Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
120/06.8TAVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: PRINCIPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCIPIO DA AQUISIÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 11/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 355.º, N.º 1 E 2 DO C.P.P..
Sumário: I. – Na formação da convicção do tribunal não valem outras provas que não as que hajam sido produzidas em julgamento, de harmonia com o disposto no artigo 355.º do C.P.P..
II. - O preceito referido no item antecedente, que consagra o principio da imediação, não abrange a prova documental e outros meios de obtenção de prova, designadamente, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, que podem ser invocados na fundamentação da sentença ainda que não tenham sido formalmente examinados em audiência.
III. - É que, sendo o inquérito conhecido da defesa, pode esta, se assim o entender, contrariar atempadamente o valor probatório quer dos documentos, quer dos meios de obtenção de prova que se encontram nos autos, assim ficando eficazmente assegurado o princípio do contraditório (cfr. Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 873 e ss., e Acs. do TC nº 87/99, proc. nº 444/98, 1ª secção, em http://www.tribunalconstitucional.pt, do STJ de 23/02/2005, CJ, S, XIII, I, 210 e da R. de Coimbra de 19/09/2001, CJ, XXVI, IV, 50).
Decisão Texto Integral: No Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Foz Côa, mediante acusação do Ministério Público, que imputava ao primeiro a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal, e ao segundo a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, e a prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a), do mesmo código, foram submetidos a julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal singular, os arguidos, …, casado, empresário, nascido a 3 de Março de 1949 em Vila Nova de Foz Côa e aí residente, e …, casado, empresário, nascido a 17 de Maio de 1954 em Vila Nova de Foz Côa e aí residente.
Pelo assistente …, acompanhado pelo Ministério Público, foi deduzida acusação particular contra ambos os arguidos, imputando a cada um deles a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do C. Penal.
O assistente deduziu pedido de indemnização contra os arguidos com vista à condenação do primeiro no pagamento de uma indemnização no montante de € 2.100, e à condenação do segundo no pagamento de uma indemnização no montante de € 2.600, em ambos os casos, por danos não patrimoniais.
Por sentença de 24 de Abril de 2008, foram os arguidos absolvidos da prática dos crimes que lhes eram imputados nas acusações pública e particular, bem como do pedido de indemnização civil deduzido.
Inconformado com a sentença, dela recorre o assistente, formulando no termo da respectiva motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ (…).
1 -A sentença recorrida, ao absolver os arguidos dos crimes de que vinham acusados, quer na acusação do Ministério Público, quer na acusação particular e dos respectivos pedidos de indemnização civil, revela ter existido erro notório do tribunal, na apreciação e valoração da prova, a que se alude na al. c) do nº 2 do artº 410º do C P. Penal.
2 -Uma correcta e atenta audição da prova gravada e uma ponderada leitura e análise comparativa da transcrição da prova gravada e produzida nas sessões da audiência de julgamento, na sua globalidade e não de forma meramente estanque, revela que o tribunal não fez uma correcta apreciação e valoração dos factos e das ambiguidades e contradições insanáveis entre os depoimentos prestados pelos arguidos e as suas testemunhas de defesa, cuja incoerência, descoordenação e imprecisão, porque facilmente detectáveis, atentando com as elementares regras da vida e da experiência, não podiam ter sido aceites como coerentes pelo tribunal, em detrimento da prova produzida pela acusação do Ministério Público e do assistente.
3 -Mesmo no caso de a prova produzida nas duas sessões da audiência de julgamento, não se encontrasse gravada, nem feita a sua reprodução escrita, a simples leitura da fundamentação da sentença recorrida, revela só por si, que o tribunal cometeu tão notória e gritantemente, erro de apreciação da prova, não tendo analisado devida e correctamente, as contradições e ambiguidades, elas sim insanáveis, entre os depoimentos prestados pelos arguidos e as testemunhas de defesa … e ….
4 -Conforme se alcança da apreciação crítica feita quer à fundamentação da sentença recorrida, em si mesma, sem considerar ainda a reapreciação da prova gravada, quer após feita a reapreciação à luz da leitura e análise da sua reprodução escrita, dos depoimentos dos arguidos e das testemunhas de acusação, analisando-os por comparação crítica, com os depoimentos das testemunhas de defesa, escalpelizada nos artºs 31º a 33º, 34º a 62º e 63º a 66º, aqui reproduzidos, das alegações, o tribunal confundiu meras discrepâncias e dissentimentos encontrados nos depoimentos do assistente e em algumas testemunhas de acusação, sobre factos meramente instrumentais, mas não decisivos para o apuramento dos factos e dos crimes em análise, como tratando-se de contradições insanáveis, quando estas como é sabido, são coisa bem diferente daqueles.
5 -Só em caso de impossibilidade de serem encontrados, na globalidade da prova, elementos objectivos de prova, quanto à existência dos crimes, autoria dos mesmos, local e modo da sua execução, prevalecendo ao invés, dúvida insanável e irremovível, quanto à verificação dos factos decisivos para a solução da causa, é que o tribunal pode e deve, fazer uso do princípio "in dubio pro reo" e não utilizando sem o devido cuidado, apreciação e análise rigorosa e global da prova, tal princípio, implícita ou explicitamente, a favor dos arguidos e em detrimento da acusação.
