00 €, conforme doc. junto a fls. 13, cujo teor se aqui dá por reproduzido – als. J) e L)
14.Em 26/01/2004, o A. comunicou à referida companhia de seguros que o que pretendia era apenas a reposição natural da viatura – al. M).
15.Em consequência do embate, o veículo do Autor ficou sem condições de ser utilizado e teve que ser rebocado para a oficina de reparação de automóveis Jorge Maia e Rui Gaspar – resp. aos q. 9º e 10º.
16. A reparação do veículo do A. ascende a € 3.273,01 - resposta ao quesito 11º.
17. A recolha do veículo na oficina de reparações custa € 4,00 por dia – resposta ao quesito 12º.
18. O autor é maquinista da CP e desloca-se, em média, cinco vezes por semana da sua residência para a Estação Velha em Coimbra onde inicia o trabalho, sendo certo que tem um horário irregular, trabalhando por turnos – respostas aos quesitos 13º e 14º.
19. Embora resida em Coimbra, o Autor tem segunda habitação em Meco – Arazede – Montemor-o-Velho onde possui terrenos, cria animais e passa dias livres—resposta ao quesito 15º.
20. Cada viagem de táxi da residência para a Estação Velha custa € 3,65 e cada viagem de Coimbra para o local onde passa os dias livres custa € 42,00--resposta aos quesitos 16º e 17º.
21. Desde a data o acidente, o autor está impedido de utilizar o veículo acidentado—resposta ao quesito 18º.
22. A reparação do veículo do autor foi orçamentada pela C... em € 2.273,90, com IVA incluído, sendo certo que tal orçamento foi efectuado sem desmontagem do veículo, sendo o prazo para a reparação de seis dias úteis – respostas aos quesitos 19º e 20º.
23. À data do acidente, o veículo do autor valia € 1.000,00 e os salvados valem € 300,00--respostas aos quesitos 21º e 22º.
Oficiosamente, adita-se o seguinte (art. 712º, nº1 al. a), do CPC):
24. As duas referidas seguradoras subscreveram a Convenção IDS, de indemnização directa ao segurado (admitido por acordo).

II. De Direito:
O âmbito do recurso cinge-se às questões suscitadas através das conclusões da alegação do recurso (art. 690º do CPC).
As questões fundamentais do recurso respeitam à indemnização: a)- para reparação do veículo do A.; b)- por despesas com a recolha do veículo na oficina;c)- pela privação do uso.

1ª questão: sobre a indemnização para reparação do veículo:
Vejamos a posição da sentença:
Aí se considerou que só foi pedida indemnização em dinheiro e só esta pode ser concedida; a indemnização não pode corresponder ao valor da reparação do veículo sob pena de enriquecimento ilegítimo; não há garantia de o A. utilizar os € 3273 na reparação e, não utilizando, existiria enriquecimento ilegítimo do A. que ficaria com quantia mais elevada do que o valor do veículo e que gastaria como entendesse; o valor da reparação (3 vezes sobre o valor venal) é exagerado e injustificado; o valor da indemnização há-de corresponder ao necessário para adquirir um veículo de características semelhantes (Toyota Corolla de 1987), o que equitativamente se fixa em € 1800 (art. 566º nº3 do CC), deduzindo-se ainda € 300 dos salvados; o A. não ordenou a reparação e não a pede contra a ré, improcedendo a pretensão de reposição natural.
Não podemos concordar com várias destas considerações jurídicas constantes da douta sentença.
O art. 562º do CC tem por escopo colocar o lesado na situação em que se encontraria se não fora o evento produtor dos danos.
O art. 566º do CC preceitua:
«1. A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
«2. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
«3. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».

Na lei há indemnização por duas formas ou modalidades possíveis: por reconstituição natural, que remove o dano real ou prejuízo concreto; por indemnização em dinheiro, que funciona como sucedâneo ou complemento da primeira forma, i. é, quando a primeira não opere ou na medida em que não possa operar para a reparação integral dos danos.
