Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1380/03.1TBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
DEVER DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 03/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ÍLHAVO - 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 668.º, N.º 1, ALÍNEA C), DO C. P. CIVIL E ARTIGO 798.º DO C. CIVIL
Sumário: 1) A nulidade da sentença decorrente da contradição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o erro de julgamento.

2) Não se verifica a nulidade da sentença, quando a decisão, embora incorrecta quanto à subsunção dos factos ao direito ou à interpretação deste, é corolário lógico dos fundamentos.

3) A impossibilidade de ceder a exploração de um estabelecimento e de arrendar uma habitação, devido ao corte do fornecimento de água pela entidade obrigada ao abastecimento, faz incorrer esta em obrigação de indemnizar.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

A... , casado, residente ....., instaurou acção com forma de processo ordinário contra B... , com sede no ...., alegando, em resumo, ser proprietário de um prédio destinado a habitação e comércio, sito no Forte da Barra, Ílhavo, ter celebrado, há mais de 25 anos, dois contratos de fornecimento de água ao mesmo prédio com a C... , antecessora da ré, que ambas as partes cumpriram até 2003, altura em que a ré, sem aviso, cortou o abastecimento durante alguns meses, o que lhe causou prejuízos no valor de € 15.300,00, derivados da impossibilidade de arrendar o prédio no período de verão desse ano.

            Concluiu pelos pedidos de condenação da ré a reconhecer-lhe o direito a ter o dito prédio abastecido de água da sua rede terrestre, mediante o pagamento do preço do serviço, a abster-se de praticar quaisquer actos impeditivos daquele direito e a pagar-lhe uma indemnização no montante de € 15.300,00 pelos prejuízos causados.

            A ré contestou, afirmando, por um lado, que o prédio identificado pelo autor ocupa o domínio público marítimo, que o autor não dispõe de título que legitime a ocupação e que não existe contrato algum de abastecimento, pelo que se limitou a bloquear uma ligação não autorizada, e impugnando, por outro, a restante matéria alegada.

            O autor replicou, por forma a contrariar a versão da ré e a manter o conteúdo da petição inicial.

            No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide.

            O despacho de selecção da matéria de facto não foi objecto de reclamação.

            Realizado o julgamento e fixada, na sua sequência, a matéria de facto assente, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou a ré nos pedidos formulados (remetendo, no entanto, o quantitativo da indemnização a suportar para liquidação em incidente próprio).

            Irresignada, interpôs a ré recurso da sentença (apelação, com efeito devolutivo), com vista à respectiva revogação no segmento em que a condenou a pagar ao autor a quantia que se viesse a liquidar, tendo apresentado, oportunamente, as suas alegações, que concluiu deste modo:

            1) A sentença é nula, devido à existência de contradição entre os fundamentos e a decisão.

            2) A matéria dos artigos 13 e 17 da base instrutória foi julgada incorrectamente.

            3) De todo o modo, dos factos dados por assentes não resulta que o autor tivesse sofrido quaisquer prejuízos.

            4) A condenação no que se liquidar em execução de sentença pressupõe a inexistência de factos provados (ou porque não eram conhecidos ou estavam em evolução aquando da propositura da acção ou que como tais se apresentavam no momento da decisão de facto), e não a inexistência da prova dos factos já produzidos e que foram alegados e submetidos a prova, embora se não tivessem provado, tal como ocorreu no caso dos autos.

            5) Foram violados os artigos 661,º, n.º 2, 668.º, n.º 1, alínea c), e 669.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC e 342.º do CC.

            O autor contra-alegou, defendendo a manutenção, in totum, da sentença.

            Colhidos os vistos legais, importa decidir.

            São três as questões suscitadas, que este Tribunal tem de resolver:

            a) A nulidade da sentença;

            b) A alteração da matéria de facto;

            c) O prejuízo.

