Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
546/06.7GTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: DIREITO AO SILÊNCIO
Data do Acordão: 01/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 61º, Nº 1 D) CPP
Sumário: 1. A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine.
2. Se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, foi o arguido R... condenado, após julgamento com documentação da prova produzida, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros), pela prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, n º 1, do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1) Conforme resulta de fls., foi deduzida acusação contra o Arguido: “Pelo exposto, cometeu um crime de condução de veículo a motor sem para tal estar habilitado, previsto e punido pelo artº. 3º nº l, da Lei nº 2/98, de 03 de Janeiro.”
2) O Arguido apresentou a contestação, conforme acima se transcreveu e aqui se requer a sua apreciação;
3) Foi realizado Julgamento, onde a final decidiu a Meritíssima Juiz, o que acima se transcreveu;
4) Salvo devido respeito não podemos concordar com tal decisão;
5) Para chegar a esta decisão, entende a Meritíssima Juiz, nomeadamente na parte destinada aos FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS, dar relevância ao depoimento das testemunhas indicadas pela acusação;
6) Considerou a Meritíssima Juiz "a quo" dar como provados, os seguintes factos: no dia 07.10.2006, pelas 13HOO, o arguido conduzia um veículo ciclomotor, sem matrícula aposta, na Rua da Fonte, Mourões, Leiria; fazia-o sem estar habilitado para a condução dessa categoria de veículos pois não possuía licença de condução ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir tal espécie de veículo; agiu livre, voluntária, e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
7) Antes de mais, de todos os factos dados como provados, refere que era o Arguido que conduzia o veículo interveniente no acidente em causa destes autos;
8) Da prova produzida em sede de Audiência de Julgamento, nenhum dos intervenientes do acidente, nem nenhuma pessoa que se encontrava no local, viu o arguido;
9) A Testemunha F..., que foi interveniente no referido acidente e que esteve presente no local, não referiu em momento algum que era o Arguido que conduzia o veículo, nem o reconheceu;
10) Segundo o nosso ordenamento jurídico-penal, a condenação ou absolvição de um arguido é decidida tendo em conta a prova produzida em sede de Audiência de Julgamento;
11) No caso dos presentes autos, não se provou que tenha sido o Arguido a conduzir o veículo, e as únicas pessoas que poderiam confirmar tal facto, não viram o Arguido a conduzir o veículo interveniente no acidente;
12) Referir como referem as testemunhas que sabem que foi o Arguido porque lhes disseram é o mesmo que nada dizer;
13) Tendo em conta o principio “in dubio pro reo”, teria o Arguido que ser absolvido, pois não existe qualquer prova que tenha sido este o condutor do veiculo interveniente no acidente, referenciado nestes autos;
14) O que desde já assim, se requer;
15) E caso este Venerando Tribunal assim não o entender, deverá ser o Arguido absolvido também por outros motivos;
16) Refere o Meritíssimo Juiz "a quo", que o Tribunal fundamentou a Sentença atendendo ao depoimento das seguintes testemunhas: -F... ­que deu conta de nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação ter sido interveniente num acidente de viação, envolvendo o seu veículo e um veiculo ciclomotor conduzido por um jovem, que era o único ocupante do ciclomotor, sendo que deu conta também que o condutor do ciclomotor foi o único acidentado e o único interveniente a necessitar de tratamento hospitalar e que o mesmo transportado para o Hospital pelos bombeiros e que quando a GNR chegou ao local o condutor do ciclomotor já não estava no local por ter sido transportado para o hospital;
17) Apesar de esta testemunha referir que o veículo ciclomotor conduzido por um jovem, que era o único ocupante do ciclomotor, que foi o único acidentado e o único interveniente a necessitar de tratamento hospitalar, a verdade é que não reconheceu o arguido como sendo o condutor do referido veículo;
18) Com o depoimento acima transcrito, não se provou que era o Arguido quem conduzia o veículo ciclomotor, envolvido no acidente de viação relatado pela testemunha, visto que, a única coisa que se provou foi que o veículo ciclomotor era conduzido por um jovem e que este vinha sozinho;
19) Não se compreende, como pode a Meritíssima Juiz ter decidido que era o arguido o condutor do veículo;
20) Também fundamentou o Tribunal “a quo” a sentença recorrida, no depoimento da testemunha: V..., que refere que quando chegou ao local do acidente, já não se encontrava no local, o condutor do veículo ciclomotor, supostamente envolvido no acidente de viação;
21) Esta testemunha também não se encontrava no local do acidente, nem encontrou nesse local o condutor do motociclo, quando lá chegou;
22) Pelo que não se compreende, como pode a testemunha dizer que não tem dúvidas quanto à identidade do condutor do veículo ciclomotor, e que essa identidade corresponde ao arguido neste processo;
23) Não se entende como pode a testemunha ter tantas certezas;
24) Pois, analisando o seu depoimento, a testemunha refere que identificou o arguido, apenas no Hospital e não no local do acidente, por o condutor do motociclo já lá não se encontrar;