6 -A apreciação crítica dos depoimentos prestados pelas únicas duas testemunhas de defesa – … e … – , incidindo sobre os factos em discussão, revela, tal como o assistente e recorrente procurou explanar e julga tê-lo conseguido, nas alegações do recurso, que os mesmos depoimentos pela forma dúbia, titubeante, descoordenada no espaço e no tempo, desordenada e insanavelmente contraditória como foram prestados, torna-os atentas as regras da experiência e de lógica elementar, inexoravelmente incoerentes e inverosímeis, pelo que o tribunal não podia nem devia tê-los valorado como coerentes e sobre eles tendo alicerçado a sua convicção para a absolvição dos arguidos.
7 -Contrariamente ao que consta da fundamentação da sentença recorrida, para que se verifique a prática do crime de injúria, p. e p. pelo nº 1 do artº 181º do C Penal, basta tão somente que fique provado que o arguido proferiu uma só expressão que seja, que conste da acusação, ofensiva da honra e consideração do assistente, ainda que não se prove as demais expressões que também constavam da acusação.
8 -Em julgamento, em contrário do que foi entendido pelo tribunal e vem expresso na fundamentação da sentença recorrida, o que conta para a decisão final, são tão somente os factos que constam da acusação particular quanto ao mesmo crime de injúrias e não os da respectiva queixa, devendo a acusação particular conter tão somente, os factos imputados ao arguido que resultem, indiciariamente, da prova produzida na fase de inquérito, filtrando-se e vertendo-se em qualquer acusação particular (ou pública), tão somente os factos que indiciariamente resultem do inquérito, como podendo razoavelmente conduzir ao êxito da acusação no julgamento, sendo pois surpreendente o que consta da fundamentação da sentença recorrida que, mau grado admitir e assinalar, resultar da prova produzida, terem ambos os arguidos proferido contra o assistente e ora recorrente, seguramente as expressões "corno", "filho da puta" e "ladrão", todavia, porque não se tendo provado as demais expressões "garoto, gatuno e porco ", o tribunal não deu, pura e simplesmente por provado qualquer crime de injúrias!!
9 -Também quanto aos crimes de ofensa à integridade física simples p.s e ps. pelo nº 1 do artº 143º e ao crime agravado de ameaça p. e p. pelo artº 153º nº 1 e 155º nº 1, al. a), todos do C. Penal, os elementos objectivos da prática de tais crimes mostram-se devidamente provados, constando tais elementos objectivos dos depoimentos prestados pela prova produzida pela acusação do MºPº e particular, pelo que não incidindo as discrepâncias de alguns depoimentos da acusação, sobre os elementos decisivos e objectivos de tais crimes, os arguidos deviam ter sido condenados, na sentença, como autores materiais da sua prática e também no respectivo pedido de indemnização civil, sendo inquestionável que a restante prova produzida em defesa dos arguidos, não logrou contrariar a ocorrência e prática dos mesmos factos ilícitos.
10 -A sentença recorrida merece censura, pois a prova produzida em audiência de julgamento, analisada na sua globalidade e não de forma estanque e descuidada, conduz necessariamente à condenação dos arguidos pela prática dos crimes de que cada um deles, respectivamente se encontra acusado, por imperativo dos ensinamentos consagrados pela doutrina e jurisprudência quanto à aplicação e ponderação dos critérios de apreciação e valoração da prova em processo penal, seja pela correcta aplicação do disposto nos artºs 124º e 127º do C.P.P., sendo que o cometido erro notório na apreciação da prova, referido na al. c) do nº 2 do artº 410º do mesmo Código, conduziu à violação dos artºs 181º nº 1, 143º nº 1 e 153º nº 1 e 155º nº 1, al. a), todos do C. Penal.
TERMOS EM QUE,
Com o que assim alega e conclui o recorrente e com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs, deve dar-se total provimento ao recurso, censurando-se a sentença recorrida, a qual deve ser revogada e substituída por outra que, perante a evidência dos factos produzidos e gravados em audiência de julgamento, apreciados na sua globalidade, cuja transcrição faz parte integrante do recurso, condene os arguidos como autores materiais dos crimes de que vêm acusados e consequentemente, também nos pedidos de indemnização civil.
(…)”.
Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termos da respectiva contramotivação as seguintes conclusões que se transcrevem:
“ (…).
1. A douta sentença recorrida fez uma criteriosa apreciação da prova produzida em julgamento, não se mostrando esta suficiente para fundamentar a condenação dos arguidos pela prática dos crimes de que vinham acusados.
2. O Tribunal a quo fez uma correcta aplicação dos princípios que regem a apreciação da prova em processo penal, designadamente do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do in dubeo pro reo.
3. O Tribunal a quo ficou com dúvidas quanto à versão dos factos apresentada pelo assistente, em virtude da mesma não se mostrar totalmente sustentável, racional e com lógica, em face dos demais elementos de prova (ou da sua ausência).
4. Sopesando os depoimentos do assistente e das testemunhas da acusação e perante a ausência de qualquer outra prova, suscita-se uma dúvida razoável sobre a imputação aos arguidos dos factos constantes das acusações.
5. Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor dos arguidos.
6. Inapurados, in casu, os elementos objectivos e, consequentemente, os elementos subjectivos dos crimes pelos quais vinham acusados, bem andou a Mmª Juiz ao absolver os arguidos.
Nestes termos e nos demais de direito, negando provimento ao recurso, Vªs. Exªs. farão
JUSTIÇA!
(…)”.