            II. Na sentença deu-se por provada a seguinte matéria de facto:

            a) O prédio destinado a habitação e comércio, sito no Forte da Barra, neste concelho e comarca de Ílhavo, com a área coberta de 91 m2, a confrontar do norte com A..., do sul com herdeiros de ... e do nascente e poente com rua, inscrito na respectiva matriz da freguesia da Gafanha da Nazaré, sob o nº 115, está descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o n ° 03379/131089, a favor do Autor, pela inscrição G-1, por compra a D... (conforme consta de fls. 3 e 4 do processo apenso).
b) Em 3 de Dezembro de 1998, a C... foi transformada em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, passando a denominar-se B....
c) Devido a esta transformação, a Ré sucedeu automática e globalmente à C..., nomeadamente na obrigação de fornecer a água da rede terrestre em quantidade e qualidade suficientes para quem tinha contrato com a C....
d) No dia 1 de Abril de 2003, o Autor enviou à Ré a carta que se encontra junta ao processo apenso (a fls. 18), onde, entre o demais, reclamou a reposição urgente do fornecimento de água no seu prédio.
e) No dia 6 de Maio de 2003, o Autor recebeu do Presidente do Conselho de Administração da Ré a carta datada de 29 de Abril, onde lhe é comunicado a deliberação desse órgão, tomada em reunião de 16 desse mês, com o seguinte teor: “o Conselho de Administração tomou conhecimento da reclamação do Senhor A..., alegando que a B..., de forma intempestiva, lhe cortou o abastecimento de água a um prédio. Face à informação dos serviços que apuraram que o Senhor A... não é cliente da B..., o Conselho de Administração deliberou não aceitar a reclamação.”
f) Em carta datada de 13 de Maio de 2003, mas que enviou no dia 15, o Autor deu conta ao Presidente do Conselho de Administração da B..., , a estranheza que lhe causou a deliberação e comunicação, além do mais, por àquela data já o abastecimento da água ao prédio identificado em a) ter sido reposta e por o abastecimento de água ter sido contratado com a então C... há mais de 25 anos e sempre aquela entidade lhe cobrou aluguer dos respectivos contadores bem como a água consumida.

g) No dia 19 de Maio de 2003, cerca das 14.00 horas, o abastecimento de água foi cortado pela B....

h) O Autor, há mais de 25 anos, celebrou com a C... dois contratos de fornecimento de água da rede terrestre para o prédio identificado em a).
i) Mediante tais contratos, a C... instalou no prédio identificado em a) dois contadores, um destinado à medição do consumo de água da habitação do Autor e outro destinado à medição do consumo de água no seu comércio.
j) De acordo com tais contratos, o Autor obrigou-se a pagar à C... todas as importâncias que esta lhe facturasse relativas ao aluguer dos dois contadores e aos efectivos consumos de água.
l) Desde o início da vigência dos contratos, a C... nunca deixou de fornecer ao prédio referido em a) água potável em quantidade suficiente para obviar os gastos da habitação e comércio.
m) O Autor sempre pagou pontualmente todas as importâncias que esta lhe facturava pelo aluguer dos dois contadores e pelos consumos de água verificados.
n) Em 29 de Janeiro de 1999, a Ré emitiu o recibo n.° 9901464, comprovativo do pagamento pelo Autor das facturas n.°s 200195, 200196, 200466 e 200467, referentes ao identificado em h) a j).
o) Em Março de 2003, cortaram o fornecimento de água ao prédio identificado em a), o que originou uma reclamação verbal junto da Ré.

p) No dia 4 de Abril de 2003, o fornecimento de água ao prédio identificado em a) foi reposto.

q) O corte de abastecimento de água referido em g) impediu a filha do Autor, que aí morava na altura, de continuar a habitar o prédio referido em a) a partir do dia 19 de Maio de 2003. 

            r) Esse corte no abastecimento de água impedia a abertura ao púbico do estabelecimento de café instalado no mesmo prédio, sendo que na altura o mesmo não se encontrava em funcionamento.

            s) E também impedia o eventual arrendamento da habitação durante esse período.

t) Algum tempo antes desse corte de água, houve pessoas que estabeleceram conversações com o Autor com vista ao arrendamento dessa habitação durante cerca de três meses, no período entre Junho e Setembro, tendo sido falado o valor global de € 6.000,00, suportando este os custos dos abastecimentos de água e de energia eléctrica.

u) Aquelas mesmas pessoas também conversaram com o Autor com vista à cessão da exploração do estabelecimento de café durante o mesmo período de cerca de três meses, entre Junho e Setembro, tendo sido falado o valor global de € 9.000,00, suportando este também os custos dos abastecimentos de água e de energia eléctrica.

v) O prédio identificado em a) encontra-se construido em terreno sito na margem do Esteiro Oudinot, estando integrado no domínio público marítimo.

x) Em vistoria efectuada ao local pelos respectivos serviços, em 28 de Maio de 1997, foi constado que o abastecimento de água ao prédio identificado em a) estava a ser feita por uma ligação não autorizada de ramal à rede privativa da então C....

