Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4033/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
BENFEITORIA
ACESSÃO
LICITAÇÕES
Data do Acordão: 04/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: AGRAVO PROCEDENTE - PREJUDICADO O CONHECIMENTO DA APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1340.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Constitui benfeitoria e não acessão a construção, por ambos os cônjuges, de uma casa no terreno de um deles
2. Sobre a verba que inclui essa casa não pode haver licitações, no inventário para separação de meações, funcionando a avaliação como meio eficaz e idóneo para ajustamento do valor.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A..., divorciado, projectista, residente em S. Bernardo, Aveiro, requereu – por apenso ao processo em que foi decretado o divórcio do casamento que celebrou com B..., residente em Aradas, Aveiro – que se procedesse a inventário para partilha de bens.
Nomeado o cabeça-de-casal (o próprio requerente), junta a relação de bens, apresentada e decidida a reclamação da requerida, foi designado dia para a conferência de interessados.
“Conferência” em que, não havendo acordo quanto à composição dos quinhões, se começou por deliberar sobre o passivo relacionado, após o que o Ex.mo Juiz declarou abertas as licitações, colocando em licitações a “casa de morada de família”.
Ao que – licitações sobre a “casa de morada de família” – a requerida B... manifestou a sua imediata oposição, que, não tendo sido atendida, provocou a pronta interposição de recurso do despacho que desatendeu a sua pretensão de não haver licitações sobre a “casa de morada de família”; recurso que foi admitido como sendo de agravo, com subida diferida e com efeito meramente devolutivo.
Prosseguindo-se na “Conferência”, a requerida B..., embora “sob protesto do agravo interposto”, licitou a “casa de morada de família” por 130.000,01 €
Seguiram os autos a sua posterior marcha normal, tendo sido elaborado o mapa da partilha e proferida a sentença homologatória, de que a requerida B... recorreu, recurso que foi admitido como apelação, a subir imediatamente (com ele subindo o agravo pendente).

Foram oportunamente apresentadas as alegações e as contra alegações quer no agravo quer na apelação.

Quanto ao agravo:
A agravante finalizou a sua alegação, com as conclusões seguintes:
1 - A verba n.º 1, da relação de bens dos presentes autos de inventário, descrita pelo agravado como benfeitoria traduzida em casa de habitação de rés-do-chão, com a área coberta de 235 m2 e logradouro de 965, 5 m2, sita na Rua (…) inscrita na matriz urbana da freguesia de Aradas sob o n.º 3776, descrita na CRP de Aveiro sob o n.º 02293/120397 (…), com o valor patrimonial de 30.526,43 € (…) implantada em terreno com a área de 1.200, 5 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Aradas sob o n.º 3.476, propriedade do ex-cônjuge B..., não é susceptível de licitação, devendo o respectivo valor, na falta de acordo das partes, ser determinado por avaliação – cfr. Ac. STJ de 13/02/97.
2 – A predita benfeitoria encontra-se descrita nos autos como um direito de crédito, porquanto não podendo separar-se do prédio em que foi construída (pertença da agravante) não poderia descrever-se em espécie – cfr. Art. 1345.º, n.º 5, do CPC (aplicável por remissão do n.º 3 do art. 1404.º do mesmo código).
3 – Tendo a moradia sido construída por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio, em terreno que é bem próprio de um deles, não se verifica a acessão, mas um benefício para o terreno que constitui benfeitoria útil, cujo valor constitui um bem a partilhar que não pode ser dissociado do terreno em que se integra, pelo que sendo o terreno bem próprio de um dos cônjuges, as benfeitorias não são susceptíveis de licitação – Ac. Rel. Porto de 21/10/1993, in BMJ 430.º, p. 515.
