Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
109/07.0EACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ESTEVES MARQUES
Descritores: CRIME CONTRA A GENUINIDADE
QUALIDADE OU COMPOSIÇÃO DE GÉNEROS ALIMENTÍCIOS E ADITIVOS ALIMENTARES AVARIADOS
RESPONSABILIDADE DA SOCIEDADE E DO GERENTE
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3º,24°, N° 1, ALÍNEA C) E 82º, Nº 2, ALÍNEA C) E Nº 3, AMBOS DO D.L. N° 28/84, DE 20 DE JANEIRO
Sumário: 1. Sobre o gerente de um restaurante recai a missão de controle sobre o armazenamento e conservação dos géneros alimentícios nele existentes, bem como sobre a limpeza dos objectos e das instalações.
2. As pessoas colectivas ou equiparadas necessariamente têm de agir através dos seus órgãos ou dos seus representantes, pelo que os factos ilícitos praticados por estes, em nome e no interesse daquelas, são tratadas pelo direito como factos das mesmas, nomeadamente quando deles advenham responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou civil·.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO
Em Processo Comum do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, por sentença de 04.11.12, foi, para além do mais, decidido:

- Condenar a arguida “L..., Ldª”, pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, p. e p. pelos artigos 24°, n° 1, alínea c) e 82º, nº 2, alínea c) e nº 3, ambos do D.L. n° 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa de € 15,00 (quinze euros) por dia, o que perfaz a multa de € 3.000,00 (três mil euros);
- Condenar o arguido M... pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, p. e p. pelos artigos 24°, nº 1, alínea c) e 82º, nº 2, alínea c) e nº 3, ambos do D.L. n° 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 60 (sessenta) dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa de € 5,00 (cinco euros) por dia, o que perfaz a multa de € 300,00 (trezentos euros) e na multa de 110 (cento e dez) dias à mesma taxa, o que perfaz a multa de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros);
Nos termos do disposto no artº 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, condenar o arguido M..., na pena única de 170 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o total de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros);
- Condenar a arguida “L..., Ldª” pela prática de uma contra-ordenação por incumprimento dos requisitos gerais e específicos de higiene, prevista nos artigos 1º, 2º, nº 1, alínea a), 3º, 4º, nº 2, do Regulamento nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29, Abril de 2004, na coima de € 1.000,00 (mil euros); uma contra-ordenação por falta de plano se segurança alimentar baseado nos princípios do HACCP (Princípios da Análise dos Perigos e do Controlo dos Pontos Críticos), prevista no artigo 5º, nº 1 e 2, do Regulamento nº 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho de 29, de Abril de 2004, na coima de € 1.000,00 (mil euros);
Em cúmulo das coimas aplicadas à arguida, condenar a mesma na coima única de € 1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros) pela prática das contra-ordenações mencionadas.
Inconformados, os arguidos L…,Ldª e M..., interpuseram recurso da sentença, em cuja motivação produziram as seguintes conclusões:

“ – Os Recorrentes são primários;
- não incumbia aos Recorrentes a obrigação legal da recepção conservação e guarda dos géneros alimentícios, nem a preparação das respectivas refeições;
- também lhes não incumbia velar pela limpeza da cozinha, dos utensílios e demais equipamentos nela existentes, também por força da Lei;
- a obrigatoriedade legal da recepção, da guarda, conservação, manipulação e confecção dos alimentos, não incumbia aos Recorrentes, mas a quem, no seu estabelecimento, exercia as funções de cozinheiro, por força das disposições legais já invocadas nestas alegações;
- também não incumbia aos Recorrentes, a limpeza e higienização da cozinha e dos utensílios de trabalho, por força das mesmas disposições legais;
- estas obrigações legais são inequívocas, são fonte de Direito e não foram afastadas, de modo algum, pois nenhum documento de forma bastante foi junto aos autos, que provasse o contrário;
- assim os Recorrentes não praticaram os crimes contidos nas alíneas b) e c) da rubrica " III DECISÃO " da douta Decisão recorrida, pelo que não podem ser punidos por tais factos.