III. O direito:

a) A nulidade da sentença

            Na óptica da ré, a circunstância de ter sido condenada a pagar ao autor uma quantia a liquidar através do meio próprio, até ao valor do pedido formulado na petição inicial, quando ficou provado, apenas, a existência de conversações para arrendar a habitação e ceder a exploração do estabelecimento de café, tendo sido falados os valores globais e não tendo resultado provado que tenham sido efectivamente celebrados contratos nesses termos, torna a sentença nula, por oposição entre os fundamentos e a decisão.

            Diferente é a posição do autor, para quem a matéria de facto assente conduz à prova dos prejuízos, mas não à do seu montante, pelo que a solução correcta passava pela condenação, nos exactos termos que constam da sentença.

            De acordo com o disposto no artigo 668.º, n.º 1, alínea c), do C. P. Civil, na redacção anterior à introduzida pelo DL 303/07, de 24 de Agosto, que é a aqui aplicável, é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

            A nulidade assente na mencionada alínea pressupõe um vício lógico de raciocínio; “a construção é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”;[1] “nos casos abrangidos pelo artigo 668.º, 1, c), há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”[2]; “se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença”.[3]

            Importa notar que a contradição entre os fundamentos e a decisão nada tem a ver, seja com o erro material (contradição aparente, resultante de uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real: escreveu-se uma coisa, quando se queria escrever outra), seja com o erro de julgamento (decisão errada, mas voluntária, quanto ao enquadramento legal ou quanto à interpretação da lei);[4] o erro material e o erro de julgamento não geram a nulidade da sentença, como sucede com a contradição entre os fundamentos e a decisão, mas, tão-só, e apenas, a sua rectificação ou a sua eventual revogação em via de recurso (se admissível, claro).

            “Não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável …”.[5]

            É bom de ver, em face dos termos da questão, tal como a ré os coloca, que se não está perante a nulidade a que o citado normativo legal se reporta; o que aquela diz, muito simplesmente, é que a matéria de facto provada é insuficiente para conduzir à sua condenação.

            Historiando um pouco, para uma melhor compreensão do tema, o autor pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe determinada quantia, alegando prejuízos derivados da impossibilidade de ceder a exploração de um estabelecimento comercial e de arrendar um apartamento para habitação, pela circunstância de aquela, violando uma obrigação contratual, ter deixado de fornecer água a ambas as fracções.

            Na sentença condenou-se a ré no pagamento ao autor de montante a liquidar em incidente próprio, na consideração, por um lado, de que aquela, ao recusar o fornecimento de água, incumprira uma obrigação a que estava adstrita e, por outro, que, desse incumprimento, haviam resultado prejuízos para o autor, por, dada a falta de água, se ter visto na impossibilidade de ceder a exploração do estabelecimento e de arrendar a casa a terceiros, com quem estabelecera conversações, no decurso das quais se falara em determinado valor.

No entender da ré, só haveria prejuízo se tivessem sido efectivamente celebrados contratos de cessão de exploração e de arrendamento, não bastando para tal a mera existência de conversações. Não provada a efectividade dos contratos, haveria o pedido de indemnização de improceder, pelo que a decisão de condenar entraria em contradição com a fundamentação de facto.

Mas é óbvio que lavra em confusão. Suposto que da subsunção da matéria de facto à lei devesse resultar a improcedência do pedido, o que haveria era erro de julgamento, e não oposição entre os fundamentos e a decisão.

A sentença não padece de vício de raciocínio, nos moldes que acima ficaram definidos; bem pelo contrário, mostra-se logicamente discutida e foi decidida em conformidade com o resultado dessa discussão; a decisão é a conclusão necessária da aplicação do direito aos factos, segundo uma determinada interpretação, cujo acerto substantivo não cabe aqui dilucidar.

Haveria vício de raciocínio, isso sim, se o ex.mo juiz, considerando, como fez, que o autor sofreu prejuízos derivados da actuação da ré, a tivesse absolvido do pedido; condenando-a, não foi além daquilo que a razão lógica determinava.

A arguição de nulidade da sentença tem, pois, de improceder.

b) A alteração da matéria de facto

A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação, além do mais, se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida (redacção anterior do artigo 712.º., n.º 1, alínea a), do CPC).    