4 – Depois de ter sido ordenado pelo MM Juiz a quo, na conferência de partes de 21 de Janeiro de 2004, a avaliação da referida benfeitoria, em face do desacordo das partes quanto ao valor da adjudicação da benfeitoria e de ter sido apresentado o relatório da avliação feita pelo Sr. Perito nomeado, que atribuiu à benfeitoria o valor de 80.000, 00, não se entende nem pode aceitar-se (desde logo atento o disposto no art. 666.º do CPC), que o Meritíssimo Juiz venha agora, de forma insólita, na conferência de interessados do pretérito dia 3 de Novembro, proferir despacho, em sentido inverso, fazendo tábua rasa da avaliação efectuada e considerando que, afinal, “apesar da avaliação as partes devem ter a possibilidade de licitar no referido crédito”
5 – Admitir a licitação do crédito seria admitir que a benfeitoria que o constitui pudesse vir a ser adjudicada ao recorrido (caso este oferecesse maior valor), não se antevendo é como seria possível o recorrido ficar com a moradia e a recorrente com o terreno onde a mesma foi construída, dado que, não pode, no caso, verificar-se a acessão (1340.º, n. 1, do CC), porque esta supõe que a obra seja efectuada por terceiro, o que não acontece aqui pois a dona do terreno, ora agravada, também contribui para a obra. E supondo-se na acessão a boa-fé do terceiro, ela, neste caso, não existe por parte do cônjuge não dono do terreno que, na execução da moradia, não ignorava que o terreno onde a mesma foi edificada não lhe pertencia – cfr. Ac. Rel. Do Porto de 25/10/1993.
6 – O valor da benfeitoria descrita na Verba n.º 1 constitui um crédito comum do casal sobre um dos cônjuges, a relacionar nos termos previstos no art. 1345.º, n.º 5, do CPC (cfr. Art. 1273.º, n.º 2, do CC), devendo o cônjuge proprietário do terreno onde a morada foi edificada ( e do qual não pode ser dissociada) ou seja a agravante pagar ao outro cônjuge, o agravado, o valor correspondente à sua meação no referido crédito, que aqui se traduz em metade do valor da avaliação, que fixou o valor da benfeitoria em € 80.000,00, ou seja, em € 40.000,00.
7 – A fundamentação em que assenta o despacho recorrido é deficiente, obscura e contraditória e viola o disposto nos art. 666.º e 1345.º, n.º 5 do CPC e art. 1273.º, n.º 2 e 1340.º, n.º 1 do CC.

E o agravado finalizou a sua alegação, com as conclusões seguintes:
1 – Decidiu bem o Tribunal “a quo” ao ordenar a licitação do direito de crédito;
2 – A benfeitoria em causa é uma realidade nova, que extravasa o tradicional conceito constante do art. 216.º do CC;
3 – A coisa beneficiada não manteve o essencial da sua estrutura, pois foi inovada, aumentando o seu valor;
4 – A avaliação da benfeitoria não preclude a licitação do direito de crédito.
5 – A avaliação não pode ter outra leitura que não seja a de evitar que a base das licitações se apresente falseada, porquanto o valor inicialmente indicado mais não era do que o correspondente ao rendimento colectável inscrito na matriz.
6 – Assim não sendo, estão postas em causa as regras do enriquecimento sem causa.
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Quanto à apelação:
A apelante finalizou a sua alegação, em que, além das conclusões atinentes às questões já suscitadas no agravo, refere o seguinte:
- A decisão em apreço, no que concerne à referência ao “crédito” e bem assim ao montante das tornas que a recorrente é condenada a pagar ao requerente, surge inquinada pela decisão prévia, proferida na conferência de interessados de 3 de Novembro de2004, (já impugnada), que admitiu a licitação da verba n.º 1 dos direitos de crédito.

O apelado finalizou a sua alegação com as conclusões de idêntico conteúdo às do agravo, salientando, designadamente:
(…)
- Nunca em momento algum o Tribunal “a quo” denegou a licitação do direito de crédito, ao permitir a avaliação daquele bem, constante da verba n.º 1 da relação de bens.