- assim sendo não colhem os argumentos da mesma rubrica da douta Decisão recorrida com o número 16, pois não resultam nem da Lei, nem de nenhum facto dado como provado, em lado algum do processo;
- por outro lado, também não podem os Recorrentes ser punidos pelas contra-ordenações previstas nas alíneas g) e h) da rubrica "III DECISÃO ", já que as obrigações legais de limpeza da cozinha, dos utensílios e demais equipamentos eram incumbência legal, da quem exercia, no momento, as funções de cozinheira;
- quanto ao demais da douta condenação, isso sim era incumbência, legal, dos Recorrentes, pelo que às suas consequências, não se podem furtar;
- atento o atrás alegado, parece adequada a aplicação, aos Recorrentes da Sanção de Admoestação;
- A douta Sentença recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 379º, n° 1 alínea c) do Código do Processo Penal, pois o douto Tribunal, ao não apreciar e pronunciar-se, como estava por Lei obrigado, relativamente à legislação directa e expressamente aplicável, ao caso sub judice (Acórdão do Tribunal Constitucional e Contratos Colectivos de Trabalho invocados neste Recurso), violou directamente o dever cognitivo;
- o que veio a traduzir-se em manifesto prejuízo material e moral dos Recorrentes.”.
O MP respondeu à motivação, concluindo que o recurso não deve merecer provimento.
Nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunto, no seu douto parecer entende que o recurso deverá ser rejeitado por manifesta improcedência.
Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º nº 2 CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO


A matéria fáctica considerada provada na sentença recorrida foi a seguinte:
“ 1) A arguida “L..., Ldª” é uma sociedade por quotas que se encontra matriculada na Conservatória do Registo Comercial da … e dedica-se à indústria hoteleira e similares.
2) Tal sociedade foi constituída pelo arguido M... por escritura pública outorgada no dia 30 de Novembro de 1992, juntamente com V... e S..., no Cartório Notarial de Rio Maior.
3) Sendo que, de tal sociedade, na data dos factos infra descritos, era gerente o arguido M..., em actividade, daquela, agindo em seu nome e no seu interesse.
4) No dia 22 de Junho de 2007, pelas 11.00 horas, a arguida sociedade detinha a exploração do restaurante denominado “…l”, sito na Avenida Marginal, em X…, área deste Concelho e Comarca de Alcobaça.
5) Nessa mesma data, as arguidas C..., E… e B... exerciam, respectivamente, a primeira as funções de cozinheira e, a segunda e terceira, as funções de ajudantes de cozinheira.
6) No dia 22 de Junho de 2007, pelas 11.00 horas, na área de armazenamento das instalações do supra identificado restaurante, sita na cave, o arguido M... detinha, prontos para serem confeccionados e servidos ao público consumidor:
a) Dentro de uma câmara de refrigeração, numa prateleira, uma travessa em inox contendo carne de bovino, apresentando cor escurecida e cheiro desagradável;
b) No interior de outra câmara, utilizada para conservação de produtos congelados, dentro de uma caixa de plástico, 2,5 Kgrs (dois quilogramas e meio) de lavagante, revestidos com película plástica transparente, apresentando-se com aspecto não característico;
c) No interior de uma outra arca de conservação, acondicionados em sacos de plástico 1 Kgrs. (um quilograma e trezentos) de lombo de porco, 9 Kgrs. (nove quilogramas) de safio, cortado às postas, 4 Kgrs. (quatro quilogramas) de pontas, pedaços e migas de bacalhau, 1 Kgr. (um quilograma) de miolo de búzio pré-embalado, 1 Kgr. (um quilograma) de postas de robalo; 2,5 Kgrs. (dois quilogramas e meio) de miolo de camarão e quatro pré-embalados, com 250 grs. (duzentos e cinquenta) cada, de princesas do mar, que se apresentavam com aspecto e cheiro não característicos.
