Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/05.5TBOHP.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
ENSINO
PRESCRIÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DEC.LEI Nº 86/98, DE 3/4 (REGIME JURÍDICO DO ENSINO DA CONDUÇÃO); ARTºS 504º, Nº1, E 508º DO C.CIV.
Sumário: I – Alegando a autora factos que consubstanciam simultaneamente uma situação de responsabilidade contratual e de responsabilidade extracontratual, existe concurso de responsabilidades, arrancando o pedido de indemnização de uma cumulação inicial de causas de pedir.

II – Se num mesmo facto concorrerem as características de um incumprimento contratual e a violação do dever geral de não causar dano a outrem, existe um concurso de responsabilidades, configurando duas causas de pedir, devendo, nestes casos, adoptar-se a chamada “teoria da opção” pelo lesado.

III – No ensino da condução automóvel, o contrato celebrado entre a escola e o aluno/instruendo postula deveres de protecção destinados a salvaguardar a integridade pessoal e patrimonial, designadamente aquando da prática de condução.

IV – Os instruendos não têm a direcção efectiva do veículo que conduzem em aprendizagem, sendo terceiros beneficiários para efeitos do artº 504º, nº 1, do C.Civ., por ser a escola de condução quem detém a direcção do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, respondendo pelos riscos do mesmo, nos termos do artº 503º do C. Civ..

V – Proposta inicialmente uma acção pela autora contra a seguradora da escola de condução, que veio a ser absolvida do pedido com fundamento na não cobertura pelo contrato de seguro, o direito de indemnização contra a escola, na qualidade de proprietária do veículo, só pode ser exercido após o trânsito em julgado da sentença absolutória proferida naquela acção, cujo decurso do processo, face ao princípio da legitimidade exclusiva (artº 29º, nº 1, al. a), do D.L. nº 522/85, de 31/12), funcionou como causa impeditiva do exercício do direito de indemnização contra a escola de condução, proprietária do veículo, nos termos do artº 306º do C. Civ., pois só a partir daí é que a autora adquiriu as condições objectivas para exercitar o seu direito de indemnização contra a Ré e exigir judicialmente a respectiva obrigação, segundo o critério da exigibilidade.

VI – Por outro lado, o pedido de intervenção principal provocada da escola de condução, requerido pela autora na primitiva acção, constitui acto interruptivo da prescrição, nos termos do artº 323º, nºs 1 e 4, do C. Civ., por revelar a intenção da autora em exercer o correspondente direito.

VII – O Dec. Lei nº 59/2004, de 19/03, que alterou o artº 508º do C. Civ. relativamente aos limites da responsabilidade pelo risco, tem natureza interpretativa, aplicando-se aos acidentes anteriores ao início da sua vigência.

VIII – Provando-se que a autora tinha 18 anos de idade na datado acidente, que era uma pessoa saudável, que tinha concluído o curso de recepção e administração turística, que estava para ingressar no seu primeiro emprego, onde iria auferir € 450,00/mês; que foi obrigada a abdicar de empregos porque não consegue estar muito tempo de pé; e que ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral parcial de 20%, é equitativo o montante de € 125.000,00 arbitrado a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro previsível.

IX – A concepção do dano não patrimonial não se limita às simples perturbações emocionais e à dor, mas centra-se na estrutura ontológica da pessoa e no seu projecto de vida, enquanto “dano pessoal”, e é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória.

X – Provando-se que a autora sofreu lesões no joelho e na perna direita, com rotura do menisco interno; que teve três intervenções cirúrgicas e vários internamentos hospitalares, com 638 dias de incapacidade temporária; que sofreu desgaste físico e psicológico com as deslocações e tratamentos; que teve queixas e sofreu dores físicas permanentes, de que anda sofre; que suportou ansiedade e tristeza diários, mormente por ter perdido o seu primeiro emprego e por ter tido de abdicar do uso de saias e de fatos de banho (por causa de cicatrizes várias); que ainda hoje não consegue descer ou subir escadas sem apoio e que não consegue estar muito tempo em pé, mostra-se proporcionada a indemnização de € 30.000,00 a título de dano não patrimonial.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

            1.1. - A Autora -A.... – instaurou (3/1/2005) na Comarca de Oliveira do Hospital acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – ESCOLA DE CONDUÇÃO B.....