- Tendo tal realidade sido descrita e relacionada como Direito de Crédito, razão não se encontra para não poder ser licitada, até porque tal classificação nunca foi posta em causa.
- Nem se vislumbra nenhuma disposição legal que proíba a licitação de um direito de crédito.
- A avaliação requerida pelo ora apelado, aquando da conferência de interessados, não poderá ter outra leitura que não seja a de evitar que a base de partida das licitações se apresente falseada, porquanto o valor inicialmente indicado mais não era do que o seu valor patrimonial (rendimento colectável inscrito na matriz).
- A avaliação é um mecanismo que protege e salvaguarda os interesses de qualquer herdeiro.
- De facto, a palavra “benfeitorias” significa o acto de melhorar, aperfeiçoar, fazer bem a uma coisa; mas quem as fizer procede sempre como dono ou legítimo possuidor, tanto da coisa própria, como da acessória (Cunha Gonçalves – tratado III, n.º 301).
- Além disso, o ora apelado, como mero detentor da coisa beneficiada, bem próprio da apelante, é um estranho, em relação à mesma, por força da construção da casa de habitação, descrita na Verba n.º 1 (direito de crédito) da relação de bens, contribui para a alteração da substância da coisa e por conseguinte o seu valor tornou-se maior do que aquele que tinha.
- Por outro lado, sempre se dirá que a construção da casa de habitação, pelo dissolvido casal, foi , como é óbvio, incorporada com a autorização da sua proprietária, ora apelante, pelo que, não se poderá sequer falar em má fé por parte do ora recorrente, o que a todo o custo aquela pretende.
- De facto, a casa de habitação, descrita tal como consta na Verba n.º 1 – Direito de crédito, da relação de bens, verdadeiramente, é uma realidade que não tem enquadramento do conceito tradicional da benfeitoria constante no art. 216.º do CC.
- Nos presentes autos estamos perante uma realidade nova, consubstanciada na construção de uma vivenda, tipo moradia uni-familiar, a qual não se pode dissociar do terreno, no qual se encontra implantada.
- Sendo inegável, que a construção em causa, foi realizada na constância do matrimónio, aumentaram sem dúvida o valor do prédio, bem próprio da apelante.
- Por isso mesmo, o MM. Juiz “a quo” entendeu não existir razão para diferenciar o presente caso daqueles em que a casa foi construída em terreno próprio, ou seja, um prédio urbano com autonomia.
- Assim, nenhuma razão válida existe para não se ter procedido a licitação na verba n.º 1 de direitos de crédito e, em consequência, nenhum reparo há a fazer à sentença em crise.

O Mmº Juiz a quo proferiu despacho sustentando o agravo.
Foram obtidos os vistos legais, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação de facto
São os seguintes os factos com relevo para a apreciação de ambos os recursos:
A) Requerido inventário – por apenso ao processo em que foi decretado o divórcio – foi o aqui agravado/apelado nomeado o cabeça-de-casal, tendo o mesmo junto relação de bens de que se passa a transcrever o seguinte trecho:
“..(…)
A – Direitos de Crédito
Verba n.º 1
Benfeitoria traduzida em casa de habitação de rés-do-chão, com a área coberta de 235 m2 e logradouro de 965, 5 m2, sita na Rua (…) inscrita na matriz urbana da freguesia de Aradas sob o n.º 3776, descrita na CRP de Aveiro sob o n.º 02293/120397 (…), com o valor patrimonial de 30.526,43 € (…).
A presente moradia encontra-se implantada em terreno com a área de 1.200, 5 m2, inscrito na matriz predial da freguesia de Aradas sob o n.º 3.476, propriedade do ex-cônjuge B....
(…)”
B) Relação de bens que foi objecto de reclamação, em que, entre outras coisas, se sustentou o seguinte:
“(…)
O cabeça-de-casal relaciona, no item Direitos de Crédito, como verba n.º 1, a benfeitoria traduzida em casa de habitação de rés-do-chão (…).