Há o dano real ou prejuízo concreto ( prejuízo sofrido em sentido naturalístico em bens de ordem patrimonial ou não patrimonial) e o dano de cálculo ou prejuízo abstracto (expressão pecuniária daquele prejuízo).
O dano real no veículo é o que está patente na deformação e nos defeitos do veículo em consequência do embate que sofreu. A remoção do dano real faz-se em regra pela reconstituição natural, modo de indemnização tido por preferível pelo art. 566º nº1 do CC [ Nesta consideração e nas que se seguem, acompanhamos de perto a doutrina que se pode conferir em: A. Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., pg. 904 ss e 907 ss; P. Lima e A. Varela, CC Anot., 4ª ed., em anotação aos ditos artigos; Almeida Costa, Dir. das Obrig., 9ª ed., pg. 714 a 716, 720 ss; Ribeiro de Faria, Dir. Obrig., I, 2003, pg. 508 a 512; Pessoa Jorge, Dir. Obrig., I, 1975/76, pg. 603 a 606.
], porque o mais perfeito e por isso mais justo.
Através da reconstituição natural ou em substância, há que proceder à aquisição de coisa da mesma natureza e à sua entrega ao lesado (tratando-se de coisa fungível ainda que se trate de fungibilidade convencional ou por acordo), ou ao conserto, reparação da coisa, em qualquer caso a cargo do lesante. Mas a reparação da coisa só constitui indemnização específica, “in natura”, quando essa reparação seja posta a cargo do responsável, directamente (no confronto com o lesado), sendo o credor alheio ao custo ou esforço (maior ou menor) que o responsável tenha de suportar para entregar àquele a coisa já reparada. Aí o responsável poderá sim, com base no disposto no art. 566º nº 1 do CC, opor-se a que tenha de prestar a reconstituição natural e optar pela indemnização em dinheiro se aquela for materialmente impossível ou for para si excessivamente onerosa, demasiado gravosa.
A regra é a da indemnização por reconstituição natural.
Excepcionalmente, ou residualmente, nos termos dos n.os 1 e 2 do art. 566º do CC, quando a reconstituição natural não for possível, ou não repare integralmente os danos, ou for excessivamente onerosa para o devedor, deve ser fixada uma indemnização em dinheiro, tendo nesta hipótese como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos. Ambas as formas de indemnização (reconstituição natural ou indemnização em dinheiro) são dominadas pelo mesmo princípio: o princípio da reparação integral dos danos sofridos pelo lesado.
Assim, a indemnização em dinheiro, por dano material, é encarada na lei como sucedâneo da coisa danificada que por regra haveria de ser reparada ou substituída por outra do mesmo género e como complemento da reposição natural quando necessário para a reparação integral do dano. Terá lugar quando: a) a coisa não possa ser naturalmente reposta em espécie ou por equivalente coisa do mesmo género; b) ou a reposição natural não repare integralmente o dano; c) ou a reposição natural seja excessivamente gravosa para o devedor em relação à indemnização em dinheiro.
E quando não haja obstáculo material à reconstituição natural, tanto o lesado pode opor esta pretensão ao lesante que apenas se disponha à indemnização substitutiva em dinheiro, como o lesante pode opô-la ao lesado que preferisse a indemnização em dinheiro [ Cfr. Almeida Costa, op. cit., pg. 716.]. Tratando-se de direitos disponíveis, nada obsta a que as partes concordem em dada modalidade de indemnização [ Cfr. Almeida Costa, op. cit., pg.716.].
Havendo excessiva onerosidade na reposição natural a cargo do devedor, a lei admite que funcione, como sucedâneo, a indemnização em dinheiro (substituição que opera como direito do devedor), mas, neste último caso, a indemnização corresponderá à medida da diferença entre duas situações patrimoniais do lesado, conforme nº 2 do dito art. 566º: a situação real em que o facto lesivo deixou o lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria sem o dano sofrido, consideradas na data mais recente a que o tribunal possa atender. Haverá então uma avaliação concreta ou subjectiva (cálculo do valor do prejuízo para aquele lesado) do dano abstracto, devendo no cálculo ter-se em conta, não tanto o valor objectivo ou comum (o valor que o bem representa para a média das pessoas), mas o valor subjectivo ou individual do bem (o valor que o bem representa para o lesado, considerando-se por exemplo o seu modo de vida, com raras ou frequentes deslocações no veículo destruído), valor subjectivo que em regra será igual ou superior ao objectivo e que não se confunde com o valor estimativo ou de afeição. O valor venal é um valor objectivo.