            Alegou, em resumo:

            A Autora acordou com a Ré em que esta lhe ministrava, mediante um preço, lições tóricas e práticas de forma a habilitá-la à condução de veículos ligeiros e motos, sendo portadora da respectiva licença de aprendizagem.

            No dia 17 de Agosto de 2000, em plena aula prática, quando conduzia na via pública um motociclo, propriedade da Ré, derrapou na areia ali existente, bateu no lancil e caiu no passeio ficando sob o veículo.

            Em consequência da queda, a Autora sofreu lesões graves no joelho e perna direita com rotura do menisco interno, que originaram danos patrimoniais e não patrimoniais.

            Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de 179.396,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.

            Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese, com a excepção da prescrição do direito da Autora ( art.498 nº1 do CC ), bem como por impugnação.

            Replicou a Autora contraditando a defesa por excepção.

            1.2. - No saneador ( fls.133) julgou-se improcedente a excepção da prescrição, afirmando-se a validade e regularidade da instância.

            1.3. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença (fls.391 a 398) que decidiu pela improcedência da acção, absolvendo a Ré do pedido.

            1.4. - Inconformada, a Autora recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

[…………………………………………………………………………………………..]

           

            Contra-alegou a Ré, em síntese:

[………………………………………………………………………………………….]


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – O objecto do recurso:

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC), são as seguintes:

            (1ª) A indemnização reclamada em sede de responsabilidade contratual;

            (2ª) – A indemnização no âmbito da responsabilidade civil objectiva ( prescrição, limites e quantificação dos danos).

            2.2. – Os factos provados:

[……………………………………………………………………………………….]

2.3. – A responsabilidade contratual:

2.3.1. - A sentença recorrida, situando o problema no âmbito da responsabilidade civil contratual, julgou a acção improcedente por falta de ilicitude da Ré, argumentando, em síntese:

 “ Não sofre dúvidas que a prática da instrução coenvolve da parte do instrutor, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e saber profissionais, a assunção de obrigação de meios, implicando o uso de meios humanos e técnicos necessários à obtenção do adequado ensino, existindo incumprimento se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado.

“ Ora, no caso em apreço, atenta a singeleza da matéria provada respeitante à causa do acidente - em determinado momento, o motociclo derrapou na areia existente no local, embateu no lancil do passeio e veio a cair no passeio, ficando a autora sob o motociclo - não é possível concluir que os instrutores tenham incorrido numa falta técnica por acção ou omissão”.

Objecta a Autora dizendo verificar-se responsabilidade contratual, porquanto a ilicitude da Ré traduz-se no facto dela, através dos funcionários instrutores, haver escolhido e indicado à Autora um trajecto para a aula prática de condução que apresentava areia no pavimento da via, propiciadora da derrapagem, não executando devida e diligentemente os actos a que estava contratualmente obrigada;

Subsidiariamente, ocorre responsabilidade civil extracontratual objectiva ( arts.503 nº1 e 504 nº1 do CC), porque o acidente inscreveu-se nos riscos próprios do veículo, a Ré detinha a direcção efectiva do mesmo e utilizava-o no próprio interesse, sendo a Autora terceira beneficiária.

2.3.2. – Na petição, com que propõe a acção, o autor deve “ expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção “, significando que terá de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que pretende fazer valer e que consubstanciam a causa de pedir ( art.498 nº4 do CPC ).

Pode suceder que o mesmo pedido se baseie em duas ou mais causas de pedir distintas, originando uma cumulação inicial, sendo, para o efeito, definida a causa de pedir “como a previsão da norma que os factos alegados e o efeito jurídico pedido permitem preencher, numa relação de causa efeito” ( MARIANA GOUVEIA, A Causa de Pedir, pág.242).

A Autora não tomou expressa posição, tanto na petição inicial, como na réplica, porque o que pretende é a responsabilidade da Ré pelos danos ( cf. art.64 da petição), embora se depreenda arrancar a sua pretensão indemnizatória de ambas as responsabilidades ( contratual e extra-contratual) pois se, por um lado, parece ter alegado o incumprimento do contrato ( arts.3º a 8º, 63º da petição), por outro, afirma a obrigação de indemnização por referência ao art.483 do CC ( art.62º da petição) ou que a presente acção é a continuidade da acção anteriormente proposta contra a Companhia de Seguros ( art.25º da petição).