Ora, não obstante relacionar como direito de crédito, o cabeça-de-casal fala depois em casa de habitação.
Salvo o devido respeito, a descrição para além de tendenciosa é incorrecta, devendo ser alterada para benfeitoria traduzida na construção de uma casa de habitação implantada em terreno destinado à construção urbana (…)
Com efeito, tratando-se de benfeitoria que não pode separar-se do prédio em que foi feita (pertença da requerida), não se descreve em espécie, mas como simples crédito.
(…)”
C) Reclamação esta que mereceu o seguinte despacho:
“(…)
I – A alteração que a reclamante quer introduzir na descrição da verba n.º 1, direito de crédito, não tem razão de ser. Uma benfeitoria traduzida numa casa de habitação é uma construção dessa casa, a benfeitoria foi relacionada como crédito e nela especifica-se que foi construída num terreno da reclamante.
(…)”
D) Designado dia para a conferência de interessados (dia 21/01/2004 – cfr. fls. 194), foi pelo agravado/apelado requerido, no decurso da “conferência”, o seguinte:
“(…) dado que o valor atribuído à verba n.º 1 da relação de bens não corresponde ao seu valor real à data de hoje, nos termos do art. 1365.º, n.º 5, do CPC, solicito a V. Ex.ª a sua avaliação”
E) Pretensão a que a agravante/apelante não se opôs, tendo sido de imediato deferida a avaliação, ordenando-se, nos termos do art. 1369.º do CPC, que a secção indicasse perito para a realização da avaliação.
F) A avaliação foi efectuada, tendo o Ex.mo perito junto o seu relatório, em que avaliou a “benfeitoria” em € 80.000,00.
G) Foi designado novo dia para a continuação da conferência de interessados, em que, a dado momento e após se resolveram várias questões pendentes, o Ex.mo Juiz declarou “abrir licitações sobre a casa que foi morada de família”.
H) Ao que a agravante manifestou a sua imediata oposição, o que provocou o seguinte despacho (objecto do agravo de que cumpre conhecer):
“(…)
A construção em questão é uma realidade nova com a maior relevância no património conjugal.
Verdadeiramente não são benfeitorias feitas em determinada coisa que manteve o essencial da sua estrutura.
Por isso não vemos nenhuma razão para diferenciar este caso daqueles em que a casa está afinal construída sobre terreno alheio
Por isso, apesar da avaliação, entendemos que as partes devem ter a possibilidade de licitar no referido crédito
(…)”
I) Prosseguindo na licitação – face ao efeito meramente devolutivo, atribuído ao agravo – a agravante “sob protesto do agravo interposto” licitou o crédito – verba n.º 1 – por 130.000, 01.
J) Seguiram os autos a sua marcha normal, tendo sido elaborado o mapa da partilha – em que o crédito foi considerado pelo valor de 130.000,01 e adjudicado à agravante – e proferida a sentença que o homologou, condenado, designadamente, a apelante a pagar ao apelado tornas no valor de € 20.101,88.

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III – Fundamentação de Direito
A apreciação dos presentes recursos, delimitados pelas conclusões da alegação da recorrente (art. 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), será, em face dos seus âmbitos, efectuada em conjunto.
Na génese dos presentes recursos – agravo e consequente apelação – estão, sem sombra de dúvida, as contrariedades que a solução jurídica sobre a distinção entre “benfeitorias” e “acessão industrial imobiliária” sempre colocam.
Não há, porém, forma de ultrapassar – mais exactamente, do agravado/apelado ultrapassar – tais contrariedades.
A questão, em síntese, resume-se ao seguinte:
Na constância do matrimónio, agravante e agravado construíram uma moradia num terreno que era propriedade própria da agravante.
Realizaram pois despesas que melhoraram o terreno próprio da agravante, que lhe aumentaram o valor, devendo assim tais actos materiais levados a cabo ser juridicamente configurados como uma benfeitoria útil (cfr. 216.º do CC).