Os arguidos não responderam ao recurso.
Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os fundamentos da resposta da Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, concluiu pela confirmação da sentença recorrida.
Foi cumprido ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, tendo respondido o assistente, reafirmando o já alegado na motivação do recurso.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO.
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A nulidade da aquisição e valoração da prova;
- Os vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição insanável da fundamentação;
- A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da decisão objecto do recurso. Assim:
A) Na sentença foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
a) No dia 30 de Setembro de 2006, em hora não concretamente apurada, mas entre as 17h00 e as 17h30m, o assistente … e os arguidos … e … estiveram na Estação de Caminhos de Ferro do lugar do Pocinho, sita nesta comarca.
b) O arguido … é empresário, tem rendimentos fixos de, pelo menos, € 800 mensais.
c) É divorciado, não tem filhos a seu cargo e vive numa casa pertencente à sua mãe.
d) Por sentença transitada em julgado, foi o arguido … condenado, pela prática, em 10/07/2002, de um crime de desobediência simples, na pena de 60 dias de multa, a qual foi declarada extinta pelo seu cumprimento.
e) O arguido António … é licenciado em gestão de recursos humanos, é empresário agrícola e aufere, pelo menos, a quantia mensal de € 600.
f) É casado e tem uma filha de 20 anos de idade a seu cargo, que se encontra a frequentar o ensino universitário.
g) A esposa encontra-se reformada e recebe mensalmente a quantia de € 2.000.
h) Não tem antecedentes criminais.
(…)”.
B) Foram considerados não provados os seguintes factos (transcrição):
“ (…).
1º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em a), mais precisamente no bar existente no interior da referida estação, o arguido …, sem que nada o justificasse ou fizesse prever, se tenha dirigido ao assistente …, levantado a mão esquerda e feito esta deslizar pelo rosto daquele, desferindo-lhe, com a mesma, repetidamente, palmadas e um soco e, simultaneamente com a ajuda da sua mão direita, tenha abanado várias vezes o casaco que aquele trazia vestido.
2º Acto contínuo o arguido … tenha encostado o seu rosto ao do assistente …, proferindo a seguinte expressão: "Então, …, o que andas por aqui a fazer? O que vieste fazer à minha terra? Ficas a saber que não te admito que venhas à minha terra, percebes? Toma nota no que te digo, se te volto a ver nesta terra, desfaço-te, és uma vítima, um homem morto, ouviste?
3º Nessa altura, o assistente … se tenha conseguido libertar do arguido …, abandonado aquele local, dirigindo-se de imediato em direcção ao comboio, sempre acompanhado pelo arguido …, que, caminhando em seu encalço lhe desferiu várias pancadas nas costas.
4º Minutos volvidos, e quando já se encontravam no cais, a assistente se tenha deparado com o arguido …, que ali se encontrava munido de um chicote do tipo "cavalo marinho", ou de objecto de idêntica natureza, com cerca de um metro de comprimento, cor clara e pega de madeira, momento em que lhe desferiu com a ajuda do mesmo diversos golpes, atingindo-o em várias partes do corpo, designadamente nas pernas, até ao momento em que o assistente logrou a sua entrada no comboio.
5º Por via dos factos descritos em 1º a 4º, tenha resultado, directa, adequada e necessariamente, dores e mazelas não concretamente apuradas.
6º Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), o arguido …, dirigindo-se ao assistente …, tenha proferido a expressão "corno, filho da puta, ladrão".
7º Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em a), o arguido …, dirigindo-se ao assistente …, tenha proferido a expressão "porco, corno, filho da puta, ladrão".
8º O assistente … se tenha sentido profundamente incomodado com as expressões referidas em 6º e 7º.
9º O assistente …. tenha sofrido medo e inquietação e angústia com a expressão referida em 2º, evitando andar sozinho na rua e a deslocar-se aos locais que habitualmente frequentava.
10º O assistente … se tenha sentido fortemente humilhado e vexado.
(…)”.
C) E dela consta a seguinte fundamentação de factos (transcrição):
“ (…).
O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta da prova produzida nos autos e em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as regras da lógica e da experiência.
Os arguidos negaram a prática dos factos que lhes são imputados, admitindo que estiveram na estação no Pocinho, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço, apenas com o intuito de acompanhar o namorado da filha do arguido… ao comboio.
As testemunhas arroladas por ambos os arguidos prestaram um depoimento que nos mereceu credibilidade, porquanto sereno e espontâneo, tendo corroborado a versão apresentada por cada um dos arguidos.
Os lapsos de memória que estas testemunhas de defesa serenamente admitiram ter (por exemplo, a hora dos acontecimentos e as pessoas que se encontravam no local), são, no entender deste Tribunal, atendíveis, considerando que, entretanto, decorreu cerca de um ano e meio sobre a data da alegada prática dos factos.
Contrariamente, o assistente e as testemunhas de acusação prestaram um depoimento, quanto a nós, inverosímil e com contradições inexplicáveis.
Em primeiro lugar, cumpre referir que, depois de legalmente autorizada a leitura em julgamento das declarações prestadas pelo assistente em sede de inquérito, pôde o Tribunal percepcionar contradições entre essas declarações e as prestadas pelo assistente durante o julgamento.
Com efeito, em sede de inquérito (fls. 14 e 15), o assistente referiu que o arguido … o tinha injuriado dentro e fora do bar da estação do Pocinho. Mas, em julgamento, referiu que essas injúrias ocorreram já fora do bar da estação.