25) Como pode a testemunha ter tantas certezas, se não presenciou os factos, nem identificou o condutor do veiculo no local da ocorrência, mas antes no hospital, com base na ficha de entrada do paciente? ;
26) A testemunha esclarece que chegaram à identificação do condutor do ciclomotor com base nas declarações de um indivíduo que se identificou como sendo pai do condutor do ciclomotor e forneceu a respectiva identificação;
27) Sucede que, não se logrou provar quem era esse individuo, e se, de facto, se tratava ou não do pai do arguido neste processo;
28) Também este ponto foi incorrectamente julgado, e dai se requer a este Venerando Tribunal, a apreciação da matéria de facto;
29) Também fundamentou o Tribunal “a quo” a sentença recorrida, no depoimento da testemunha: A..., que disse ter corrido na terra que o arguido tinha tido um acidente de ciclomotor;
30) Ora, a testemunha referiu que apenas que “ouviu dizer” que o arguido teve um acidente de mota, mas sem saber precisar onde, nem quando;
31) Pelo que, não se pode compreender como pode a Meritíssima Juiz fundar a sentença, naquilo que a testemunha afirma “ter ouvido dizer”, isto é, num depoimento indirecto da testemunha;
32) Daí que, e como o depoimento das testemunhas foi gravado, se requeira a renovação da prova, nos termos do artigo 4300 do Código do Processo Penal;
33) O que desde já aqui se requer;
34) Atendendo à prova produzida em Audiência de Julgamento, nunca se poderia condenar o Arguido, pois decidir-se como se decidiu, viola as regras elementares do C.P.P. e C.P. aplicáveis ao caso em apreço, nomeadamente o princípio “in dubio pro reo”;
35) Para contrariar o que consta da sentença recorrida, requerer-se a audição do depoimento das testemunhas que se encontra gravado, sendo necessário para o efeito que a secção transcreva tais depoimentos de forma a que esse Venerando Tribunal possa apreciar convenientemente tudo o que se passou nas audiências de julgamento;
36) O que se passou e provou na audiência de julgamento é aquilo que resulta do depoimento das testemunhas inquiridas, e que é aquele que se encontra gravado;
37) No caso dos autos, nenhum dos factos dados como provados, nomeadamente os que se deixaram supra destacados, têm suporte na prova produzida em audiência de julgamento;
38) Provado ficou que o condutor do motociclo já não se encontrava no local do acidente quando ai chegou a G.N.R., e que o condutor do outro veículo envolvido no acidente, não pode identificar o referido condutor, por já não se recordar da sua aparência, estatura, idade, etc;
39) Pelo que, a acusação não conseguiu estabelecer o nexo causal entre a eventual prática do crime descrito na acusação e o agente que o praticou;
40) Assim, não se compreende a sentença de fls.;
41) Daí que, atendendo à prova constante dos autos, o Arguido, R... teria que ser absolvido, pois não existe qualquer prova que tenha sido este o condutor do ciclomotor interveniente no acidente, referenciado nestes autos;
42) Assim, terá de ser considerada nula a Sentença recorrida por falta de fundamentação, no que concerne ao nexo causal entre a eventual prática do crime e o agente que o praticou;
43) Foi o Arguido condenado, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco euros), num total de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros);
44) Porém, caso, este Venerando Tribunal, não decida pela absolvição do Arguido, a pena de multa terá de ser substituída por admoestação;
45) A Meritíssima Juiz na ponderação que fez, da eventual substituição da pena de multa por admoestação, entendeu relevar o facto de o Arguido em audiência, ter feito uso do seu direito ao silêncio;
46) Salvo o devido respeito, erradamente, pois certo é, que o arguido exerceu na audiência de discussão e julgamento um direito seu, consagrado no artigo 61º, nº 1, alínea c) do C.P.P., sendo que o direito ao silêncio é uma das mais importantes manifestações do direito de defesa no direito processual moderno;
47) Nestes termos, o exercício do direito ao silêncio, em nada poderá desfavorecer o arguido;
48) Este direito legalmente consagrado, atravessa transversalmente todo o processo penal, sem que daí possa resultar qualquer prejuízo para a posição processual do arguido;
49) Como bem se reconhece na Sentença recorrida, quando se diz: “Ora, o direito ao silêncio não pode em caso algum prejudicar o arguido ...”;
50) No entanto, na mesma Sentença, veio a entender-se que o arguido não permitiu que o Tribunal pudesse fazer um juízo acerca do arrependimento e da auto-estrada do arguido e bem assim se este interiorizou a gravidade da conduta praticada;
51) Pelo que não se evidencia, que asserção tenha resultado da posição assumida pelo arguido com o seu silêncio;
52) O Arguido bem podia ter prestado declarações e mesmo assim ter o Tribunal concluído de modo idêntico;
53) Pelo que, e também nesta parte, tem a Sentença recorrida de ser considerada nula, por violação do princípio estruturante do nosso Processo Penal, da salvaguarda do Princípio do Direito ao Silêncio, previsto no artigo 61º, nº 1, alínea c) do C.P.P.;
54) Assim, estão reunidos todos os pressupostos para que a pena de multa seja substituída pela pena de admoestação;
55) Pois, os pressupostos de que a lei penal faz depender a substituição da pena de multa pela pena de admoestação, são os vertidos no artigo 60º do Código Penal;
56) Refere o nº 1 do artigo 60° do C.P., na sua redacção actual que: “Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação ...”;
57) E esclarece o nº 2 do mesmo artigo, que: “A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ...”