Dito isto – efectuada tão elementar ponderação – não significa, nem se quer dizer que se considera arredada e encerrada a possibilidade de se estar, no caso, perante a acessão industrial imobiliária prevista no art. 1340.º, n.º 1, do CC.
Efectivamente, a acessão industrial imobiliária e o regime das benfeitorias não são aplicáveis nem funcionam de forma incompatível e inconciliável; não se excluem mutuamente.
Aliás, se bem observamos, não podemos deixar de reconhecer que toda a obra, sementeira ou plantação que, nos termos do art. 1340.º, n.º 1, do CC, dá lugar a acessão, constitui uma benfeitoria útil; embora com carácter inovatório.
“Carácter inovatório”, que foi o critério em que, inicialmente, se pretendeu assentar a distinção entre benfeitorias e acessão ; isto é, segundo tal critério, na acessão – ao contrário do sucedido com as benfeitorias – a obra alteraria a substância do objecto, seria uma obra com carácter inovador.
Critério entretanto abandonado, por não lograr responder adequadamente às situações em que as obras inovatórias eram realizadas quer pelo locatário quer pelo usufrutuário, obras que estão por lei sujeitas ao regime das benfeitorias .
Passou pois a procurar estabelecer-se a delimitação de funcionamento – do regime das “benfeitorias” e do instituto da “acessão” – recorrendo a diferenças, não nas suas características objectivas, mas na relação do interventor com a coisa beneficiada; na benfeitoria, tal relação será jurídica, enquanto na acessão tal relação seria meramente natural .
Critério este que, a nosso ver, continua a não responder adequadamente a toda a realidade da vida, uma vez que situações há – como a decorrente da posse, em que há uma relação jurídica entre o interventor e a coisa beneficiada – que assim, segundo tal critério, passarão a ficar excluídas da protecção conferida pela acessão.
Daí que concordemos com Quirino Soares quando, a propósito do assunto, sustenta:
“nesta perspectiva e em conclusão, quando a intervenção do possuidor convoque, ao mesmo tempo, o regime das benfeitorias e o da acessão, a solução ajustada do conflito de regimes legais será a de, em princípio aplicar o das benfeitorias, que é o regime regra, e se destina (e porque se destina) a encorajar as obras de conservação e melhoramento da coisa possuída, na prossecução do aludido interesse social;
se, por aplicação das regras da acessão, o interventor puder adquirir a propriedade do imóvel (no que constitui um dos efeitos possíveis do funcionamento do instituto), então o regime a eleger deverá ser o da acessão, como excepcional em relação ao das benfeitorias, pois estabelece uma forma de aquisição como que forçada da propriedade sobre a coisa que foi objecto da actividade de incorporação”
Tudo isto para dizer que, à partida e em abstracto, não afastaríamos a aplicação do regime da acessão do art. 1340.º, n.º 1, do CC a uma hipótese como a sub judice (em que os cônjuges constroem uma moradia num terreno que é propriedade própria dum deles).
Porém, como é evidente, para que tal regime “excepcional” do art. 1340.º, n.º 1, possa em concreto ser considerado como aplicável – isto é, para que o autor das obras, adquira o terreno por acessão – necessário se torna que a situação seja devidamente configurada e que o respectivo direito (de adquirir por acessão) haja sido exercido .
Nem uma coisa nem outra aconteceu – por outras palavras, o agravado/apelado, ao apresentar a relação de bens, não configurou nem invocou, no que diz respeito à construção da moradia, uma situação de acessão – com o que afastada ficou a possibilidade dos interventores e autores das obras adquirirem o terreno por acessão.
A partir daqui ficou traçado o destino da moradia.
E quem o traçou, em definitivo, foi o próprio agravado.
Expliquemo-nos melhor:
É verdade que a jurisprudência vem decidindo quase unanimemente, em situações como a presente, que “constitui benfeitoria e não acessão a construção, por ambos os cônjuges, de uma casa no terreno de um deles” .