Em sede de inquérito o assistente referiu que as expressões proferidas por ambos os arguidos foram "garoto, corno, gatuno e ladrão". Na acusação particular são, no entanto, mencionadas as expressões "corno, filho da puta e ladrão" (alegadamente proferidas pelo arguido …) e "porco, corno, filho da puta e ladrão" (alegadamente proferidas pelo arguido …). Finalmente, em sede de julgamento, o assistente disse que as expressões proferidas por ambos os arguidos foram "corno, filho da puta e ladrão". Nada dizendo quanto às expressões "garoto, gatuno e porco"…
Em sede de inquérito, o assistente referiu que "quando saiu do bar em direcção ao cais onde iria apanhar o comboio, o …, com o chicote na mão, opôs-se à sua passagem e agrediu o depoente com o chicote nas pernas, enquanto o António lhe desferiu um soco na face." Em julgamento, porém, o assistente apresentou uma outra sequência dos factos e a eles acrescentou pormenores nunca, até então, relatados. Na verdade, referiu agora o assistente que, no exterior do bar, o arguido … o agarrou pelo casaco, o abanou e deu "sapatadas e murros" (e não palmadas e um soco como descreve a acusação). Entretanto, o arguido … pôs-se à frente dele (assistente) e começou a dar-lhe chicotadas nas pernas, enquanto o arguido …, que se posicionou atrás dele, lhe dava empurrões (e não pancadas nas costas como descreve a acusação) na mesma direcção do comboio.
Quando confrontado com tais discrepâncias entre os depoimentos, o assistente limitou-se a dizer "isso aí está mal" (reportando-se às suas declarações prestadas em sede de inquérito perante a GNR) e que o que contou em julgamento foi o que na verdade se passou.
Porém, o assistente não logrou, com essa afirmação, convencer o Tribunal, na medida em que, ditam as regras da lógica e senso comuns, que a memória do ser humano se apresenta tão mais fiel e precisa quanto mais próxima dos acontecimentos estiver.
Ora, decorridos que foram cerca de 1 ano e seis meses sobre a alegada prática dos factos, não é credível que o assistente se lembre melhor agora do que aconteceu do que se lembrava quando, em Dezembro de 2006, prestou o seu depoimento perante a GNR …
Acrescente-se, ainda, que não passou despercebido ao Tribunal o nervosismo que assistente foi demonstrando no decorrer do seu depoimento em julgamento, sobretudo quando confrontado com as contradições na descrição de determinados factos (por exemplo, com que mão o arguido … lhe desferiu os murros; em qual da suas faces foram esses murros desferidos; quantos murros foram desferidos, se um ou vários; e com qual das mãos o arguido … agarrou no seu casaco) e com a improbabilidade de tais factos terem ocorrido da forma descrita (o exemplo talvez mais paradigmático ocorreu quando o assistente começou por dizer que o arguido … estava à sua frente e lhe desferiu um murro na face esquerda, usando para o efeito a mão esquerda. Posteriormente, quando confrontado pelo Tribunal, deu-se conta que a descrição que fazia não era fisicamente compatível com o gesto que utilizara para reproduzir o movimento da mão do arguido … e, por isso, alterou o seu depoimento, com visível nervosismo e atrapalhação no rosto, dizendo que afinal a mão utilizada pelo arguido tinha sido a direita e a face atingida a esquerda …).
Refira-se, ainda, que a versão do assistente não foi corroborada pelas respectivas testemunhas em pontos que nos pareceram cruciais, atento o ónus de prova que sobre aquele incidia.
Vejamos.
O assistente refere que, no interior do bar da estação do Pocinho, foi o chefe da estação, a testemunha …, quem separou o assistente e o arguido …. Mais precisou que esta testemunha saiu de dentro do balcão, onde se encontrava, e agarrou o arguido … pelo braço e o pôs fora do bar.
No entanto, esta testemunha desmentiu a versão do assistente, dizendo que não saiu detrás do balcão, não agarrou o arguido …, não o pôs fora do bar, nem presenciou quaisquer das ameaças, injúrias ou agressões imputadas aos arguidos … e ….
Mais:
A testemunha … referiu que as expressões proferidas pelos arguidos … e … foram "gatuno, filho da puta e garoto", quando o assistente afirmou que foram "corno, filho da puta e ladrão" …
A testemunha … disse que, já no exterior do bar da estação do Pocinho, o arguido … se limitou a ficar ao lado do arguido …, a vê-lo bater no assistente com um chicote. Porém, o assistente disse que o arguido … o empurrava em direcção ao comboio, posicionando-se para o efeito atrás dele, e que o arguido …, simultaneamente, estava à sua frente a dar-lhe chicotadas nas pernas …
O assistente disse que o chefe da estação agarrou o arguido … por um braço e o colocou fora do bar. Também esta versão dos factos foi desmentida pela testemunha …, que referiu que o arguido … saiu por sua iniciativa do bar …
O assistente diz que o arguido Jorge se posicionou à sua frente enquanto lhe dava chicotadas. A testemunha … refere que o arguido Jorge estava atrás do assistente. Assim, não parece credível que, como afirma o assistente as chicotadas tivessem sido desferidas nas pernas, por detrás …
A testemunha … afirmou peremptoriamente que todas as testemunhas do assistente "estiveram na estação até ao fim", com isso pretendendo dizer que não saíram antes do comboio ter partido e que viram tudo. Contudo, a testemunha … negou tal versão, dizendo que saiu antes do comboio ter partido …
A testemunha …, que diz ter estado no bar na data e hora em apreço, afirmou que quem entrou no bar, atrás do assistente …, foi o arguido … e não o arguido … afirmou-o mais do que uma vez, sendo que soube precisar quem era um e outro arguido. Nesta parte, o testemunho entra em franca contradição com a versão do assistente …
E mais, esta testemunha afirmou em julgamento que o arguido … disse que batia no assistente se ele voltasse a Foz Côa (nem sequer mencionou as expressões vítima, desfaço-te ou homem morto como tendo sido proferidas pelo arguido), sendo que esta versão dos factos nunca foi relatada pelo próprio assistente …
Enfim, as contradições e inverosimilhanças ora apontadas, quer entre o assistente e as testemunhas de acusação, quer entre estas, levaram o Tribunal a duvidar da veracidade dos respectivos depoimentos e da sustentabilidade das acusações.