58) Da Sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos: o Arguido é estudante e, simultaneamente, trabalha como vigilante no serviço de transporte do Centro de Estudos de Fátima; no meio social em que se insere, o Arguido é tido como bom rapaz, bom amigo, estudante e trabalhador; não são conhecidos antecedentes criminais ao Arguido;
59) O Arguido à data dos factos, tinha acabado de completar 18 anos de idade;
60) Sendo, que dos factos dados como provados, conclui-se que o Arguido sempre se pautou pelas regras de boa conduta;
61) Sempre foi uma pessoa séria, trabalhadora e cumpridora;
62) Foi condenado a uma pena de multa em medida não superior a 240 dias;
63) Não tem antecedentes criminais;
64) Sendo que, a aplicação de uma pena de admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;
65) Isto porque, no caso concreto, não existe dano a reparar, é viável um juízo de prognose favorável à ressocialização do Arguido e a pena de admoestação não põe em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração;
66) Sendo que a admoestação é uma medida pedagógica e reeducativa que, sempre que se verifiquem os pressupostos formais estipulados no artigo 60° do CP deve ser decretada, pois mostra-se adequada às condições de punibilidade;
67) Assim, se o tribunal aplica uma pena de multa em medida não superior a 240 dias, tem de apreciar fundamentadamente a possibilidade de substituir essa pena, por uma medida menos gravosa, pelo que não pode deixar de indagar a verificação das respectivas condições (reparação do dano, prognose e necessidade de prevenção) e exarar o resultado dessa indagação, decidindo em conformidade;
68) Também nesta parte, deverá ser a Sentença recorrida ser revogada, aplicando-­se ao Arguido a pena de admoestação, caso este não venha a ser absolvido, como acima já se referiu;
69) Viola assim, a Sentença recorrida o disposto no artigo 410° n° 2 alínea a), b) e c);
70) A motivação da Meritíssima Juiz foi uma mera “exclusão de partes” ­ANALOGIA ou INVENÇÃO;
71) No nosso direito criminal não se pode inventar. Ou prova-se ou não se prova.
Na dúvida absolve-se o Arguido;
72) É um princípio legal e constitucional – “in dubio pro reo”;
73) O que nunca deveria ter sucedido, pois tendo em conta o princípio consagrado no nosso ordenamento penal, que é o princípio “in dubio pro reo” a condenação nunca deveria ter sucedido;
74) Não existindo provas que titulem a incriminação, e neste caso em concreto, que o Arguido foi interveniente do acidente descrito na Acusação, o resultado só poderá ser a ABSOLVIÇÃO;
75) Perante todo o exposto, viola a Sentença recorrida o princípio constitucional previsto no artigo 32° nº 2 C.R.P. no qual refere que “TODO O ARGUIDO SE PRESUME INOCENTE ATÉ PROVA EM CONTRÁRIO, E TRÃNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE CONDENAÇÃO”;
76) Pois, e conforme pode ler-se na “Constituição Portuguesa Anotada” Jorge Miranda - Rui Medeiros, Coimbra Editora, tomo 1, 2005 pag 356 e acima transcrito;
77) Os factos dados como provados na Sentença recorrida são insuficientes para fundamentar uma imputação por negligência e, consequentemente, de suportar a condenação do Arguido;
78) A Sentença recorrida é nula nos termos do artigo 379°, 374º e 3750 do Código do Processo Penal;
79) Nos termos do artigo 97° do C.P.P., “Os actos decisórios são sempre fundamentados”;
80) A Sentença recorrida, sofre também do vício da falta de fundamentação, dado que, conforme já se disse, ao não enumerar e indicar as provas que serviram para dar como provada efectivamente o embate da moto no veiculo do Arguido deve-se à inversão de marcha por esta efectuada;
81) A Sentença recorrida viola todos os princípios de prova consagrados tanto no C.P.P., como na Constituição da República Portuguesa;
82) Não existem dúvidas que a Sentença recorrida viola o disposto no artigo 410° do C.P.P., e que esse Venerando Tribunal pode apreciar as questões postas em crise, nos termos do nº 2 desta disposição processual/legal;
83) Na verdade, na Sentença recorrida: existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; Erro notório na apreciação da prova;
84) Lendo, atentamente, a Sentença recorrida, nesta parte, ou noutra parte qualquer, verifica-se que não se indica nela um único facto concreto susceptível de revelar, informar, e fundamentar, a real e efectiva situação, do verdadeiro motivo da condenação do Arguido;
85) Não tendo descrito fundamentadamente na Sentença recorrida, as razões porque não foram os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Arguido, tem forçosamente de ser alterada a matéria de facto dada como provada e não provada, atendendo a esse depoimento acima transcrito, nos termos do artigo 412° do C.P.P.;
86) Sendo o Arguido primário, conforme resultou provado no Sentença recorrida, como nunca poderia aplicar-se uma condenação da forma e modo como foi;
87) O nosso Código é no sentido de recuperar os arguidos primários, e apenas se podem condenar os arguidos, quando a conduta destes não reúnem os requisitos para a absolvição, o que não é o caso;
88) A Sentença é nula, por interpretação e aplicação deficiente das normas legais citadas, conforme já acima se disse e provou;
89) V. Exas. certamente REVOGARÃO a Sentença recorrida, absolvendo a Arguida do crime de que foi condenada, por ser de LEI, DIREITO E JUSTIÇA;
90) A Sentença recorrida viola:
- Artigo 97°, 374°, 375°, 3790 e 410º do C.P.P.