7) Os géneros alimentares descritos em 6), alínea a) apresentavam-se escurecidos, com mau cheiro, queimados pelo frio, desidratados, oxidados e mal acondicionados, pelo que foram considerados impróprios para consumo, mas não susceptíveis de criar perigo para a vida, para a saúde e integridade física de eventuais consumidores.
8) Os géneros alimentares descritos em 6), alíneas b) e c) apresentavam aspecto não característico dos mesmos géneros, quando frescos, não tinham a origem da sua proveniência, não tinham indicada a data de validade e embalamento e expiração do prazo de validade, pelo que foram considerados anormais, com falta de requisitos, impróprios para consumo, mas não susceptíveis de criar perigo para a vida, para a saúde e integridade física de eventuais consumidores.
9) O arguido M... detinha aqueles géneros alimentares para serem confeccionados e comercializarem a clientes daquele restaurante.
10) Nesse mesmo dia e hora na área da cozinha, dentro de uma gaveta de um dos armários, o arguido M... detinha, facas, garfos e outros utensílios de cozinha misturados com uma gilete e com uma chave de fenda, parafusos e um alicate.
11) As facas possuíam sujidades incrustadas e acumuladas na zona de inserção da lâmina com o cabo, as tesouras de corte de carne e de peixe possuíam sujidades incrustadas e escurecidas, o raspador do grelhador, pinças, fatiador, garfos e conchas apresentavam-se com resíduos alimentares e gorduras.
12) As prateleiras e as portas de correr do armário onde se encontravam armazenadas as louças e travessas apresentavam-se com gorduras e resíduos alimentares.
13) O recipiente em plástico, de cor branca, no qual se encontravam acondicionados os espetos metálicos utilizados para a confecção de espetadas, tinha sujidades no seu interior.
14) A arguida “L..., Ldª” não tinha criado, nem aplicado o plano de segurança alimentar baseado nos princípios de “HACCP” (Princípios da Análise dos Perigos e do Controlo dos Pontos Críticos), pois não existia fluxograma do processo ou processos desde a recepção das matérias-primas, armazenamento, confecção, até à sua entrega ao consumidor, não existindo a identificação dos perigos alimentares e a avaliação desses mesmos perigos, de modo a determinar eventuais limites críticos, a respectiva monitorização, medidas correctivas e preventivas.
15) O arguido M... agiu na qualidade de gerente da arguida “L..., Ldª”, exploradora daquele restaurante, agindo no seu exclusivo interesse.
16) Ao não proceder à vigilância e fiscalização do processo de armazenamento, conservação e confecção dos géneros alimentares nele existentes e limpeza dos talheres, pratos, panelas e respectivas instalações, o arguido M... incumpriu os seus deveres enquanto responsável pela manutenção do estabelecimento e confecção das refeições aí servidas, agindo no pleno uso da sua capacidade de decisão, não podendo ignorar que com essa actuação os géneros alimentares supra descritos se encontravam impróprios para consumo humano e, não obstante, conformou-se com o resultado.
17) Sabia este arguido que tal conduta era proibida por lei.
18) Os funcionários da arguida “L..., Ldª” estavam a fazer formação para criação e aplicação do plano de segurança alimentar baseado nos princípios de “HACCP” (Princípios da Análise dos Perigos e do Controlo dos Pontos Críticos), estando a sociedade a diligenciar pela sua implementação na data da fiscalização.
19) Na área de X… o restaurante “…” é um estabelecimento conceituado pelo serviço que presta.
20) A sociedade “L..., Ldª”, no estabelecimento “…” emprega quatro funcionários efectivos e na época sazonal nove a dez funcionários.
21) A sociedade paga duas prestações mensais de € 1.550,00 (mil quinhentos e cinquenta euros) de um crédito bancário e € 210,00 (duzentos e dez euros) pela aquisição de um veículo automóvel.