Por outras palavras, produzida a prova e discutida a causa, não se pode afirmar, com um mínimo de certeza, que os arguidos tenham actuado da forma descrita quer na acusação pública, quer na acusação particular.
Ora, em caso de dúvida insanável, esta deverá ser apreciada em benefício dos arguidos (in dubio pro reo), julgando-se como não provados os factos imputados pelo assistente … e pelo Ministério Público e correspondentes pedidos de indemnização civil.
Os factos referentes às condições pessoais, profissionais e económicas dos arguidos ficaram provados com base nas suas declarações que nos pareceram sérias.
O disposto quanto aos antecedentes criminais dos arguidos resulta do teor dos CRC juntos aos autos a fls. 121 e 124-125.
(…)”.
Da nulidade da aquisição da prova
1. Diz o recorrente que não tendo existido instrução e só tendo sido admitida a leitura das declarações prestadas por si no inquérito, constando da sentença em crise que o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta da prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, tal significa que foi valorada toda a prova produzida em qualquer fase do processo, em desrespeito ao disposto no art. 355º, nº 1, do C. Processo Penal, o que constitui nulidade.
Vejamos se assim é.
É certo, como afirma o recorrente, que nos autos não existiu a fase da instrução e que na audiência de julgamento apenas foram lidas, mediante autorização dada por prévio despacho, as declarações prestadas pelo assistente na fase do inquérito (cfr. fls. 153).
Dispõe o art. 355º, nº 1, do C. Processo Penal, dando execução ao princípio da imediação, que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. Porém, no seu nº 2, são ressalvadas as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos arts. 356º e 357º, do mesmo código, aqui se incluindo, observados certos requisitos, a leitura das declarações do assistente prestadas em inquérito.
Deve no entanto notar-se que o preceito não abrange a prova documental e os meios de obtenção de prova designadamente os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, que podem ser invocados na fundamentação da sentença ainda que não tenham sido formalmente examinados em audiência. É que, sendo o inquérito conhecido da defesa, pode esta, se assim o entender, contrariar atempadamente o valor probatório quer dos documentos, quer dos meios de obtenção de prova que se encontram nos autos, assim ficando eficazmente assegurado o princípio do contraditório (cfr. Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 873 e ss., e Acs. do TC nº 87/99, proc. nº 444/98, 1ª secção, em http://www.tribunalconstitucional.pt, do STJ de 23/02/2005, CJ, S, XIII, I, 210 e da R. de Coimbra de 19/09/2001, CJ, XXVI, IV, 50).
Retomando a questão proposta pelo recorrente, desde logo se verifica que o mesmo, invocando a existência de uma nulidade relativamente à aquisição e valoração da prova, se abstém de indicar em concreto, onde e como, foi cometida tal nulidade, apegando-se apenas à expressão contida no primeiro parágrafo da fundamentação de facto da sentença.
Ora, como claramente resulta da leitura de toda a fundamentação de facto, tal parágrafo serve apenas como intróito conclusivo do que depois de explica. Com efeito, nos parágrafos que se seguem e ao longo de quatro páginas e meia, a Mma. Juíza expõe as provas em que fundou a sua convicção e explica a valoração que delas fez, e não se vislumbra que, nesta tarefa, se tenha cometido um qualquer atropelo às normas processuais que disciplinam a aquisição da prova.
Certamente que o segmento do primeiro parágrafo na valoração conjunta da prova produzida nos autos e em audiência de discussão e julgamento, desenquadrada do respectivo contexto, pode prestar-se ao entendimento equívoco exposto pelo recorrente mas a verdade é que, tendo-se em conta tudo o mais que consta da fundamentação, fácil é verificar que, para além da prova produzida em audiência, e da leitura das declarações do assistente prestadas no inquérito – igualmente feita em audiência – o tribunal recorrido apenas se socorreu da prova documental constituída pelos certificados de registo criminal dos autos.
Concluindo, improcede a invocada nulidade.
Dos vícios do art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal
2. O recorrente invoca expressamente o vício do erro notório na apreciação da prova e decorre do corpo da motivação que pretende também invocar o vício da contradição insanável da fundamentação.
Vejamos pois se ocorre algum dos apontados vícios.
2.1. Os vícios previstos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova – têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, para os fundamentar (cfr. Cons. Maia Gonçalves, C. Processo Penal Anotado, 10 ª Ed., 729, Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 339 e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 77 e ss.).