- Artigos 13°, 205º, 207º e 208° da C. R. P.
Nestes termos, e, melhores de direito, requer-se a V. Exa. a REVOGAÇÃO da Sentença recorrida:
1) Absolvendo o Arguido dos crimes que foi condenado, tendo em conta tudo o que acima se disse;
2) Caso assim se não entenda, deverá ser aplicada ao arguido a pena de Admoestação, pelos motivos acima expostos.
Por ser de lei, direito e justiça.

O M.P. respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se também pela improcedência do recurso.
O arguido, notificado deste parecer, respondeu, mantendo a posição anteriormente assumida.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto;
- Penalização do arguido por ter feito uso do direito ao silêncio;
- Substituição da multa por admoestação;
- Vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Falta de fundamentação da sentença.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
No dia 7 de Outubro de 2006, pelas 13H00, o arguido conduzia um veículo ciclomotor, sem matrícula aposta, na Rua da Fonte, Mourões, Leiria.
Fazia-o sem estar habilitado para a condução dessa categoria de veículo pois não possuía licença de condução ou documento equivalente que o habilitasse a conduzir tal espécie de veículo.
Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido é estudante e, simultaneamente, trabalha como vigilante no serviço de transporte do Centro de Estudos de Fátima.
No meio social em que se insere é tido como bom rapaz, bom amigo, estudante e trabalhador.
Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os que foram dados como provados, ou com interesse para a decisão da causa.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise critica, conjugação e ponderação de toda a prova produzida em audiência, apreciada de forma objectiva e segundo as regras da normalidade do acontecer, mais concretamente:
O arguido fez uso do direito ao silêncio, e nenhuma das testemunhas de acusação inquiridas em audiência reconheceu o arguido, no entanto o Tribunal não ficou com dúvidas quanto à prática dos factos imputados ao arguido pelo seguinte:
Primeiro, a testemunha F..., deu conta de nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação ter sido interveniente num acidente de viação, envolvendo o seu veiculo e um veiculo ciclomotor conduzido por um jovem, que era o único ocupante do ciclomotor, sendo que deu conta também que o condutor do ciclomotor foi o único acidentado e o único interveniente a necessitar de tratamento hospitalar e que o mesmo transportado para o Hospital pelos bombeiros e que quando a GNR chegou ao local o condutor do ciclomotor já não estava no local por ter sido transportado para o hospital. Esta testemunha fez depoimento perfeitamente credível face à espontaneidade com que depôs, à naturalidade, rigor e isenção, sendo que nenhum interesse directo tinha na causa.
Segundo, a testemunha V..., da GNR-BT, deu conta de ter sido chamado a um acidente, ocorrido nas circunstâncias de tempo e local descritas na acusação, que no local constatou a ocorrência duma colisão entre um automóvel e um ciclomotor, e que nesse local estava um individuo que se identificou como pai do condutor do ciclomotor e forneceu a respectiva identificação e mais deu conta que, como é procedimento habitual da GNR nestas situações, se dirigiu ao hospital onde num primeiro momento obteve a identificação do sinistrado, pelo terminal de computador e registo de entrada de sinistrados do hospital, e que após, contactou directamente o referido sinistrado que se identificou perante si como sendo R..., conforme consta do auto de notícia, de fls. 2, que diga-se não foi impugnado, que o mesmo não possuía licença de condução e que foi com base nas declarações deste sinistrado e do outro condutor interveniente que elaborou a participação de acidente junta a fls. 3 a 6, que corrobora a factualidade descrita na acusação. Ora, esta testemunha, também insuspeita por nenhum interesse ter na causa e credível face ao modo rigoroso e isento com que depôs.
Depois, pondera-se também o facto de o ciclomotor estar registado em nome de F…, pai do arguido, conforme participação de acidente de fls, 3 a 6.
Finalmente, pondera-se ainda o facto de, como disse a testemunha A..., colega e amigo do arguido, ter corrido na terra que o arguido tinha tido um acidente de ciclomotor.
Ora, a conjugação dos referidos factores, criam no Tribunal, a convicção sem margem para dúvidas, que o arguido era efectivamente, o condutor do ciclomotor aquando do acidente, e, como tal permite dar como provada a factualidade constante da acusação.
No mais, baseou-se o Tribunal no Certificado de Registo Criminal junto aos autos quanto a antecedentes criminais.
E, no tocante à situação pessoal e económica do arguido baseou-se o Tribunal nos documentos juntos aos autos a fls. 68 e no depoimento das testemunhas A... e C..., ambos amigos e colegas do arguido, que dessa factualidade deram conta e mereceram credibilidade face à isenta com que depuseram.

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Como resulta patente das “conclusões” do recurso acima transcritas, estas estão longe de constituir o resumo sintético da motivação, conformação que lhes é apontada pelo nº 1 do art. 412º do Código de Processo Penal (código a que se reportam também as demais normas citadas sem menção do diploma de origem), e que serve, entre outras finalidades, a da delimitação do objecto do recurso - Jurisprudência constante dos tribunais superiores., que opera a vinculação temática do tribunal superior, definindo o âmbito do conhecimento que obrigatoriamente se impõe ao tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que, como tal, podem sempre ser oficiosamente apreciadas independentemente de terem ou não sido suscitadas pelo recorrente na motivação.