E assim foi interpretada pela Ré na contestação, quer ao excepcionar a prescrição trienal do art.498 nº1 do CC, quer ao impugnar motivadamente, alegando que o acidente não se deu por qualquer acto ou omissão dela, ou seja, por culpa sua, embora “questionável seria, no entanto, a responsabilidade objectiva, atento o modo como ocorreu o acidente” ( art.28º da contestação).

Por conseguinte, a Autora alicerça a sua pretensão em ambas as situações de responsabilidade, que no plano processual configura uma cumulação inicial de causas de pedir, legalmente admissível, exigindo-se apenas, no caso de unicidade de partes, a compatibilidade substancial ( arts.193 nº2 e 30 nº2 CPC).

Quando um dano é consequência de um facto que simultaneamente viole uma relação de crédito e um dos direitos absolutos, tem-se questionado se existe um concurso real ou aparente de ambos os regimes da responsabilidade.

O Código Civil é omisso sobre esta matéria, muito embora VAZ SERRA houvesse equacionado o problema nos trabalhos preparatórios, no sentido de conferir ao lesado a possibilidade de optar por um ou outro regime e até de cumular regras de uma e outra modalidade da responsabilidade ( BMJ 85, pág.115 e segs.).

Se num mesmo facto concorrem as características de um incumprimento contratual e a violação do dever geral de não causar dano a outrem, existe um concurso de responsabilidades, configurando duas causas de pedir ( cf., por ex., Ac STJ de 22/10/87, BMJ 370, pág.529).

Deve adoptar-se a chamada “teoria da opção”, conferindo-se ao lesado a possibilidade de escolher, porquanto, como afirma VAZ SERRA, “ (…) a solução que se afigura preferível é a de que são aplicáveis as regras de ambas as responsabilidades, à escolha do lesado, pois a solução contrária representaria para este um prejuízo grave quando as normas da responsabilidade extracontratual lhe fossem mais favoráveis, e não é de presumir que ele tenha querido, com o contrato, afastá-las, não sendo mesmo válida uma convenção prévia de exclusão de algumas delas (…) “ ( RLJ ano 102, pág.312) (cf.  no mesmo sentido, por ex., PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal e Indemnização, pág.714; RUI ALARCÃO, Direito das Obrigações, pág.209; MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág.411 ).

2.3.3. - O ensino da condução está submetido a um regime jurídico específico sendo que o vigente à data dos factos (17/8/2000) foi aprovado pelo DL nº86/98 de 3/4.

Ainda que não conste norma idêntica à do art.1º nº1 do revogado DL nº263/95 de 10/10 ( “ o acesso ao ensino da condução de veículos automóveis formaliza-se através de contrato a celebrar entre o candidato e a escola de condução” ), prevendo agora a inscrição do candidato a condutor ( art.11º ), a verdade é que se estabelece uma relação contratual entre o candidato a condutor e a escola de condução, de natureza onerosa (art.15), configurando-se um contrato de prestação de serviços de ensino de condução ( art.1154 do CC).
Na fenomenologia dos contratos, a intersubjectividade vinculante ultrapassa o processo formativo, pois tratando-se de um negócio jurídico bilateral, rectius, um contrato sinalagmático, dele emergem direitos e deveres consubstanciados numa relação jurídica complexa. E polarizando-se a relação jurídica obrigacional em torno de uma ou mais prestações típicas - deveres principais ou primários da prestação - o seu âmbito alarga-se, no entanto, aos deveres acessórios, secundários ou complementares de conteúdo diversificado, sujeitando ainda as partes à “ ordem envolvente da interacção negocial ”, ou seja a critérios normativos de razoabilidade e de boa-fé, com uma função integrativa e reguladora das condutas dos contraentes.
            De tal forma que o direito positivo assevera que todo o negócio jurídico deve ser pontualmente cumprido e no cumprimento das obrigações como no exercício do direito correspondente devem as partes procederem de boa-fé ( arts.406 nº1 e 762 nº2 do CC ).
A pretensão da Autora em sede de responsabilidade civil contratual pressupõe, assim, a comprovação do incumprimento ( lato sensu) da Ré, que tanto pode reportar-se à prestação principal, como incidir sobre os deveres secundários ( acessórios e/ou laterais de conduta) com reflexos no fim do contrato.
Neste contexto, impõe-se convocar os chamados “deveres de protecção”, inseridos no princípio geral do dever de prevenção do perigo, segundo o qual a pessoa que cria ou mantém uma situação especial de perigo tem o dever jurídico de agir, tomando as providências necessárias para prevenir os danos com ela relacionados, e que, desde há muito, foi objecto de especial atenção pela jurisprudência e doutrina alemãs, cuja base de sustentação ético-jurídica radica no “neminem laedere”.
Sejam os deveres de protecção autónomos ou não, relativamente ao dever de prestação principal, a sua omissão pode gerar ( admitidos os demais requisitos) uma situação de responsabilidade civil e a consequente obrigação de indemnização.