Ocorre o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a decisão (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 340 e ss.).
Assim, existe contradição insanável da fundamentação, quando após a realização de um raciocínio lógico, se conclui que a fundamentação conduz a uma decisão oposta à que foi tomada, ou se conclui que a decisão, face à incompatibilidade dos fundamentos invocados, não é esclarecedora (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 71 e ss.).
Existe o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Posto isto.
2.2. No que respeita ao primeiro vício referido, lendo os factos provados e os factos não provados que constam da sentença recorrida, verificamos que, não existe qualquer contradição entre os diversos factos provados, não existe qualquer contradição entre os diversos factos não provados, e também não existe contradição entre qualquer um dos factos provados e qualquer um dos factos provados.
Quanto à fundamentação probatória da matéria de facto, verificamos que na sentença a Mma. Juíza distingue por um lado, entre as declarações dos arguidos e os depoimentos das testemunhas de defesa, que considerou concordantes, espontâneos e credíveis, ainda que lhes reconheça alguns lapsos ou imprecisões, e por outro, as declarações do assistente e das testemunhas de acusação, que considerou inverosímeis e com contradições inexplicáveis. E depois, passa a apontar e a analisar as contradições e imprecisões que entendeu existirem entre as declarações do assistente prestadas no inquérito e prestadas em audiência, e a referir o nervosismo por este aparentado quando prestava estas últimas e lhe eram notadas as ditas imprecisões, a apontar e analisar as contradições entre as declarações do assistente prestadas em audiência e os depoimentos das testemunhas … – quanto ao sucedido no interior do bar da estação – e … – quanto ao sucedido no bar, quanto às expressões dirigidas pelos arguidos ao assistente, e quanto à conduta do arguido … já no exterior do bar – a apontar as contradições entre os depoimentos das testemunhas … e … quanto à permanência de todas as testemunhas no local até à saída do comboio, e a referir a confusão da testemunha … quanto à identificação do arguido que entrou no bar da estação, e à falta de concordância entre o que por esta foi referido relativamente à ameaça proferida pelo arguido … o que foi dito pelo assistente, para finalmente concluir pela impossibilidade objectiva de, com um mínimo de certeza, ter por certo que os arguidos praticaram os factos que lhe eram imputados nas acusações, pública e particular. E, face a esta dúvida para si insanável, decidiu em benefício dos arguidos, por aplicação do princípio in dubio pro reo.
O vício em questão, enquanto vício intrínseco da sentença, nada tem a ver com as contradições absolutas ou relativas, que possam ter-se verificado entre as diversas provas por declarações produzidas, nem com a valoração que delas, provas, tenha feito o tribunal.
2.2.1. Diz no entanto o recorrente que o tribunal a quo entrou em contradição ao considerar, na fundamentação de facto, que todas as testemunhas de acusação prestaram depoimento inverosímil e com contradições inexplicáveis, para depois considerar válido o depoimento da testemunha …e assim desconsiderar, as declarações do assistente e da testemunha ….
Na sentença escreveu-se de facto que o assistente e as testemunhas de acusação prestaram depoimentos inverosímeis e com contradições inexplicáveis. Pois bem, inverosímil é o que não é verdadeiro, o que é pouco provável, e contraditório é o que implica contradição, o que é incompatível. Mas na sentença não se diz que valorou o depoimento da testemunha …. O que se diz é que tal depoimento foi contraditório com as declarações do assistente quanto a ter sido a testemunha a agarrar o arguido … e a colocá-lo fora do bar – sendo certo que também na sentença se refere que a testemunha … contrariou também neste aspecto as declarações do assistente – e quanto a ter a testemunha dito não ter presenciado qualquer agressão ou injúria dirigida pelo arguido ao assistente. Portanto, foi apontada uma contradição entre meios de prova por declarações e foram precisamente esta e outras contradições, apontadas pelo tribunal, que conduziram ao non liquet, e consequente funcionamento do princípio in dubio pro reo.
2.2.2. Diz ainda o recorrente que na fundamentação da sentença recorrida se admite resultar da prova produzida, terem ambos os arguidos proferido contra o assistente e ora recorrente, seguramente, as expressões “corno”, “filho da puta” e “ladrão”, todavia, porque não se tendo provado as demais expressões “garoto, gatuno e porco”, o tribunal não deu, pura e simplesmente por provado qualquer crime de injúrias!
Debalde se procura na fundamentação tal afirmação ou sequer, uma conclusão similar. O que na fundamentação de facto se fez diz é coisa bem diferente. Para justificar a razão da não atribuição de credibilidade às declarações do recorrente, a Mma. Juíza enuncia as palavras que este disse, na fase de inquérito – as declarações do recorrente prestadas em inquérito foram lidas em audiência –, terem-lhe sido dirigidas por ambos os arguidos [“garoto, corno, gatuno e ladrão”], enuncia as palavras que o recorrente disse, na audiência, terem-lhe sido ditas por ambos os arguidos [“corno, filho da puta e ladrão”], enuncia as palavras que a testemunha Fernando Pais disse ter ouvido ambos os arguidos dirigir ao recorrente [“gatuno, filho da puta e garoto”] e refere o que de relevante consta da acusação particular [o arguido Jorge dirigiu ao recorrente as palavras “garoto, corno, gatuno e ladrão” e o arguido António dirigiu ao recorrente as palavras “porco, corno, filho da puta e ladrão”]. Mas nunca a Mma. Juíza diz ou admite resultar da prova que o recorrente foi chamado de “corno, filho da puta e ladrão” pelos arguidos ou por algum deles.