Nos termos daquele artigo 690.º-B, a impugnação da matéria de facto passa, sob pena de rejeição, pela indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, que, no caso dos depoimentos gravados, têm de ser assinalados por referência ao que consta da acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C do mesmo diploma.

Respeitado, que foi, pela recorrente o condicionalismo dos mencionados preceitos legais, há que apreciar a substância do recurso.

Na opinião daquela, os pontos 13.º e 17.º da base instrutória teriam sido incorrectamente julgados, na justa medida em que as testemunhas E... e F... não concretizaram ter estabelecido conversação com o autor, tendo em vista a cessão de exploração do estabelecimento comercial de café e o arrendamento da habitação; defende, por isso, que deveria ter sido dado por provado, apenas, que “da conversa havida entre o autor e a testemunha F... com vista ao arrendamento da habitação e à cessão de exploração do café durante cerca de três meses, no período entre Junho e Setembro, foi falado o valor global de € 6.000,00 para a habitação e o valor de € 9.000,00 para o estabelecimento de café, suportando o autor os custos dos abastecimentos de água e de energia eléctrica”.

Vejamos:

Os artigos 13.º, 16.º (a referência a este quesito é absolutamente essencial para se perceber o 17.º, ao qual está umbilicalmente ligado) e 17.º estão assim redigidos, respectivamente:

13.º – “A habitação referida em a) facilmente seria arrendada desde a segunda quinzena de Junho até à primeira quinzena de Setembro por valor não inferior a € 6.000,00?”

            16.º – “O corte de abastecimento de água impediu o autor, ainda antes do verão, de reabrir o café ali instalado?”

17.º – “O que lhe causou um prejuízo efectivo não inferior a € 9.000,00?”

As respostas dadas foram estas:

“Quesito 13.º: provado apenas que algum tempo antes desse corte de água, houve pessoas que estabeleceram conversações com o autor com vista ao arrendamento dessa habitação durante cerca de três meses, no período entre Junho e Setembro, tendo sido falado o valor global de € 6.000,00, suportando este os custos dos abastecimentos de água e energia eléctrica”.

“Quesitos 16.º e 17.º: provado apenas que aquelas mesmas pessoas também conversaram com o autor com vista à cessão de exploração do estabelecimento de café durante o mesmo período de cerca de três meses, entre Junho e Setembro, tendo sido falado o valor global de € 9.000,00, suportando este também os custos dos abastecimentos de água e de energia eléctrica”.

As respostas tiveram por base os depoimentos das testemunhas E...e F..., que referiram ter mantido conversações com o autor com vista ao arrendamento do estabelecimento e da habitação, nesse verão, aquela para a sua filha, que estava para regressar da Alemanha, e este para os seus filhos, que alojavam surfistas, tendo sido falados valores e condições.

Ora, o que disseram estas testemunhas?

A testemunha E... – antes do corte da água pela ré, falou com o autor com vista a ficar com o estabelecimento de café e com a habitação, aquele para si e para sua filha e esta para a sua filha, que iria regressar da Alemanha; a pretensão de ambas estendia-se a todo o ano, e não, apenas, ao Verão; na altura, o autor referiu-lhe que, em relação aos três meses de verão, o valor global seria de € 15.000,00; quanto ao inverno, haveria que fazer, posteriormente, outro acordo; tendo-a o autor elucidado de que havia outras pessoas interessadas em ficar com o café e o apartamento, pediu-lhe para não arrendar sem lhe dizer; mais tarde, devido ao corte da água, perdeu o interesse e, conforme a expressão utilizada, “teve de partir para outra”.

A testemunha F... – os seus dois filhos pretendiam um espaço para alojar, de meados de Junho a finais de Setembro, surfistas franceses que vinham a Portugal praticar a modalidade; nos princípios de 2003, e por incumbência deles, falou com o autor com vista à cedência do café e da habitação, tendo-lhe oferecido € 15.000,00 (€ 9.000,00 pelo estabelecimento e € 6.000,00 pelo apartamento) por tal período de tempo; mas as despesas de água e energia eléctrica ficariam a cargo daquele; soube, por essa altura, que a testemunha E... se mostrava, igualmente, interessada em ficar com o estabelecimento e com a habitação; o negócio não se concretizou, devido ao corte da água; a sua oferta, feita em nome de seus filhos, era firme, porque eles precisavam mesmo dos espaços para poderem alojar e dar alimentação aos surfistas; de resto, não tendo conseguido o estabelecimento e a habitação em causa, devido ao corte da água, tiveram de arranjar outras instalações, que mantêm, ainda, dado que continuam a receber, todos os anos, e de 15 em 15 dias, 20 surfistas, relativamente a cada qual recebem € 600,00.