Embora não previstos legalmente no contrato de mandado, extensivo ao contrato de prestação de serviços ( art.1156 CC), mas “ dada a analogia do contrato de trabalho com o da prestação de serviços, também em relação a este último se aceita existirem, quer a favor do prestador do serviço, quer em benefício do seu credor, uma série de deveres destinados a salvaguardar a integridade pessoal e patrimonial” ( CARNEIRO DA FRADA, Contrato e Deveres de Protecção, pág.148).

Compreendendo o ensino da condução as modalidades de “teoria da condução”, “prática de condução” e “técnica “ ( art.6º do DL nº86/98), não se questiona a violação do dever primário da prestação ( ensino da condução ), mas a omissão do dever de protecção quanto à integridade física da Autora/instruenda no decurso da prática de condução.

Comprovou-se que, no dia 17 de Agosto de 2000, a Autora, em plena aula prática, orientada por um funcionário da Ré, conduzia na via pública um motociclo de instrução, propriedade da Ré, de marca S..., modelo GN 250, e com a matricula 00-00-CG, acontecendo que, a dada altura, o motociclo derrapou na areia existente no local, embateu no lancil do passeio, onde veio a cair, ficando a Autora sob o mesmo.

Conforme se justificou na sentença, competia à Autora ( art.342 nº1 do CC) o ónus da alegação e prova da obrigação e do incumprimento ou cumprimento defeituoso da prestação, mas que não logrou demonstrar, por a factualidade apurada ser insuficiente para o juízo de imputação da desconformidade com o contrato.

Segundo a apelante a violação contratual reside no facto de o instrutor haver escolhido e indicado uma via pública onde existia areia, potenciadora de derrapagens, logo devia ter previsto e prevenido a existência de perigo.

Sabe-se que os locais das aulas práticas são previamente escolhidos e indicados pelos formadores, obedecendo a critérios de segurança e eficácia da aprendizagem, limitando-se os instruendos a seguir as indicações dos instrutores ( cf. respostas aos quesitos 1º e 2º).

Não foi sequer alegado que aquele local escolhido ( na zona industrial, em frente ao estaleiro) se apresentasse inadequado para a execução da aula prática de condução ou para a segurança dos instruendos. A circunstância de existir areia, sem mais, também não o tornava impeditivo, por se ignorar a extensão e se era ou não uma quantidade tal e significativa que inevitavelmente poria em risco a condução, desconhecendo-se até qual a concreta manobra que a Autora estava a realizar.

Sendo a aprendizagem da condução prática um processo gradual e dinâmico, executada no terreno, com as suas próprias contingências, o dever de prevenção não assume um espectro tal que legitime a eliminação asséptica de todo e qualquer atrito.

Além disso, a Autora estava acompanhada de profissionais da Ré que seguiam noutro veículo, orientando a sua condução e que vigiavam a estrada (cf. respostas aos quesitos 39º e 40º).

Deste modo, e em resumo, não há fundamento para a responsabilidade civil contratual.

2.4. - A responsabilidade extracontratual objectiva:

A responsabilidade objectiva funda-se na criação de um risco, por quem tem a direcção efectiva do veículo e o utiliza no seu interesse.

A direcção efectiva do veículo consiste no poder real ( de facto) sobre ele, quem de facto goza ou usufrui das suas vantagens e por essa razão cabe o respectivo controle.

Sendo indispensável a cumulação dos dois requisitos ( direcção efectiva/utilização no próprio interesse), “ os instruendos não têm a direcção efectiva do veículo, embora se possa dizer que o utilizam no seu próprio interesse ( com mais rigor se diria que utilizam no seu interesse a instrução e não propriamente o veículo) “ ( DARIO MARTINS ALMEIDA, Manual de Acidentes de Viação, 1980, pág.311; no mesmo sentido, excluindo ao instruendo a direcção efectiva do veículo, OLIVEIRA MATOS, Código da Estrada Anotado, 1988, pág.446).