Aliás, a prova de terem proferidas tais palavras, enquanto complexo factual, não resulta nem pode resultar apenas de uma simples operação de registo de depoimentos total ou parcialmente conformes, dando-se por provadas as referidas por todas as testemunhas e por não provadas, as que não foram referidas por todas as testemunhas, como parece pretender o recorrente.
2.2.3. Desta forma e em conclusão, não só não existe contradição na fundamentação probatória como esta é, por sua vez, concordante com a decisão final, pelo que não se mostra verificado o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
2.3. Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova, começaremos por dizer que nos autos não foi produzida prova tarifada, prova a que a lei atribua um específico peso ou valor probatório.
Para fundamentar o vício, discorre o recorrente, longamente, sobre aquilo que qualifica de apreciação crítica da fundamentação da sentença e de reapreciação da prova gravada, para concluir que o tribunal recorrido, ao considerar os depoimentos das testemunhas de defesa – que em seu entender foram insanavelmente contraditórios e ambíguos sobre factos nucleares – juntamente com as declarações dos arguidos – apesar de contraditórias com aqueles depoimentos – e ao desconsiderar as declarações do recorrente e os depoimentos das testemunhas de acusação – a quem a sentença não referência a existência de qualquer ambiguidade ou contradição – errou de forma notória na apreciação e valoração da prova, como a audição da prova gravada e leitura da respectiva transcrição demonstram.
Ora, e como já diversas vezes referimos, na sentença recorrida são apontadas diversas contradições entre os depoimentos das testemunhas de defesa e entre tais depoimentos e as declarações do assistente o que, de todo o modo, é irrelevante para a questão de que agora cuidamos.
Mas a demonstração do vício do erro notório na apreciação da prova não pode decorrer da audição de prova gravada ou da leitura da respectiva transcrição, antes tendo que se revelar no texto da própria decisão, por si, ou conjugado com as regras da experiência, pois que também aqui se trata de um vício intrínseco da sentença.
A errada apreciação da prova, fora do texto da decisão, não releva ao nível deste vício mas ao nível do recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos prescritos no art. 412º, do C. Processo Penal.
Assim, e concluindo, não se mostra verificado o vício do erro notório na apreciação da prova.
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
3. Apesar de repetidamente afirmar, quer a contradição insanável da fundamentação de facto constante da sentença por via dos por si designados depoimentos ambíguos, contraditórios e absolutamente insanáveis, prestados pelas testemunhas de defesa, conjugados com as declarações dos arguidos, quer o erro notório na apreciação da prova, ao proceder à análise de toda a prova por declarações e ao pretender que o tribunal ad quem proceda por sua vez, à reapreciação de toda a prova produzida, tendo para tal efeito efectuado a transcrição de toda a prova por declarações produzida em audiência de julgamento, pretende o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, para além do âmbito dos vícios do art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal.
E basicamente, o que o recorrente diz ao tribunal de recurso é que a causa foi mal julgada de forma global, porque o tribunal recorrido valorou os depoimentos das duas únicas testemunhas de defesa – que o recorrente qualifica de dúbios, titubeantes, descoordenados espacial e temporalmente, desordenados, contraditórios, incoerentes e inverosímeis – e as declarações dos arguidos, e desconsiderou os depoimentos das testemunhas de acusação – que entende terem sido coerentes, consistentes e credíveis – e às declarações do assistente, razão pela qual se impõe a reapreciação de toda a prova produzida em audiência – que transcreveu – e a final, sejam os arguidos condenados pela prática de todos os crimes de que foram acusados bem como condenados no pedido de indemnização deduzido.
Como é sabido, os recursos constituem a via legal para corrigir os erros cometidos na decisão judicial. São os remédios jurídicos postos à disposição dos intervenientes processuais para a correcção dos erros in judicando ou in procedendo.
Porém, o recurso da matéria de facto não constitui um novo julgamento, em que se aprecia todo o manancial probatório que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na 1ª instância não tivesse existido. Ele é apenas o instrumento de correcção daqueles erros, que por isso devem ser indicados com precisão pelo interveniente que por eles se sente afectado, através da enunciação dos concretos pontos considerados incorrectamente julgados, bem como devem ser indicadas as provas concretas que, em seu entender, os demonstram, impondo diferente decisão, assim se obstando a que o recurso seja usado para sobrepor uma nova apreciação à que foi efectuada pela 1ª instância.
Ao tribunal ad quem caberá apenas proceder a uma reapreciação dos meios de prova especificados relativos às questões impugnadas, para depois concluir, ou não, pela razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo e portanto, pelo erro na apreciação da prova e consequente alteração, ou não, da factualidade provada (cfr. Ac. nº 59/2006 do TC, de 18/01/2006, proc. nº 199/2005, http://www.tribunalconstitucional.pt, e Acs. do STJ de 17/05/2007, CJ, S, XV, II, 197, de 19/12/2007, p. nº 07P4203, e de 03/07/2008, p. nº 08P1312, ambos in http://www.dgsi.pt).