Dessas conclusões – e apesar da sua extensão – resulta, logo numa primeira aproximação, que o arguido e ora recorrente pretende impugnar a matéria de facto, sem que, contudo, tenha respeitado os preceitos legais atinentes a essa impugnação, já que não indicou os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa e os segmentos da gravação em que funda a sua impugnação.

Com efeito, estabelece o nº 1 do art. 412º que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões…”.
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques, “o actual legislador usa o termo motivação num sentido que não difere daquele que era atribuído às alegações do código anterior, e que se materializa na demonstração da razão que assiste à parte recorrente, ou seja, na justificação do ponto de vista que se quer fazer vingar em oposição ao decidido” - “Recursos em Processo Penal”, 5ª Ed., pag. 91.. Simplesmente, a motivação divide-se em duas partes perfeitamente distintas, mas interligadas entre si, cumprindo cada uma delas a sua própria função:
- A motivação propriamente dita, ou motivação stricto sensu, constituída pelo conjunto de argumentos ou razões que consubstanciam o inconformismo do recorrente com a decisão atacada (os fundamentos do recurso, no dizer da lei);
- As conclusões, constituídas por uma síntese ou resumo dos fundamentos desenvolvidos no corpo da motivação, concretizando os aspectos que foram mal decididos (onde se decidiu mal), as razões que justificam decisão diversa (porque se decidiu mal) e o sentido da decisão pretendida (como se deveria ter decidido).

O corpo da motivação é constituído pelo conjunto fundamentado de argumentos da mais diversa ordem em que o recorrente estriba a sua discordância com a decisão do tribunal recorrido, sejam os erros do julgamento de facto ou de direito ou os vícios da decisão. Mas, para além de concatenar, numa sequência lógica ou orgânica, a razão da discordância relativamente ao decidido, fixa definitivamente a abordagem que o recorrente pretende fazer da decisão recorrida, em ordem a obter a sua alteração ou revogação, isto é, delimita o âmbito do recurso, que já não poderá ser alterado e que também não poderá ser excedido pelas conclusões.

Já as conclusões, enquanto resumo da motivação stricto sensu, delimitam o objecto do recurso, em obediência às imposições legais, nos seguintes termos:
- Sintetizando os argumentos expendidos na motivação;
- Indicando as normas jurídicas violadas e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, indicando a norma que o recorrente entende dever ser aplicada;
- Indicando o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou o sentido com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que deveria ter sido aplicada;
- Indicando os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
- Indicando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, estas por referência ao consignado na acta e com indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação;
- Indicando ainda, se for caso disso, as provas que devem ser renovadas, também por referência ao consignado em acta e com a mesma indicação concreta dos fundamentos da impugnação;
- E indicando, por fim, se houver recursos retidos, quais os que mantêm interesse.
A delimitação do objecto do recurso pelas conclusões formuladas estabelece uma fronteira que se impõe ao tribunal superior, de tal sorte que se o recorrente tratar uma questão na motivação e não a retomar nas conclusões, a questão ficará arredada do âmbito do recurso.
Se porventura as conclusões faltarem ou se delas não for possível deduzir as indicações acima referidas, o relator convidará o recorrente a apresentá-las, completá-las ou esclarecê-las, sob pena de rejeição do recurso ou de não conhecimento parcial. Com uma importantíssima limitação, contudo: o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso já fixado na motivação (nº 4 do art. 417º). Assim, não pode o recorrente aproveitar o convite previsto no nº 3 deste art. 417º para tratar questões não abordadas na motivação que inicialmente apresentou, assim como não poderá tratar em sede de conclusões aspectos não abordados na motivação. E se o fizer, não serão conhecidos, por essas “conclusões” não traduzirem a síntese de matéria antes tratada no corpo da motivação.

Muito poderíamos ainda escrever sobre o tema, mas a questão tem sido tão repetidamente tratada pela jurisprudência que se nos afigura inútil acrescentar o que quer que seja. De todo o modo, na medida em que o convite para correcção das conclusões se traduziria em maiores delongas no andamento do processo e o alegado permite compreender o âmbito da impugnação pretendida, daremos por ultrapassada a questão da correcção formal da impugnação, com vista ao conhecimento da matéria de facto.

Ora, a tese expendida pelo recorrente na impugnação da matéria de facto, levada às últimas consequências, equivaleria a negar ao julgador a possibilidade de se afirmar como ser inteligente; equivaleria a aceitar como limite da actividade jurisdicional a estrita vinculação do julgador às afirmações e negações das testemunhas, prescindindo em absoluto de qualquer juízo crítico, da consideração das regras da experiência ou mesmo do mero aflorar da inteligência relacional, cingindo a gnose judiciária ao sim e ao não ditos em audiência, sem qualquer espaço para a chamada valoração crítica.