Porque o motociclo pertencia à Ré, que o utilizava nas aulas práticas de condução, é ela quem detém a direcção efectiva e o utiliza no seu próprio interesse, e, nesta medida, responde pelos riscos próprios do mesmo ( art.503 nº1 do CC).

A Autora instruenda apresenta-se como terceira beneficiária ( art.504 nº1 do CC), porque a utilização do veículo é inerente à aprendizagem e correspondente ensino prático, por força do contrato de prestação de serviços com a Ré, dona do veículo, logo estranha à criação do risco inerente. Trata-se de uma situação similar ao daquelas pessoas ocupadas na actividade funcional da viatura, como, por exemplo, o motorista, quando ligadas ao dono por um contrato de trabalho e quando vítimas de acidente em resultado dos riscos próprios do veículo onde exercem a sua actividade ( cf., por ex., VAZ SERRA, BMJ 90, pág.134, RLJ ano 102, pág.27, DARIO ALMEIDA, loc.cit., pág.329 a 331; Ac STJ de 25/2/75, BMJ 244, pág.269, de 27/6/89, BMJ 388, pág.517, Ac RE de 14/7/83, C.J. ano VIII, IV, pág.311, Ac RC de 27/2/96, C.J. ano XXI, II, pág.5).

Sendo assim, e figurando a derrapagem entre os riscos próprios do veículo, “sem nenhuma espécie de dúvida” ( cf., por ex., ANTUNES VAREA, RLJ ano 118, pág.208 ), conclui-se pela responsabilidade objectiva da Ré.

2.5. - A excepção da prescrição:

A Ré excepcionou a prescrição do direito da Autora, porque tendo o acidente ocorrido em 17/8/2000, a acção foi proposta em 3/1/2005 e citada em 8/1/2005, logo após o decurso de três anos ( art.498 nº1 CC).

No saneador ( fls.133 e 134) foi julgada improcedente a excepção peremptória da prescrição, com fundamento em não se aplicar o art.498, mas antes o art.309 do CC, que estabelece o prazo prescricional de 20 anos, qualificando a situação como de responsabilidade civil contratual.

Considera a Ré/apelada ( cf. contra-alegações) que, a configurar-se uma situação de responsabilidade pelo risco, o direito da Autora está prescrito, tal como havia invocado na contestação.

Coloca-se a questão de saber, antes de mais, se a decisão que julgou improcedente a excepção faz caso julgado formal ( art.672 do CPC), impeditivo da sua apreciação.

Como se sabe, existem divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre a extensão do caso julgado - tese lata ( o caso julgado abrange a causa de pedir e os pressupostos da sentença ), tese restrita ( o caso julgado apenas abrange a decisão ) e tese mista ou ecléctica ( o caso julgado incide sobre a decisão e a motivação, desde que seja um antecedente lógica dela, indispensável a reconstruir e fixar o respectivo conteúdo).

A teoria ecléctica ou mista sobre os limites objectivos do caso julgado merece acolhimento porque” embora as premissas da decisão não adquiram, em regra, força de caso julgado, deve reconhecer-se-lhes essa natureza, quer quando a parte decisória a elas se referir de modo expresso, quer quando constituírem antecedente lógico, necessário e imprescindível, da decisão final” ( RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, vol.III, pág. 230 ), ou seja, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão (TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo, pág.578 ).

Neste contexto, uma vez que o despacho que julgou improcedente a excepção da prescrição tinha como pressuposto ou antecedente lógico a responsabilidade contratual, não opera o caso julgado formal quanto à prescrição em sede de responsabilidade extracontratual, significando que a preclusão pro judicato está limitada à prescrição do direito fundado na responsabilidade contratual, mas já não em relação à prescrição da responsabilidade civil extracontratual objectiva.

Nesta, o prazo de prescrição é de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa responsável e da extensão integral dos danos ( art.498 nº1 do CC ), isto é, “ a partir do da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu “ ( ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 2ª ed., pág.503).

Como acidente ocorreu em 17/8/2000 e a acção foi proposta em 3/1/2005, citada a Ré em 8/1/2005, dir-se-ia já haver decorrido o prazo de prescrição.

Contudo, impõe-se aquilatar da relevância da pendência da acção anteriormente instaurada pela Autora contra a Seguradora Fidelidade Mundial quanto ao exercício do direito e como causa de interrupção da prescrição.