22) O arguido M... é gerente comercial da sociedade “L..., Ldª”, auferindo uma pensão de reforma no montante de € 287,00 (duzentos e oitenta e sete euros) mensais.
23) Vive em casa própria com a esposa que é também funcionária da sociedade e trabalha como ajudante de cozinha.
24) A arguida C... trabalha como cozinheira, auferindo o vencimento mensal de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros).
25) Vive em casa arrendada com o marido que está reformado por invalidez, pagando de renda € 300,00 (trezentos euros) mensais.
26) A arguida E... trabalha como ajudante de cozinha, auferindo o vencimento mensal de € 520,00 (quinhentos e vinte euros).
27) Vive em casa arrendada com o filho que trabalha num café, pagando de renda € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros) mensais.
28) Paga a quantia mensal de € 230,00 (duzentos e trinta euros) referentes a um empréstimo bancário.
29) A arguida B...trabalha como ajudante de cozinha, auferindo o vencimento mensal de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros).
30) Vive em casa arrendada com o companheiro que trabalha na construção civil e paga de renda a quantia de € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros).
31) Paga duas prestações mensais de € 60,00 (sessenta euros) e € 70,00 (setenta euros) pela aquisição de bens e € 80,00 (oitenta euros) mensais de gás.
32) Os arguidos não têm antecedentes criminais.”.
Factos não provados
“ Não se provou qualquer outra matéria constante da acusação, nomeadamente:
- que às arguidas C..., E... e B...coubesse zelar pelo armazenamento, conservação e confecção dos géneros alimentares nele existentes e pela limpeza dos talheres, pratos, panelas e respectivas instalações;
- que as arguida C..., E... e B...tivessem tido intervenção nos factos referidos em 6), 9), 10), agindo a primeira na qualidade de cozinheira e as segundas na qualidade de ajudantes de cozinha, todas elas por conta da arguida “L..., Ldª”;
- que para além dos referidos em 10) numa outra bancada de trabalho, em inox, os arguidos detivessem um fatiador e espetos;
- que os espetos apresentassem as pontas com sujidades incrustadas e escurecidas, evidenciando ausência de não terem sido lavados e limpos há muito tempo;
- que bem soubessem os arguidos M..., C..., E... e B...que, naquelas condições, os géneros alimentícios supra descritos se encontravam impróprios para consumo humano;
- que bem soubessem os arguidos M..., C..., E... e B...que o armazenamento, confecção e venda de produtos alimentares impróprios para consumo não eram legalmente permitidos;
- que tenham agido os arguidos M..., C..., E... e B...de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.
Motivação:
“ A convicção do tribunal relativamente à matéria dada como provada baseou-se na ponderação dos seguintes elementos de prova:
Nas declarações do arguido M... que esclareceu que como é feito o armazenamento dos produtos no restaurante, sendo que no que se refere aos produtos de carne desconhecia que os mesmo se encontravam na câmara de congelação e quanto aos produtos de peixe e demais congelados referiu que os mesmos estavam armazenados numa arca frigorífica autónoma, pois tinha ocorrido uma avaria numa arca de congelação.
Mais esclareceu que estavam em implementação os princípios de “HACCP”, tendo sido já ministrada formação aos seus funcionários.
Nas declarações das arguidas C..., E... e B…, as quais esclareceram qual o procedimento que era usual adoptaram quando detectavam alimentos que já não se encontravam próprios para consumo e quais os procedimentos adoptados com a limpeza do estabelecimento.
Referiram ainda que já estavam a ter formação quanto à implementação dos princípios de “HACCP”, que lhes era ministrada por entidades contactadas pela sociedade para o efeito.
Foram ainda valoradas as declarações de todos os arguidos no que concerne à sua situação sócio-económica.