Felizmente, não é esse o caminho apontado pela lei adjectiva penal. Bem pelo contrário, a valoração crítica da prova constitui o núcleo essencial da fase decisória, sendo através dela que o julgador, apreciando o facto em correlação com a prova produzida, se distancia do jurista para se afirmar como juiz. Daí que a parte final do nº 2 do art. 374º imponha o “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A conjugação desta última norma com o disposto no art. 127º desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais (documentos, depoimentos para memória futura, perícias, relatórios) - Consideram-se “produzidos em audiência”, desde que constem dos autos e tenham sido regularmente notificados aos sujeitos processuais, facultando-se-lhes a possibilidade de sobre eles se pronunciarem.. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente (por exemplo, valorando especialmente um ou outro depoimento mais marcante, fruto da credibilidade do seu autor; desvalorizando depoimentos mais emotivos e menos objectivos; relacionando conclusões de prova pericial com declarações ou depoimentos; valorando o teor de escutas telefónicas à luz do contexto das conversas e compaginando-as com a prova testemunhal ou documental ou com apreensões efectuadas), em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos (por exemplo, as dúvidas resultantes de um depoimento aparentemente seguro que no entanto, em momentos críticos, perante perguntas imprevisíveis, é acompanhado de inflexões na voz, hesitações antes da resposta, contradições com afirmações anteriores, deduções ilógicas; as dúvidas resultantes do depoimento da testemunha que em vez de responder linearmente à questão que lhe é posta, procura ansiosamente no olhar de quem a interroga o caminho para a resposta; as certezas decorrentes do depoimento da testemunha assertiva e peremptória que de repente se vê confrontada com uma pergunta que manifestamente não esperava e que antes de responder procura uma indicação no rosto da “parte” que não quer prejudicar), mas também deduzindo dos factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa [as chamadas presunções judiciais, tantas vezes diabolizadas em alegações que confundem prova por presunção com presunção de culpa. Esta última, é absolutamente proibida em processo penal (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa); já as presunções judiciais são um meio de prova lícito (349º e 351º do Código Civil) e, como tal, admissível em processo penal (art. 125º do CPP) - Não sendo meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. De resto, este é um mecanismo recorrente na formação da convicção. Basta pensar na prova da intenção criminosa; a intenção, enquanto elemento volitivo do dolo (enquanto decisão pela conduta, suposto serem conhecidos pelo agente os elementos do tipo legal de crime), na medida em que traduz um acontecimento da vida psicológica, da vivência interna, não é facto directamente percepcionável pelos sentidos do espectador, havendo que inferi-la a partir da exteriorização da conduta. Só por recurso à presunção judicial, diluída naquilo que em processo penal se designa por “livre convicção”, é possível determiná-la, através de outros factos susceptíveis de percepção directa e das máximas da experiência, extraindo-se como conclusão o facto presumido, que assim se pode ter como provado.. Valorando factos conhecidos à luz do contexto em que ocorreram e com recurso às regras da experiência comum é possível extrair conclusões relativas a factos que não foram objecto de prova directa, mas que nem por isso se deverão considerar sem mais como não provados]. É precisamente esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto. Assim se efectiva a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP.

Vem tudo isto a propósito da impugnação, pelo recorrente, da matéria de facto que em primeira instância se teve como provada. Diz, em síntese, o recorrente, que embora se tenha dado como provado que o ciclomotor interveniente no acidente era conduzido pelo arguido, nenhuma das pessoas que se encontravam no local o viu. Concretiza depois que a testemunha F... - o outro interveniente no acidente - não referiu em momento algum que era o arguido que conduzia o veículo, nem o reconheceu; que a testemunha V..., da GNR-BT, já não viu o condutor do ciclomotor no local do acidente por este ter sido transportado para o hospital, e apenas no hospital o identificou com base na anterior indicação de pessoa que se encontrava no local e que se identificou como pai do condutor em questão; e que a testemunha A... apenas “ouviu dizer” na terra onde vive, que o arguido teve um acidente de mota. Com base nestas constatações, impugna o provado e clama pelo funcionamento do princípio in dubio pro reo.
A Mmª Juiz fez, no entanto, uma correcta leitura dos elementos de prova disponíveis e deles retirou as pertinentes ilações, explicitando detalhadamente o modo como formou a sua convicção. Na verdade, não se vê que tenha errado nas conclusões que retirou da prova, ou que tais conclusões sejam abusivas ou desajustadas. Com efeito, a testemunha F... esclareceu que o veículo ciclomotor era conduzido por um jovem, seu único ocupante, que foi também o único interveniente a necessitar de tratamento hospitalar e que foi transportado para o Hospital pelos bombeiros, ainda que não o tenha reconhecido em audiência como sendo o arguido, invocando o tempo decorrido desde o acidente. Por seu turno, a testemunha V..., da GNR-BT, constatou a ocorrência duma colisão entre um automóvel e um ciclomotor e obteve a identidade do condutor do ciclomotor através de uma pessoa que se encontrava no local e que se identificou como pai desse condutor, forneceu a respectiva identificação e informou que o filho tinha sido transportado para o hospital. A testemunha dirigiu-se ao hospital, obteve a identificação do sinistrado pelo registo de entrada de sinistrados do hospital, após o que o contactou directamente, tendo-se este identificado perante si como sendo R..., identificação que fez constar do auto de notícia de fls. 2. Por outro lado, o referido ciclomotor é propriedade de F…, pai do arguido, como resulta da participação de acidente de fls. 3 a 6. Por fim, constou na terra – disse-o a testemunha A..., colega e amigo do arguido – que o arguido tinha tido um acidente de ciclomotor.