Está provado por documento ( cf. certidão de fls.110 ) ( arts. 659 nº3 e 713 nº2 CPC) que:

Em 7 de Julho de 2003, a Autora propôs contra a Companhia de Seguros C.....acção declarativa, pedindo a condenação no pagamento de € 103.573,77, acrescida de juros de mora desde a citação.

Alegou, em resumo, que no dia 17 de Agosto de 2000, pelas 15.10 horas, quando conduzia o motociclo S...250 matrícula 00-00-CC, no âmbito de uma aula prática ministrada pela B..., embateu no lancil, perdeu o controle e ficou debaixo do veículo, sofrendo danos patrimoniais e não patrimoniais.

Demandou a Seguradora para quem a Escola de Condução transferira a responsabilidade civil pelos danos causados pelo veículo.

Contestou a Ré Seguradora, alegando que o contrato de seguro não cobre os danos da Autora.

A Autora replicou e requereu a intervenção principal provocada da Escola de Condução.

Por despacho de 6/1/2004, com vista a decidir do incidente de intervenção, notificou-se a ré para juntar cópia do contrato de seguro e a notificação da Escola de Condução (com cópia do despacho) para juntar contrato de aprendizagem e ensino de condução celebrado com a Autora.

A Escola de Condução respondeu.

No saneador sentença de 7/5/2004, transitado em julgado, decidiu-se julgar improcedente a acção e absolver do pedido a Ré Companhia de Seguros Fidelidade Mundial S.A, bem como o pedido de intervenção principal provocada.

A instauração da acção contra a Seguradora e decurso do processo, face ao princípio da legitimidade exclusiva ( art.29 nº1 a) do DL nº522/85 de 31/12), funcionou como causa impeditiva do exercício do direito de indemnização contra a Escola de Condução, proprietária do veículo, nos termos do art.306 do CC.

Com efeito, não se iniciando o prazo de prescrição enquanto o direito não puder ser exercido, verifica-se que, face à indicação do contrato de seguro pela Ré Escola de Condução na declaração amigável ( cf. fls.17) e tendo a Seguradora chegado até a pagar à Autora 2.000.000$00 ( cf. resposta ao quesito 20º), esta não podia legalmente demandar a Escola de Condução, porque o pedido se continha dentro do seguro obrigatório. De resto, quando confrontada com a posição assumida pela Seguradora na contestação, logo requereu a intervenção principal provocada da Escola.

Assim, o direito contra a Escola de Condução só passou a poder exercer-se após o trânsito em julgado do saneador sentença de 7/5/2004, que absolveu a Seguradora do pedido, pois só a partir dai é que a Autora adquiriu as condições objectivas para exercitar o seu direito de indemnização contra Ré, proprietária do veículo, e exigir judicialmente a respectiva obrigação, segundo o “critério da exigibilidade”. Radicando o instituto da prescrição em razões de segurança jurídica e na inércia do titular do direito em exercê-lo no período temporalmente estabelecido, não há negligência daquele que não o pode fazer valer por causas objectivas, inerentes à condição do mesmo direito.

Além disso, é inequívoco que, através da primitiva acção proposta contra a Seguradora, a Autora manifestou a intenção de exercer o direito à indemnização, inicialmente contra a Companhia de Seguros, e com a intervenção principal provocada da Escola de Condução também contra esta.

É certo que ela não terá sido citada, para o efeito, mas com a notificação do teor despacho de 6/1/2004 ( cf. fls.125) ficou a conhecer do propósito da Autora ou seja, de a responsabilizar pela indemnização peticionada, face à posição da Seguradora na contestação sobre o âmbito do contrato de seguro, logo também por esta via ocorre a interrupção da prescrição ( art.323 nº1 e 4 CC).

A lei não exige que a intenção de exercer o direito resulte da propositura de uma acção, bastando “qualquer acto” que o revele, podendo até deduzir-se indirecta ou tacitamente, designadamente, através do incidente de intervenção de terceiros ( cf., por ex., VAZ SERRA, BMJ 106, pág.206, RLJ ano 112, pág.290, Ac STJ de 15/4/79, BMJ 286, pág.234, de 12/3/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.127). Ora, foi o que sucedeu com o pedido de intervenção da Ré na primitiva acção contra a Seguradora, e que ela tomou conhecimento.

Posto isto, uma vez que a Ré foi citada em 8/1/2005, não se mostra prescrito o direito da Autora.