Nas declarações das testemunhas J... e D..., inspectores da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, que se dirigiram às instalações do restaurante “…”, fizeram a inspecção e detectaram a presença dos produtos e objectos supra mencionados, tendo esclarecido que nenhum dos produtos encontrados tinha alguma menção ao facto de estarem impróprios para consumo, constatando também que não existia plano de segurança alimentar, tendo tais depoimentos sido prestados de forma coerente e credível e, por isso, foram tidos em consideração pelo Tribunal.
Nas declarações das testemunhas S..., funcionário do restaurante, que confirmou ter retirado e carne da sala do restaurante, pois já não estava nas melhores condições para consumo, tendo-as transportado para a zona da cozinha e F..., fornecedor de produtos de peixe e marisco para o restaurante que confirmou a avaria na arca de congelação, motivo pelo qual a sua empresa disponibilizou uma viatura frigorífica para armazenamento dos produtos. Tais depoimentos foram também prestados de forma isenta e credível e, por isso, foram tidos em consideração.
Nas declarações da testemunha G..., presidente da Junta de Freguesia de X…, o qual, de uma forma coerente e credível, depôs acerca da maneira como o restaurante é considerado naquela zona, sendo, inclusivamente, procurado para a realização de eventos diversos.
Foram também valorados os documentos juntos a fls. 8, 9, 15 a 17, 28 a 31, 36, o auto de exame directo e respectivas fotografias de fls. 10 a 14 e os certificados do registo criminal juntos a fls. 173 a 176.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
Com efeito, não se pode imputar a conduta acima descrita ao arguido M... a título de dolo directo, uma vez que nem aquele nem as demais arguidas ou testemunhas ouvidas mencionaram que tenha sido o arguido a armazenar os produtos com aquelas características nas circunstâncias em que os mesmos se encontravam ou a descurar a limpeza dos utensílios de cozinha.
No entanto, o arguido é proprietário sócio-gerente da sociedade “L..., Ldª” e é ele quem comanda a actividade do restaurante, contratando o pessoal necessário e decidindo os rumos e estratégias a adoptar, cabendo-lhe zelar pelo armazenamento, conservação e confecção dos géneros alimentares nele existentes e pela limpeza dos talheres, pratos, panelas e respectivas instalações. É ele, em última análise, o responsável por tudo o que acontece, já que tem na sua mão o poder e dever de controlar, vigiar e dar ordens a todos os que aí trabalham e, como tal, lhe é imputada a conduta descrita nos factos provados.
Já no que se refere às arguidas C..., E... e B…, não se considerou que as mesmas tivessem tido intervenção nos factos descritos na acusação, uma vez que as mesmas se limitam a cumprir ordens que lhes são transmitidas pelo arguido M..., enquanto gerente da sociedade para a qual trabalham, não se tendo demonstrado que tivessem sido as responsáveis pelo armazenamento dos produtos nas condições supra descritas ou que, a proceder dessa forma, tivessem desrespeitado qualquer orientação que lhes havia sido dada.
Também não se valorou a versão dos arguidos quando mencionaram que os produtos supra mencionados se encontravam armazenados para serem retirados do estabelecimento e não para serem consumidos, uma vez que os mesmos se encontravam juntamente com outros produtos, não existindo junto dos mesmos qualquer indicação de que estivessem impróprios para consumo.
Também não se considerou que as facas que se encontravam na gaveta juntamente com os utensílios que os arguidos referiram ser para remover as grelhas do grelhador para limpeza, já não se encontrassem em utilização, uma vez que se assim fosse, não estavam juntas com outros utensílios destinados a uso, ainda que se destinassem a auxiliar na limpeza do grelhador, pois as facas apresentavam resíduos de gordura, conforme resulta das fotografias juntas a fls. 13, o que demonstra que tudo estava misturado, sendo utilizado quando fosse necessário, ainda que não diariamente.”.

*
Decorre da análise das conclusões da motivação, as quais, como é sabido, balizam o objecto do recurso, que as questões suscitadas pelos recorrentes são as seguintes:
1ª Saber se as condutas dos arguidos recorrentes preenchem o crime por que foram condenados.