Perante isto, não se vê como alterar as respostas dadas aos artigos 13.º e 17.º. Quanto àquele, resulta indubitável de ambos os depoimentos que houve duas pessoas, pelo menos, que entabularam negociações com o autor com vista ao arrendamento do apartamento e que foi falado o valor de € 6.000,00 para o período de Junho a Setembro, suportando o autor os custos da luz e água; num caso, foi esse o montante oferecido (testemunha F...), noutro, foi o valor indicado pelo próprio autor (testemunha E...). 

Em verdade, se a resposta enferma de algum vício, é por defeito, que não por excesso; e isto porque a testemunha E... disse claramente que pretendia o arrendamento, não, apenas, para o verão, mas, sim, para todo o ano; mas, nada tendo sido requerido neste particular, não há que tomar posição.

No que toca ao quesito 17.º, é evidente que os falados depoimentos continuam a contrariar a versão da recorrente; o que vale para a habitação, vale para o estabelecimento.

Mas, ainda, aqui, a resposta peca por redutora; é que a testemunha F... não se limitou a conversar com o autor, com vista à cessão do estabelecimento; ofereceu-lhe, garantidamente (tal como o fizera em relação à habitação), a quantia de € 9.000,00 pela exploração do café durante os meses de verão. A ausência de impugnação neste segmento obsta, porém, à alteração da factualidade.

Em conclusão, a prova gravada não contraria as respostas dadas aos artigos em referência (no sentido pretendido pela recorrente, pelo menos), motivo pelo qual o recurso não pode, nesta parte, proceder.

            c) O prejuízo

            A recorrente só se insurgiu contra a sentença na parte em que a condenou a pagar ao autor “a quantia que se vier a liquidar (em incidente de liquidação), como indemnização pelos prejuízos que lhe advieram do corte do abastecimento de água, ao prédio referido em a) supra, pela ré, entre 19 de Maio de 2003 e 3 de Setembro de 2003, relativamente à impossibilidade de dar em locação e cessão de exploração a casa e o estabelecimento comercial, respectivamente (factos q) a u) supra), sempre com o limite do pedido (formulado na petição)”.

            Na sua visão, da matéria de facto dada por assente não resulta a existência de prejuízos para o autor, pelo que, cabendo a este prová-los, teria a acção de naufragar quanto ao pedido de indemnização.

            O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação[6] torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor (artigo 798.º do C. Civil, diploma de que serão os restantes preceitos a citar sem indicação de origem).

            Decorre deste normativo que são pressupostos da obrigação de indemnizar o não cumprimento (uma omissão, nos casos de prestação positiva, e uma acção, nos casos de prestação negativa), a ilicitude, a culpa, o prejuízo sofrido pelo credor e o nexo da causalidade entre o facto e o prejuízo (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, 5.ª edição, páginas 90 e seguintes).

            A verificação dos três primeiros é inquestionável, uma vez que a recorrente omitiu um facto que estava obrigada a praticar (fornecimento de água ao autor), a omissão é desconforme com o dever contratualmente assumido e a sua conduta é reprovável em face da ordem jurídica constituída.[7]

            De resto, a recorrente deixou-os intocados, tendo centrado a sua discordância, como acima se disse, no prejuízo, que o recorrido não teria logrado provar, como lhe competia, segundo o preceituado no artigo 342.º, n.º 1.

            Neste particular conspecto, resultou provado que a ré cortou o abastecimento de água ao prédio do autor em 19 de Maio de 2003, o que impedia a abertura ao público do estabelecimento de café (que, na altura, se não achava em funcionamento) e o eventual arrendamento da habitação existentes no mesmo; mais se apurou que, algum tempo antes do corte da água, houve pessoas que estabeleceram conversações com o autor com vista ao arrendamento da habitação e à cessão de exploração do estabelecimento entre Junho e Setembro daquele ano, tendo sido falado o valor global de € 6.000,00 para a habitação e o de € 9.000,00 para o estabelecimento, mas suportando o autor os custos dos abastecimentos de água e de energia eléctrica.