Perante tudo isto, se não era o arguido o condutor do ciclomotor, é caso para dizer que são fantásticas as coincidências verificadas! Sim, porque seria, no mínimo, estranho, o facto de alguém, no local do acidente, se apresentar perante a testemunha V... (cabo da GNR-BT que se deslocou ao local para tomar conta da ocorrência) como pai do condutor do ciclomotor, informando que o filho tinha sido transportado para o hospital, se de facto não o fosse (admitamos que essa pessoa não era, efectivamente, o pai do arguido; quem teria interesse em fazer-se passar por tal? E com que finalidade? Ou pretende o arguido que se trata de uma “cabala” montada para o incriminar por um crime de condução de veículo com motor sem habilitação legal…?).
De todo o modo, foi com base nessa informação que o cabo V... diligentemente se dirigiu ao Hospital e verificou a existência de um registo de entrada do arguido como sinistrado. E é na verdade extraordinário que no mesmo dia em que ocorreu o acidente antes referido, que originou um sinistrado transportado para o hospital, o arguido tenha dado entrada no mesmo hospital como sinistrado (claro que se pode tratar de mera coincidência… e o arguido não tinha que explicar o porquê dessa situação, já que nem sequer era obrigado a prestar declarações, como, aliás, as não prestou).
Por outro lado, o ciclomotor em questão era propriedade de F…., pai do arguido (porventura apenas mais uma coincidência…ainda que já sejam muitas…).
Mas há mais: após confirmar a sua entrada pelo registo de entrada de sinistrados, o cabo V... falou directamente com o arguido, ainda no hospital, vindo a elaborar a participação do acidente com base nas declarações de ambos os condutores, como nela deixou consignado.
Aqui chegados, há que perguntar: se o arguido não foi interveniente no sinistro, como é que foi fornecer, nessa qualidade, a sua versão do acidente?
A resposta, óbvia, decorrente desta pergunta e das antes notadas coincidências só pode ser uma e a certeza judiciária subjacente a este facto – o arguido era o condutor do ciclomotor – afirma-se através de uma presunção judicial, inserida no processo de formação da livre convicção do julgador por apelo a juízos que não põem em causa as máximas da experiência, verificando-se uma relação directa e segura, claramente perceptível, sem necessidade de elaboradas conjecturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sem que existam “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas) e a presunção conduz a um facto real que assim se firma sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado atingido. Por fim, e também fundamental, o funcionamento da presunção judicial nos termos apontados não colide com o princípio in dubio pro reo.
Erro de julgamento haveria, e seria manifesto, se se afirmasse o contrário!
Quanto à “nulidade” decorrente da “…falta de fundamentação no que concerne ao nexo causal entre a eventual prática do crime e o agente que o praticou” (conclusão 42ª), não só a confusão de conceitos se oferece como evidente (o recorrente quer, na verdade, referir-se ao «nexo de imputação» do facto ao agente; o «nexo causal» estabelece-se entre a acção e o resultado), como a questão suscitada, nos termos em que o foi, a verificar-se, se reconduziria a erro de julgamento da matéria de facto ou ao vício do art. 410º, nº 2, al. c).
Em conclusão, no que concerne à impugnação da decisão de facto e porque também não se vê que a decisão padeça de qualquer dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, a matéria de facto há-de ter-se por definitivamente fixada.

Sustenta o arguido que foi prejudicado por ter usado do seu direito ao silêncio. Não se vê, no entanto, que assim seja. Na verdade, escreveu-se na sentença: “No caso concreto, o arguido em sede de contestação negou a autoria dos factos e em audiência fez uso do direito ao silêncio. Ora, o direito ao silêncio não pode em caso algum prejudicar o arguido, no entanto, ao não falar e tendo presente que o tribunal, com base na demais prova, deu como provada a autoria dos factos pelo arguido, o arguido não deu conta das suas motivações para a condução, nem permitiu que o tribunal pudesse fazer um juízo acerca do arrependimento e da auto-censura de que o arguido possa ser dotado e bem assim se interiorizou a gravidade da conduta praticada. Assim e face ao exposto, a simples ausência de antecedentes criminais, idade e boa inserção social não bastam para a substituição da pena de multa por admoestação, sendo sempre necessário um juízo de prognose favorável ou seja, o tribunal sempre tem de concluir que, por aquele meio (admoestação) se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Estas constatações são acertadas. A génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são imputados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se auto-incrimine. No entanto, se o uso do direito ao silêncio não poderá em caso algum prejudicar o arguido, também o não deverá beneficiar! Aliás, não se vislumbra nenhuma razão de ordem lógica, ou mesmo jurídica, para que um arguido que se refugia no direito ao silêncio deva ser beneficiado, porventura na mesma medida dos arguidos que colaboram com a justiça ou que manifestam sincero arrependimento. O silêncio constitui, é certo, um direito do arguido, mas não se traduz numa circunstância atenuante; não implica diminuição da culpa e também não reduz a ilicitude do facto. Logo, o silêncio não beneficia o arguido; apenas o não prejudica!
Ou seja, também neste particular aspecto não assiste razão ao recorrente, já que não ocorre violação do art. 61º, nº 1, al. d).

Prossegue o arguido, sustentando que a manter-se a sua condenação, esta terá de ser substituída pela pena de admoestação.