O nº1 do dito art. 566º apenas se refere à excessiva onerosidade da reposição natural para o devedor, para o efeito de lhe facultar a substituição da reposição natural pela indemnização em dinheiro. Não é nessa substituição que se centra o litígio, dado que o A. não a pediu e a ré não a fez valer.
Tudo se centrou na fixação de uma indemnização em quantia pecuniária. Apenas a sentença teceu considerações sobre a reposição natural, censurando o A. por ter pedido a quantia da reparação do veículo (e daí a redução operada).
Concebe-se, é certo, que o direito à indemnização pecuniária de valor correspondente ao custo da reparação de um veículo possa ser abusivo [ Sobre a eventual conexão entre a excessiva onerosidade e o abuso do direito, vd. Júlio Vieira Gomes, in C. D. P. Nº 3, pg.61 e 62.], o que sucederá por exemplo quando se trate de um veículo muito usado e decrépito e o custo de reparação equivalha ao custo de aquisição de um veículo em estado novo embora da mesma marca e modelo, ou quando antes do acidente se projectasse vender o veículo por um montante inferior ao do conserto, ou quando o custo do conserto de um veículo de gama baixa mesmo novo equivalesse ao de aquisição de um de gama superior: só que em tais hipóteses cai-se antes no âmbito da cláusula geral do art. 334º do CC, ou seja, o lesado excederia manifestamente os limites impostos pelo fim económico do direito a tal indemnização, pois a reparação do veículo será abertamente anti-económica. Mas o provado não mostra factos que indiquem ser desse género o caso dos autos; e cabia à ré alegá-los e prová-los (art. 342º nº 1 do CC). O custo de 3273 euros para o conserto é de entender que tanto podia ser adequado para um veículo muito usado como para um novo, não sabemos qual o anterior estado do veículo do A. e aquele custo é inferior ao de aquisição de qualquer automóvel novo.
O que o A. exige da ré, através do pedido formulado na acção, é, além do mais, uma quantia em dinheiro correspondente ao custo do conserto do veículo acidentado. O que o A. declarou na petição e mantém é que com esse dinheiro a pagar pela ré pretende a reparação do veículo na oficina e nada indica que assim não seja. Porém, quando obtenha a quantia indemnizatória o A. é livre de o utilizar como entender, como aliás sucede em geral com qualquer outro credor indemnizado.
A questão, para o aplicador do direito nesta acção, não está em o tribunal averiguar se o A. com o dinheiro na mão o utilizará no conserto, ou em saber se o tribunal pode condenar no pagamento da quantia sem o A. prestar uma garantia ou assinar termo de responsabilidade no sentido de que o utilizará para esse fim: tal está para além do que a lei permite ou exige.
A questão está sim em saber: qual a modalidade de indemnização pretendida pelo A. e pela ré (pois que se o litígio aí se centrar o tribunal tem de decidir-se por uma); se a indemnização, no caso de haver coincidência entre a modalidade pretendida e a legalmente devida, cobre integralmente o dano, ou seja, todo o dano e não mais do que o dano; se, não havendo tal coincidência, qual a consequência de mérito, atento o pedido formulado.
Na realidade, o pedido é de montante pecuniário e a ré não se opôs a pagar alguma quantia (vd. factos 13 e 24), aliás a ré não manifestou a pretensão de assumir o conserto sob sua conta e risco, para entregar depois o veículo reparado ao A., divergindo sim as partes essencialmente é no montante pecuniário.