2ª Medida da pena.
Porém antes de entrar na sua apreciação há que conhecer da questão suscitada pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer e que consiste em saber se se impõe a rejeição do recurso por manifesta improcedência, por não cumprimento das exigências previstas no artº 412º nºs 1, 2 e 3 CPP.
Vejamos.
Estabelece o artº 412º CPP, que:
“ 1 — A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 — Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no
entendimento do recorrente deve ser aplicado.
3 — Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
Ora analisando o recurso não podemos deixar de reconhecer alguma razão na questão suscitada.
Porém face à simplicidade da questão o âmbito do que é pretendido através deste recurso é perfeitamente apreensível, pelo que não se justifica a nosso ver uma medida tão radical como é a da sua rejeição.
Daí que entremos de imediato na sua apreciação.
Comecemos pela primeira das citadas questões.
Entendem os recorrentes que a infracção não lhes pode ser imputada, pois de acordo com o contrato colectivo de trabalho, o cozinheiro “ ocupa-se da preparação e confecção das refeições e pratos ligeiros; elabora ou colabora na elaboração das ementas; recebe os víveres e outros produtos necessários à confecção das refeições, sendo responsável pela sua guarda e conservação; prepara o peixe, os legumes e as carnes, e procede à execução das operações culinárias; … vela pela limpeza da cozinha, dos utensílios e demais equipamentos.”. Concluem dizendo que, não interferindo os recorrentes em quaisquer das citadas operações, por as mesmas serem da responsabilidade funcional e legal das demais arguidas, não podem ser os recorrentes condenados.
Vejamos:
Conforme resulta da matéria de facto dada como provada o arguido M... era, à data dos factos gerente da arguida “ L…, Ldª”, agindo em seu nome e no seu interesse.
Pois bem nessa qualidade parece-nos que dúvidas não podem existir de que sobre o mesmo recai a missão de controle sobre o armazenamento e conservação dos géneros alimentícios nele existentes, bem como sobre a limpeza dos objectos e das instalações.
É evidente que não lhe caberá fazer tudo, mas o certo é que nada poderá ser feito sem as suas ordens e instruções, assim como não poderá deixar de se manter atento e vigilante quanto ao processo de armazenamento e conservação dos géneros alimentares bem como à limpeza dos objectos ou instalações.
É que não é concebível à luz da experiência comum que um gerente vire costas ao estado e à forma como a coisas se desenrolam no estabelecimento de que é responsável.
É pois completamente descabido que o arguido M…, na qualidade de gerente, venha agora, procurar defender-se com as cozinheiras, dizendo que isso “ é da responsabilidade funcional e legal das demais arguidas”.
Por isso é evidente que bem andou o tribunal ao condenar o arguido pela prática do crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos avariados, p. e p. pelos artºs 24º nº 1 c) e 82º nº 2 c) e nº 3 do DL nº 28/84, de 20.01.
E o que dizer relativamente à responsabilidade da recorrente L…Ldª?
O artº 3º do Dec. Lei 28/84 de 20 de Janeiro veio estabelecer no seu nº 1 que as pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
No presente caso, a fundamentação é exactamente a mesma do recorrente, isto é que a responsabilidade era das cozinheiras, com base no CCT.
Ora as pessoas colectivas ou equiparadas necessariamente têm de agir através dos seus órgãos ou dos seus representantes, pelo que os factos ilícitos praticados por estes, em nome e no interesse daquelas, são tratadas pelo direito como factos das mesmas, nomeadamente quando deles advenham responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou civil·.
Assim agindo o gerente M..., no interesse da sociedade recorrente, é evidente que nos termos do artº 3º do Dec. Lei 28/84, reunidos estão os requisitos que justificam a condenação da referida sociedade pela prática do crime por que foi condenado o seu representante.