Não vemos porquê. A admoestação pressupõe que o tribunal conclua pela sua adequação e suficiência para assegurar as finalidades da punição, segundo dispõe o art. 60º, nº 2, do Código Penal. Decorre do nº 1 do art. 40º do mesmo diploma que tais finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. O crime praticado pelo arguido, como se salientou na decisão recorrida, é um crime de perigo comum, e de perigo abstracto, relativamente ao qual se colocam elevadíssimas exigências de prevenção geral, bem expressas na frequência com que ocorrem crimes desta natureza e na falta de consciencialização da comunidade para a gravidade de condutas como a praticada pelo arguido, patenteada pela indiferença frequentemente associada à condenação por este tipo de crime, não obstante a sinistralidade rodoviária atingir em Portugal patamares elevadíssimos e se apresentar intimamente associada ao exercício impreparado da condução, tudo a exigir uma intervenção desmotivadora, que só será eficaz ao nível do sancionamento deste tipo de condutas. No caso, as exigências de prevenção geral não se compadecem, pois, com uma mera pena de admoestação, tanto mais que não se demonstraram factos reveladores de sincero arrependimento ou outros que se revistam de especial validade para a pretendida substituição da multa por admoestação. Vale isto por dizer que a mera admoestação, no caso vertente, deixaria totalmente desprotegido o bem jurídico tutelado pela norma violada, pelo que essa sanção não assegura as finalidades assinaladas às penas criminais.

Prossegue o arguido, invocando, ainda que conclusivamente, a verificação dos vícios – todos eles – previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP.
Conforme expressamente resulta do texto do nº 2 do citado art. 410º, os vícios referidos nas respectivas alíneas a) a c) apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O primeiro desses vícios é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a)), que se traduz numa insuficiência dos factos provados para a conclusão que deles se extraiu, vício que se verifica quando a solução de direito, seja ela condenatória ou absolutória, não tem suporte seguro nos elementos de facto provados, devendo concluir-se que tais factos não consentem a decisão encontrada - Vício que não se confunde, no entanto, com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, questão que se situa no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, com sede legal no art. 127º do CPP..
O vício referido na al. b) é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão.
A al. c) contempla o erro notório na apreciação da prova, vício que “existe quando, do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta evidente, por não passar despercebido ao comum dos observadores, uma conclusão sobre o significado da prova, contrária àquela a que o tribunal chegou a respeito dos factos relevantes para a decisão de direito” - Entre outros, conferir, no sentido apontado, o Ac. do STJ de 22 de Abril de 2004, in “Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça”, ano XII, tomo 2, págs. 166/167..
Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, não se detecta a verificação de qualquer daqueles vícios. Na verdade, os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão adoptada, não se vislumbra incompatibilidade entre o provado e o não provado ou entre a fundamentação e a decisão e não é perceptível qualquer erro grosseiro e ostensivo na apreciação da prova.

O recorrente renova depois o argumento da violação do princípio in dubio pro reo. Já antes aflorámos a questão, consignando que não se detecta tal violação. Acrescentaremos, não obstante, que a prova produzida, tal como foi analisada e explicitada, não gerou qualquer dúvida que devesse levar à consideração dos factos como não provados. Ora, uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com pleno respeito pelos princípios que disciplinam a prova sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação desse princípio que, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Com efeito, o princípio in dubio pro reo afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal - Cfr. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, pág. 213..
No caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação do provado, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando coerentemente os elementos que serviram para fundar a convicção do tribunal. O posicionamento do recorrente, sustentando que deveria ter sido outro o quadro factual provado encontra-se totalmente à margem do condicionalismo legal. O erro notório na apreciação da prova em que se traduziria a violação do in dubio pro reo não reside na desconformidade entre a decisão de facto assumida pelo julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente - carecendo esta última de qualquer relevância jurídica - verificando-se apenas quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resultar da motivação invocada uma conclusão diversa da que foi extraída pelo tribunal recorrido na fixação da matéria de facto. Nesta perspectiva, a violação do princípio em questão apenas poderia ser afirmada se, face aos factos que a 1ª instância teve como provados e aos respectivos fundamentos, se evidenciasse que, na dúvida, o tribunal recorrido tinha optado por decidir contra o arguido; o que não sucede, já que a decisão sobre a matéria de facto foi motivada por referência às provas que fundamentaram a convicção do tribunal, efectuando a sua análise crítica com respeito pelas regras da experiência comum. Consequentemente, não ocorre violação daquele princípio nem foi beliscado o preceito constante do art. 32º, nº 2, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa.

Prossegue o arguido arguindo a falta de fundamentação da sentença, mas sem razão, uma vez mais, como resulta já de tudo o que anteriormente se disse. A sentença foi devidamente fundamentada, tanto no que tange ao julgamento de facto como no que concerne à fundamentação jurídica, já que o tribunal recorrido indicou as provas em que baseou o julgamento da matéria de facto e procedeu à sua análise crítica, procedendo depois a uma correcta subsunção do direito aos factos provados.
O recurso afirma-se, pois, como totalmente improcedente.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, nega-se provimento ao recurso.
Por ter decaído integralmente no recurso que interpôs pagará o recorrente a taxa de justiça de 4 UC`s.

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)