O que temos aqui é um pedido de indemnização em quantia pecuniária correspondente à reconstituição natural do veículo acidentado, reconstituição natural que já não ficará a cargo da ré, a qual não manifestou a pretensão de tomá-la sob seu encargo directo de modo a entregar depois o próprio veículo reparado ao A.: há um acordo tácito na opção pela indemnização em dinheiro.
Porque nenhuma das partes entendeu fazer valer na acção a pretensão da reconstituição natural a cargo da ré e não se antevê poder haver lugar à condenação em objecto diverso do pedido (vd. art. 661º nº 1 do CPC), não tem cabimento apreciar-se ou discorrer sobre se a reparação natural do dano a cargo do responsável lhe é ou não demasiado gravosa, para o efeito do disposto no art. 566º nº 1 do CC, ou seja, para o efeito de opção entre reconstituição natural e a indemnização pecuniária. E já vimos que esta não se mostra ser demasiado gravosa para o efeito do art. 334º do CC.
Segue-se a aplicação do critério da medida da diferença (art. 566º nº 2 e 562º do CC).
O A. tem o direito de reparar ou fazer reparar o seu veículo danificado por facto culposo do segurado da ré. E provou-se que o custo da reparação ascende a € 3.273,01 (facto 16).
Este valor deve ser pago pela ré ao A. como indemnização correspondente à reparação natural do dano, ou seja, correspondente à forma mais perfeita de indemnização.
Não há lugar, como dissemos, a considerações sobre excessiva onerosidade. Muito menos por referência ao valor venal do veículo à data do acidente (facto 23), por duas razões: por um lado, a indemnização por facto culposo não pode corresponder ao valor de uma expropriação forçada, nem ao de uma venda pois nada indicia que antes do acidente o A. pretendesse vender o veículo; por outro lado, a avaliação do dano patrimonial deve ser, não a objectiva, mas a subjectiva, pois é esta que corresponde aos prejuízos efectivamente sofridos pelo lesado e são estes que pelo art. 562º do CC importa reparar (cfr. I. G. Telles, Dir. Ob., 4ª ed., pg.305 s).
Aliás, provado que aquele é o custo do conserto a efectuar pela oficina (uma qualquer oficina pois que nenhuma se especificou) e sem se verificar o abuso do direito, não se vê como é que depois dessa prova se possa considerar que é excessivo, injustificado ou desproporcionado, para nesta base se proceder a uma redução da quantia indemnizatória em benefício do culpado e em prejuízo de quem nenhuma culpa teve no acidente. Também irreleva a dúvida sobre se o A. consertará o veículo [ Em termos de direito comparado, observe-se que na Alemanha o direito do lesado não parece depender de ele ter efectuado ou vir a realizar tais reparações. Em Inglaterra, o custo da reparação é decisivo mesmo que o lesado não venha a efectuá-las (vd. cit. CDP nº3, pg. 60 nota 23).]. É de capital importância que o aplicador do Direito tenha presente a factualidade provada e sinta o seu pulsar ao produzir a decisão.
Nenhuma norma permite que neste caso se proceda a alguma redução, seja à face do art. 494º ou do art. 570º do CC, ou por apelo à equidade.
O art. 566º nº 3 do CC, invocado na sentença, não permite a fixação equitativa (quanto ao dano em apreciação) porque expressamente pressupõe não poder ser averiguado o valor exacto do dano. Ora, o valor exacto consta do facto provado 16, descrito na própria sentença. Há que atender-se à regra da reparação integral do dano, regra que no caso não sofre excepção.
Finalmente, não é correcto falar-se aqui em enriquecimento ilegítimo, porque é a lei, através do instituto da responsabilidade civil e da regra da reparação integral do dano, que faculta a deslocação patrimonial do lesante para o lesado na dita medida.

2ª questão: sobre a indemnização pelas despesas com a recolha:
A ré não se prontificou à reparação do veículo sob sua conta e risco nem a pagar ao A. a quantia necessária para tal reparação. Daí que o A. tivesse de manter o veículo guardado na oficina até à decisão judicial do litígio e até que a ré pague.
Trata-se de um dos (possíveis) danos de imobilização que o responsável deve indemnizar.