2.7. – Os limites da responsabilidade objectiva:

No caso da responsabilidade pelo risco, o art.508 nº1 do CC ( vigente à data do acidente ) prescrevia que a indemnização estava limitada ao dobro da alçada da Relação.

Porém, o Dec. Lei nº59/2004 de 19 de Março alterou o art.508 do CC, passando o nº1 a ter a seguinte redacção:

“ A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil “.
Antes da alteração legislativa colocou-se a questão de saber se o art.508 nº1 do CC fora ou não tacitamente revogado pelo art.6º do DL nº522/85, com duas posições antagónicas:
Uma no sentido da não revogação, porque a Segunda Directiva 84/5/CEE não foi transposta para o direito interno ( quanto à responsabilidade pelo risco ), e podendo ser invocada contra qualquer entidade pública ( efeito vertical ), já o mesmo não sucede contra um particular, pessoa singular ou colectiva ( efeito horizontal ), sendo que o enquadramento legal da determinação do valor da indemnização insere-se na regulamentação do instituto da responsabilidade civil e não no regime do seguro; ( cf., por ex., Ac do STJ de 19/9/2002, C.J. ano X, tomo III, pág.46, Ac do STJ de 9/5/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.55, Ac RG de 29/9/2002, C.J. ano XXVIII, tomo IV, pág.288; NUNO OLIVEIRA, A Revogação Tácita do artigo 508 do Código Civil, Scientia Iuridica, tomo LI nº292, 2002, pág.97 e segs. ).
Outra, sustentando a tese da revogação tácita, segundo a qual os limites máximos de indemnização estabelecidos pelo art.508 nº1 do CC foram substituídos pelos montantes mínimos do capital seguro, previstos no art.6º do DL 522/85, fundamentando-se em dois argumentos essenciais: a interpretação do direito nacional em conformidade com as normas do direito comunitário, e as normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm também natureza de regras de direito material da responsabilidade civil, revogatória, nessa parte, do art.508 do CC ( cf., por ex., Ac do STJ de 13/3/2003, com anotação concordante de CALVÃO DA SILVA na RLJ ano 134, pág.197 e segs., Ac STJ de 27/3/2003, www dgsi ).

Com a alteração do art.508 do CC pelo Decreto-Lei nº59/2004 de 19 de Março, a querela jurisprudencial ficou, assim, resolvida ou clarificada por via legislativa, ao repor-se expressamente a compatibilidade entre o art.508 e a Directiva 84/5/CEE de 30/12/83 ( Segunda Directiva ), acolhendo o legislador nacional a interpretação dada pelo Tribunal da Justiça das Comunidades no acórdão de 14/9/2000.

Para além de ser dogmaticamente mais consistente a tese da revogação tácita, a verdade é que a redacção dada ao art.508 pelo Dec.Lei nº59/2004 adquire a natureza de lei interpretativa ( art.13 CC).

Já depois da alteração legislativa, o STJ no Acórdão nº3/2004 de 25/3/2004 ( publicado no DR I-A de 13 de Maio de 2004 ) fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora:

“ O segmento do art.508º nº1 do Código Civil, em que se fixam os limites máximos de indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº3/96, de 25 de Janeiro “.

O Supremo Tribunal de Justiça acolheu a tese da revogação tácita, também com o fundamento de que o DL nº 59/2004 tem natureza interpretativa e o próprio acórdão uniformizador exala idêntica natureza ( cf., por ex., Ac STJ de 4/10/2005, proc. nº05A2284, em www dgsi.pt).

            Consequentemente, os limites máximos da indemnização pelo risco são os do limite mínimo do seguro obrigatório, em vigor à data do acidente ( 17/8/2000 ), ou seja, os estabelecidos pelo art.6 do DL nº 522/85 ( redacção do DL nº 3/96 de 25/1), de 120.000.000$00 por sinistro.

2.8. - Os danos ressarcíveis:

2.8.1. – Danos patrimoniais:

A Autora gastou € 3,00 em consulta (r.q.17º), € 137,17 no acompanhamento da mãe ( r.q.18º) e € 50,00 com a inutilização da roupa ( r.q.21º), no valor global de € 170,17.

A Autora reclama a quantia de € 151.000,00 a título de dano patrimonial futuro.