            Com base nestes factos, entendeu-se na sentença que a falta de água acarretara para o autor prejuízos não quantificados, pelo que condenou a recorrente a pagar-lhe a quantia que se viesse a liquidar em incidente de liquidação, ao abrigo do disposto no artigo 661.º, n.º 2, do CPC.

            A lógica da recorrente é a de que a mera existência de conversações não conduzia à verificação do dano, sendo necessário, para tal, a celebração efectiva de contrato respeitante à cessão de exploração do estabelecimento e ao arrendamento da habitação.

            Mas não parece que tenha razão.

            Convirá dizer, à guisa de explicação, que o prédio onde se integram a habitação e o estabelecimento em causa se situa no Forte da Barra (cfr. a alínea a) dos factos assentes), local de veraneio à beira mar pública e notoriamente reconhecido e, como tal, procurado por centenas ou milhares de pessoas para passar as suas férias estivais. O mercado de arrendamento por curtos períodos é, em casos destes, muito forte, sucedendo, não raro, que a procura excede a oferta.

            É indiscutível que o autor pretendeu colocar a habitação e o estabelecimento nesse mercado; só assim se compreende que tenha sido contactado por pessoas, com vista a tal fim e que, entre um e outros, se tenha falado de valores.

            É verdade que nenhum contrato chegou a ser celebrado; mas isso, porque, depois das conversações, a recorrente cortou a água, o que obstava, obviamente, a que o estabelecimento pudesse ser explorado e o apartamento habitado. A partir desse momento, ninguém ousaria avançar para a celebração de um contrato, do qual sabia não poder colher benefícios.

            Então, a impossibilidade de ceder a exploração ou o gozo de uma coisa mediante valor pecuniário, havendo interessados na cedência, não configura, por si só, um prejuízo para o titular daquela?  

            É claro que sim.

            Não fora a conduta ilícita da recorrente (corte do abastecimento de água), e o autor teria, muito provavelmente, cedido a exploração do café e arrendado a habitação a terceiros, recebendo uma quantia em dinheiro, como contrapartida da cedência.

            A probabilidade do dano, ideia matriz da teoria da causalidade adequada, que subjaz ao nosso ordenamento jurídico civil (artigo 563.º), [8] manifesta-se, aqui, em toda a sua pujança.

            Prejuízo há-o, sem sombra de dúvida. O que, de facto, não existe, como bem se faz notar na sentença recorrida, são elementos para fixar a sua quantidade; sabe-se que, nas conversações havidas entre o autor e os interessados, se falou em € 15.000,00, como valor global da cedência da habitação e do estabelecimento durante os três meses de verão, mas desconhece-se se seria esse o montante atingido (isto de acordo com a matéria de facto dada por provada, porque, na realidade das coisas, a testemunha F... afirmou categoricamente que se tratava de um valor garantido), como se desconhecem os custos do fornecimento de energia eléctrica e de água, que sempre ficariam a cargo do autor. Nessa medida, não poderá a fixação do valor da indemnização deixar de ser relegado para liquidação futura.

            O que quer dizer que o recurso não é viável, também, nesta parte, devendo, por conseguinte, a sentença ser inteiramente confirmada.

            IV. Em síntese:

            1) A nulidade da sentença decorrente da contradição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o erro de julgamento.

            2) Não se verifica a nulidade da sentença, quando a decisão, embora incorrecta quanto à subsunção dos factos ao direito ou à interpretação deste, é corolário lógico dos fundamentos.

            3) A impossibilidade de ceder a exploração de um estabelecimento e de arrendar uma habitação, devido ao corte do fornecimento de água pela entidade obrigada ao abastecimento, faz incorrer esta em obrigação de indemnizar.

            V. Decisão:

            Por tudo quanto se deixou exposto, decide-se julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença apelada.

            Custas pela apelante.


[1] Alberto dos Reis, código de Processo Civil anotado, volume V, página 141:
[2] Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, página 690.
[3] Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, página 670.
[4] Alberto dos Reis, ob. cit., páginas 130 e 141.
[5] Antunes Varela …, ob. cit. página 686.
[6] Em qualquer das modalidades que pode revestir a falta de cumprimento: impossibilidade da prestação, não cumprimento definitivo e mora.
[7] A culpa, aliás, presume-se, como decorre do artigo 799.º, n.º 1.
[8] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3.ª edição refundida, página 521.