É igualmente verdade – como supra explicámos e resulta dos critérios que vêm sendo seguidos – que o regime das benfeitorias constituirá sempre, para tais casos, o regime regra, pelo que só a título excepcional se poderia vir a considerar como aplicável o regime da acessão.
Enfim, as dificuldades no sucesso duma pretensão, ainda que bem estruturada, de aquisição por acessão do terreno onde foi implantada a moradia seriam, é justo referi-lo, enormes.
Porém, independentemente de tais dificuldades, o certo é que o agravado como que “renunciou” ab initio à pretensão de adquirir o terreno por acessão.
Ao organizar a relação de bens, ao indicar os bens que integram o património comum, começou exactamente por relacionar, como “direito de crédito”, a “benfeitoria traduzida em casa de habitação de rés-do-chão, com a área coberta de 235 m2 e logradouro de 965,5 m2 (…), implantada em terreno com a área de 1.200, 5 m2 (…) propriedade do ex-cônjuge B...”.
Por outras palavras, ao considerar, na “relação de bens”, que o bem pertencente ao património comum era o crédito resultante da melhoria – consubstanciada na moradia – produzida no terreno da agravante, considerou que a própria moradia, incorporada no terreno, era propriedade da agravante que, justamente em virtude de tal “aquisição” , passara a ser devedora do património comum.
Em face de tal “relacionamento” – com que a agravante concordou – ficou traçado o destino da moradia.
Assim, só por lapso se pode compreender que, na “Conferência” de 3/11/2004, a fls. 262, se haja declarado que as licitações abertas eram sobre a casa de morada de família.
Efectivamente, no inventário nunca esteve relacionada qualquer casa – mas sim um direito de crédito – pelo que, sendo-se rigoroso, se pode afirmar que foram abertas licitações sobre um bem que não estava relacionado.
E foi justamente por estar relacionado um direito de crédito, com características peculiares, que, numa anterior conferência de interessados (do dia 21/01/2004 – cfr. fls. 194), foi requerido, pelo agravado – invocando expressamente o disposto no art. 1365.º, n.º 5, do CPC – que se procedesse à avaliação de tal direito de crédito; avaliação que, deferida, foi realizada (nos termos do art. 1369.º do CPC).
Por outras palavras, invocou-se um preceito legal – art. 1365.º, n.º 5, do CPC – que só é aplicável quando existe fundamento de oposição à realização de licitações; e que tem como objectivo, em face da não realização das licitações, encontrar o justo valor do bem em que não foi possível licitar.
Enfim, na conferência de interessados do dia 21/01/2004, deu-se um determinado rumo e interpretação – inteiramente correctos, antecipa-se desde já – e depois, na conferência do dia 3/11/2004, inverteu-se o rumo anterior.
Daí talvez a veemência da agravante, compreensivelmente surpreendida por tal inversão de rumo.
Enfim, a questão é, salvo o devido respeito, simples e evidente.
No inventário, existem duas formas de corrigir os valores dados aos bens: a reclamação contra o excesso de avaliação, quando o valor é exorbitante; as licitações, quando o valor é baixo.
Porém, se esta é a regra, também existem excepções.
Os art. 1363.º, n.º 2, 1365.º, 1366.º e 1367.º dão nota de situações em que ou por força da lei, ou de negócio, ou de oposição justificada dum interessado, não há licitações.
Para tais hipóteses – em que não há ou não pode haver licitações – uma vez que pode haver interessados que considerem baixo o valor dos bens, desde há muito que se estabeleceu o princípio de que é sempre admitida a avaliação de tais bens (em que não é possível abrir licitações).
“Princípio” este de que o já referido art. 1365.º, n.º 5, é uma concretização; como aliás também o são os art. 1366.º, n.º 2, e 1367.º, n.º 2, ambos do CPC
Revertendo ao caso sub judice, impõe-se reconhecer que – em relação ao bem relacionado sob a verba n.º 1 – estamos justamente perante uma excepção à regra da admissibilidade de licitações; estamos perante uma situação idêntica à dos bens doados.