A sentença computou o dano apenas até 12-1-2004 (data em que a seguradora comunicou a inviabilidade da reparação), por considerar que a partir daí a recolha era da responsabilidade do A., pois este podia então ter ordenado a reparação e não pede que a ré a ela proceda.
Não podemos concordar. O risco da despesa corre por conta de quem tinha o dever de tomar a seu cargo a reparação, que era a ré. Cabe ao lesante, ou sua seguradora, efectuar a reparação do veículo se esta é possível, sob pena de ter de indemnizar o lesado pelas despesas que este teve de suportar (cfr. ac. STJ de 27-2-2003 na CJ/STJ 2003-1-112 e da Rel. do Porto de 11-11-99 na CJ 1999-5-186). Diversamente do que a seguradora entendeu (vd. facto 13), a reparação do veículo é possível, materialmente (vd. facto 16) e juridicamente (não é excessivamente onerosa ou anti-económica).
Tal dano só ficará a cargo do proprietário do veículo a partir do momento em que o responsável ponha à disposição dele a quantia para o pagamento do conserto, ainda que o conserto já tivesse sido antes mandado efectuar pelo lesado (cfr. Vaz Serra, in RLJ 107º, pg.247, em anotação ao ac. STJ de 31-7-1973; Ribeiro de Faria, Dir. das Obrig., I, 2003, pg.509). Para este dano a indemnizar o que releva é o período de tempo durante o qual o veículo teve de ficar recolhido na oficina ou garagem sem o lesado poder dispor dele porque o responsável não tomou as medidas necessárias para que tal pudesse deixar de ocorrer, com as despesas correspondentes.
Provou-se que a recolha do veículo na oficina de reparações custa € 4,00 por dia (facto 17).
Desconhece-se o número de dias de recolha até ao pagamento da quantia para reparação, mas a quantificação do dano pode ser feita em execução de sentença e deve para aí ser relegada (art. 661º nº2 do CPC).

3ª questão: indemnização relativa à privação do uso:
O A. pretende uma indemnização diária de € 15 em termos de danos patrimoniais e não patrimoniais.
À fixação poderiam interessar os factos 18 a 21. Mas o facto 20 irreleva pois não foi alegado nem provado que o A. tenha as viagens de táxi e para o Meco a cujo custo (em geral) se refere tal facto. Nem se provou nem o A. alegou que viajava no veículo agora acidentado e não disponha de outro veículo para se deslocar (note-se que na altura do acidente o veículo era tripulado pela filha e não foi sequer alegado que esta integre o agregado familiar do A.).
Resta encarar o dano apenas sob o prisma não patrimonial.
E aqui, considerando que o dano de privação do uso é ressarcível de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil ainda que se reconduza a puro e simples impedimento de utilização (neste sentido, Almeida Costa, op. cit., pg.719 nota 6), afigura-se-nos adequado, equitativo, o montante de € 250 fixado na sentença, sem que se possa ir além dele.
Fica-nos a dúvida sobre se o A. terá tido em atenção (face à parca alegação) a exorbitância da pretensão da dita indemnização de € 15/dia, sucedendo que a proceder, e já vão decorridos mais de 2,5 anos desde o acidente, o pagamento nessa parte ascenderia a mais de € 14 000,00. Este valor terá de ser ponderado para efeito de custas pela sucumbência.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, julga-se a apelação procedente e, revogando-se parcialmente a sentença na parte impugnada, altera-se (salvo em b) infra que se mantém e apenas se reproduz) a condenação da ré Tranquilidade S.A. para a seguinte: esta vai condenada a pagar ao autor A... as quantias indemnizatórias:
a)- De € 3.273,01 (três mil duzentos setenta três euros e um cêntimo), relativa à reparação do veículo;
b)- De € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), relativa à privação do veículo;
c)- De montante a liquidar em execução de sentença, correspondente às despesas com a recolha do veículo, à razão de quatro euros por dia.
Custas da acção e do recurso por ambas as partes, na proporção de ¼ pela ré e ¾ pelo A., sem prejuízo do acerto a que haja lugar na liquidação em execução de sentença.