Consequentemente, o nº 3 do art. 412º do C. Processo Penal impõe ao recorrente que impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o ónus de uma tripla especificação: que indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; que indique as concretas provas que impõem decisão diversa; que indique as provas que devem ser renovadas, quando tal pretenda. E no que respeita às duas últimas especificações, dispõe ainda a lei (nº 4 do artigo citado) que o recorrente deve fazer referência ao consignado na acta da audiência de julgamento, bem como deve indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois, como bem se compreende, são elas as que serão ouvidas e/ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras que este considere relevantes (nº 6 do artigo citado).
Este dever acrescido de especificação – que é consequência das alterações introduzidas ao C. Processo Penal pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto – significa ainda que o recorrente deve expor as razões pelas quais a concreta prova impõe diversa decisão (cfr. Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 1135).
Analisando os termos em que o recorrente estruturou o seu recurso, verificamos que não indicou, nem no corpo da motivação, nem nas conclusões, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados. E perante esta omissão, não pode o tribunal ad quem presumir que se trata de todos os factos não provados como não pode também, escolher alguns dos factos não provados.
E se pode considerar-se que o recorrente indicou as concretas provas que, em seu entender, apontam distinta decisão, é seguro que em lado algum do recurso apresentado indicou as concretas passagens da prova por declarações em que funda a sua divergência. E como tal não pode entender-se a integral transcrição de toda a prova por declarações produzida em audiência, desde logo porque ficou o tribunal de recurso impossibilitado de saber quais os concretos, os específicos aspectos da prova produzida em que o recorrente funda as suas divergências de facto. E depois porque a análise de toda a prova produzida em audiência, sem critério orientador do interveniente que se sente lesado com a decisão, significaria a realização de um novo julgamento que a lei, como se disse, não permite.
Ou seja, no recurso em que se impugna a matéria de facto, o recorrente está obrigado ao cumprimento do formalismo previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do C. Processo Penal. O recorrente, na questão em apreço, não cumpriu os ónus de especificação ali previstos. Não há lugar à formulação do convite previsto no nº 3, do art. 417º, do C. Processo Penal, atento o que se dispõe no seu nº 4 e do qual decorre que o corpo da motivação constitui o limite do aperfeiçoamento ou seja, o que dele não consta não pode ser já levado às conclusões.
Desta forma, mostra-se inviabilizada a reapreciação da prova, no âmbito do recurso de impugnação da matéria de facto (cfr. Acs. desta Relação, de 25/06/2008, proc. nº 185/05.0GAOFR, e de 09/07/2008, proc. nº 28/06.7JACBR, in http://www.dgsi.pt).
Não deixaremos no entanto de referir que não pode o recorrente esquecer o princípio fundamental da prova em processo penal, ínsito no art. 127º, do C. Processo Penal, segundo o qual a prova, salvo diferente disposição da lei, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador.
É verdade que a livre apreciação da prova não significa uma apreciação imotivável e incontrolável, fruto do arbítrio do julgador, mas antes uma avaliação feita por recurso a critérios objectivos e visando alcançar a verdade material.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, “a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando – parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido a com êxito a jurisprudência anglo-americana – o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse.” (Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 204 e ss.).
Mas, como resulta da fundamentação da sentença recorrida, a Mma. Juíza que, e não é despiciendo referi-lo, beneficiou da imediação e da oralidade da prova – através das quais pôde analisar as reacções e os perfis dos intervenientes processuais que perante si depuseram –, fazendo realçar o nervosismo do assistente ao prestar declarações, e as faltas de concordância entre estas declarações e as prestadas no inquérito, e entre elas e os depoimentos das testemunhas de acusação, por um lado, e fazendo realçar por outro, a credibilidade que lhe mereceu os depoimentos das testemunhas de defesa pela forma serena como foram produzidos, sem que, no entanto, tenha deixado de fazer referência aos lapsos por estas revelados mas que considerou justificados, não logrou ultrapassar a dúvida razoável sobre o que, efectivamente, tinha ou não acontecido, permanecendo no non liquet que, necessariamente, teve que resolver pela aplicação do princípio do in dubio pro reo.
E a verdade é que o próprio recorrente reconhece, ao menos de forma implícita, que as suas declarações em audiência podem não ter sido convincentes – apelando para uma doença que, salvo o devido respeito, em nada afecta a capacidade de prestar declarações – bem como reconhece a existência de meras discrepâncias e dissentimentos encontrados nos depoimentos do assistente e em algumas testemunhas de acusação, sobre factos meramente instrumentais, mas não decisivos para o apuramento dos factos e dos crimes em análise, como tratando-se de contradições insanáveis, quando estas, como é sabido, são coisa bem diferente daqueles.
Assim, sendo os elementos fornecidos pela imediação e a oralidade os determinantes para a avaliação da prova, mostrando-se a decisão tomada pela Mma. Juíza fundada na sua livre convicção e sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum, tal decisão não deve ser alterada pelo tribunal de recurso.
Em conclusão de tudo quanto antecede, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto, tal como o foi na decisão recorrida.
Os factos provados são insusceptíveis de preencherem os tipos, objectivos e subjectivos, dos crimes imputados aos arguidos nas acusações, pública e particular, pelo que se deve manter a sua absolvição.
A absolvição dos crimes imputados determina necessariamente a absolvição dos arguidos demandados quanto aos pedidos de indemnização civil [posto que não estamos diante de situações de responsabilidade objectiva].
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, e em consequência, confirmam integralmente a sentença recorrida.