É que a licitação pressupõe que não haja apenas 1 interessado na licitação; e que os interessados não estejam em conflito de interesses quanto ao modo de determinar o valor justo do bem.
O que não se verifica em relação à verba n.º 1.
Sustenta o agravado que não há nenhuma proibição de licitação em direitos de crédito.
É verdade, porém, em relação à agravante, a verba n.º 1 não é apenas um direito de crédito; representa, também e principalmente, uma dívida da agravante ao património a partilhar.
Daqui o claro e óbvio “conflito de interesses”.
Ao agravante interessa, naturalmente, que, por via de tal crédito, o património a partilhar seja aumentado; à agravada interessa, logicamente, que a sua dívida ao património a partilhar não seja aumentada.
Exactamente o mesmo que acontece quanto aos bens doados; em que ao donatário interessa que o valor dos bens não seja aumentado, para que a doação não seja inoficiosa, e em que aos interessados importa rigorosamente o contrário.
É justamente aqui, visando satisfazer interesses opostos, que intervém o referido “princípio” – que manda admitir avaliação nos casos em que não é possível abrir licitações; a avaliação funciona como meio eficaz e idóneo para ajustamento do valor.
Avaliação que foi precisamente o que foi feito na sequência do requerido e deferido em 21/01/2004; e para o que, inclusivamente, foi invocado o exacto fundamento legal – art. 1365,º n.º 5, do CPC.
Em conclusão, sobre a verba n.º 1 – crédito decorrente de benfeitorias realizadas num prédio da agravada – não podem ser abertas licitações, sendo que o seu valor ficou definitivamente fixado em € 80.000,00 pela avaliação ordenada e efectuada nos autos.
É verdade – como realça o Ex.mo Juiz no despacho de sustentação – que o agravado está impedido de “ficar com a casa”, porém, isso é uma consequência, não da proibição de licitar, mas do funcionamento das regras da acessão e benfeitorias e do modo como o agravado procedeu no relacionamento dos bens.
Independentemente do vencedor das licitações sobre a verba n.º 1, sempre a moradia, o terreno e a unidade predial que ambas formam seria, como supra explicámos, da propriedade da agravante.
Como já salientámos, o bem relacionado é um direito de crédito, pelo que, admitindo por hipótese de raciocínio a realização de licitações, destas não poderia resultar a adjudicação da moradia ao agravado.
É certo que a licitação pressupõe a posterior adjudicação do bem em que se licitou (art. 1374.º, a), do CPC), porém, no caso de se entender que a própria moradia podia ser adjudicada ao agravado, isso conduziria à constituição dum direito real menor, em desrespeito pela regra do “numerus clausus” constante do art. 1306.º; direito real menor que, consentida a sua constituição, se poderia manter indefinidamente, uma vez que nenhuma imposição vinculava o agravado à instauração da acção de acessão .
Enfim, tudo a demonstrar que a realização de licitações não constitui nem o momento próprio nem o meio processual idóneo para o agravado satisfazer a sua pretensão, legítima, de poder ficar com a unidade predial formada pela moradia e terreno; como supra explicámos, a pretensão devia estar contida e ser exercida na própria relação de bens.

Procede, assim, o agravo, o que prejudica o conhecimento da apelação, uma vez que a procedência do agravo implica a anulação dos actos praticados no processo a partir do mapa da partilha, inclusive.


IV - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar procedente o agravo interposto e admitido a fls. 262 e, consequentemente, revogar o despacho que admitiu que se abrissem e realizassem licitações sobre o bem indicado na verba n.º 1 da relação de bens; ordenando-se assim que, tendo em atenção o valor de € 80.000,00 atribuído pela avaliação a tal bem, se organize novo mapa da partilha.
Julgar, em face do desfecho do agravo, prejudicado o conhecimento da apelação.
Custas do agravo pelo agravante.

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Coimbra, 26 de Abril, de 2006