Daí que, sem outras considerações, se julgue improcedente o recurso relativamente a este ponto.
Analisemos então a outra questão suscitada, isto é, apurar se as penas aplicadas aos arguidos recorrentes são excessivas.
Alegam para esse efeito os recorrentes que são primários, com muitos anos de exercício.
Recorde-se que o arguido foi condenado pela prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares avariados, p. e p. pelos artigos 24°, nº 1, alínea c) e 82º, nº 2, alínea c) e nº 3, ambos do D.L. n° 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 60 dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz a multa de € 300,00 e na multa de 110 dias à mesma taxa, o que perfaz a multa de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros), enquanto que a arguida foi condenada pela prática do mesmo crime na pena de 200 dias de multa, à taxa de € 15,00 por dia, o que perfaz a multa de € 3.000,00 (três mil euros).
A moldura penal abstracta aplicável ao arguido M…, é a de prisão de 1 a 18 meses e multa de 50 a 360 dias (artºs 24º nº 1 c) do DL 28/84, 41º nº 1 e 47º nº 1 CP).
Relativamente à arguida L…Ldª, a referida moldura abstracta da pena é a de multa de 50 a 360 dias (artºs 7º nº 1 b) e 24º nº 1 c) do DL 28/84 e 47º nº 1 CP).
Por seu lado a graduação da medida concreta da pena determina-se em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção geral e especial das penas, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artº 71º nºs 1 e 2 CP) e ainda às circunstâncias previstas no artº 6º do Dec. Lei 28/84.
E em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º nº 2 CP), princípio esse que norteia o nosso ordenamento jurídico-criminal.
Culpa esta entendida como elemento do conceito de crime, isto é o juízo de censura ético-jurídica que é possível dirigir ao agente por não se ter comportado, como podia, de acordo com a norma, e olhada em concreto, como culpa pelo concreto ilícito praticado.
A culpa, enquanto pressuposto da pena, definirá pois o seu limite máximo, dentro da qual as exigências de prevenção lhe fixarão a medida.
Como escreve Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229., a propósito da medida da culpa “ A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso; a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas – sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível”.
No que concerne à fixação do quantitativo correspondente a cada dia de multa obedece, por um lado (arguido M…) ao disposto no artº 47º nº 2 CP (versão vigente à data dos factos) – cada dia corresponde a uma quantia entre € 1,00 e € 500,00 – e por outro, (arguida L…) ao estabelecido no artº 7º nº 4 do Dec. Lei 28/84, em que essa quantia diária varia entre € 5,00 e € 500,00 - e em que releva exclusivamente a situação económico-financeira e os encargos pessoais do condenado.
Face ao exposto, considerando que a culpa e a ilicitude se mostram de grau médio face às consequências da conduta e bem jurídico violado e atentas as necessidades de prevenção geral e especial (a prevenção geral neste tipo de criminalidade económica é muito premente), as demais circunstâncias dadas como provadas e ainda a situação sócio-económica dos arguidos, que nos dispensamos de voltar aqui a repetir;
E ainda que a pena de multa para alcançar os seus objectivos terá sempre de constituir para os arguidos um sacrifício;
Entende-se que as penas aplicadas aos arguidos se mostram muito ajustadas e equilibradas.
Face ao exposto resulta evidente que fica prejudicada a apreciação da pretensão dos recorrentes relativamente à questão da aplicação da medida de admoestação.
De todo o modo sempre se dirá que neste tipo de crimes, são prementes as necessidades de prevenção, a justificar medidas punitivas de severidade adequada, pelo se nos afigura como inadequadas a aplicação de uma mera admoestação à arguida (artº 60º CP).
Em suma o recurso improcede na sua totalidade

DECISÃO


Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, acordam os Juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos, confirmando integralmente a douta decisão recorrida.

Fixa-se a taxa de justiça devida por cada um dos recorrentes em cinco Ucs Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).

Coimbra,11 de Março de 2009.