Na data do acidente ( 17/8/2000), a Autora tinha 18 anos de idade ( nasceu em 23/5/1982, conforme consta dos documentos de fls.17, 18 e 188), era uma pessoa saudável, tinha concluído, com êxito, o Curso de Técnica de Informação, Recepção e Administração Turística da Escola Profissional de Oliveira do Hospital e estava para ingressar no seu primeiro emprego como recepcionista numa empresa de Condeixa-a-Nova para a qual tinha sido admitida com efeitos a partir de 04/09/2000, com vencimento mensal de 90.000$00. Contudo, perdeu o emprego e foi obrigada a abdicar de empregos porque não consegue estar muito tempo de pé.

Em consequência do acidente sofre de incapacidade permanente geral fixável em 10%, a que acresce a título de dano futuro mais 10%. resultando assim uma incapacidade permanente geral global de 20%, sendo as sequelas descritas compatíveis com a actividade e profissional exercida pela examinada, exigindo esforços acrescidos.

É inquestionável tratar-se de um dano patrimonial futuro ( art.564 nº2 do CC ), não só por haver ficado afectado na actividade profissional, mas também a actividade da lesada enquanto pessoa, ou seja, a sua incapacidade funcional.
Na verdade, a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, na envolvência do que vem sendo designado por dano biológico, determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial (cf., por ex., ÁLVARO DIAS, Dano Corporal - Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios, Coimbra - Almedina - 2001, págs. 255 a 265 ), Ac do STJ de 21/9/94, de 7/10/04, de 13/1/2005, www dgsi.pt/jstj).
Para a quantificação do dano serão convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do Código Civil, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita, pois não está instituído ainda em Portugal um sistema tarifado, semelhante à “ baremación “, vigente em Espanha, com a Ley nº30/1995 de 8/11, vinculativo para os tribunais, ou o modelo francês das “ barèmes “ ( os critérios e valores fixados pela Portaria nº377/2008 de 26/5 reportam-se apenas à regularização extrajudicial de sinistros, não afastando valores superiores aos propostos ( art.1º)).
Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “ facto concreto ”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “ pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.
Como é sabido, têm sido vários os critérios utilizados para o cálculo da indemnização, mas quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não são vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano (art.566 nº3 CC), sendo, por isso, de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, assentes em equações de complexidade variável, como determinadas fórmulas matemáticas utilizadas em alguns arestos, encontrando-se criticamente comentadas no estudo do Cons. SOUSA DINIS, “ Dano Corporal em Acidente de Viação “, publicado na C.J. do STJ ano V, tomo II, pág.11, e mais tarde na C.J. ano IX, tomo I, pág.6 e segs.
Daí que quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não sejam vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano, sem embargo da utilização de critérios pautados por um maior grau de objectividade, em que o uso paralelo da aritmética apenas deve servir como elemento auxiliar da decisão.
A Autora tinha 18 anos de idade, traduzindo-se a esperança média de vida até aos 78/80 anos. Como tem acentuado a jurisprudência do STJ, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente, não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum ( cf. por ex., Ac do STJ de 28/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.36, de 25/7/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.128 ).
            E nos casos em que o lesado não exerce qualquer actividade profissional tanto a doutrina como a jurisprudência são hoje unânimes no sentido da ressarcibilidade do dano ( cf., neste sentido, VAZ SERRA, RLJ ano 102, pág.296; ANTUNES VARELA, Obrigações, vol.I, pág.910; Ac STJ de 5/2/87, BMJ 364, pág.819, Ac STJ de 17/5/94, C.J. ano II, tomo II, pág.101).
Neste contexto, tendo por base os princípios gerais exposto, para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro da Autora, relevam, designadamente, os seguintes tópicos:
Mantendo-se o dano fisiológico para além da vida activa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida, tendo então 18 anos de idade, por mais 60 anos;

A remuneração mensal de 90.000$00, que iria auferir como recepcionista, pois já havia sido admitida e começaria a trabalhar em 4/9/2000. Note-se que o salário mínimo nacional era então de 63.800$00 ( DL nº573/99 de 30/12) e se tivermos em conta que mesmo nas situações em que o lesado se encontra ainda a frequentar um curso académico com possibilidades de ingressar no mercado de trabalho se deve partir de um salário substancialmente superior ( cf., por ex., Ac do STJ de 31/1/2007 (proc. nº 06A4301), em www dgsi.pt), aquele montante de 90.000$00 é perfeitamente razoável;
A percentagem de 20% de incapacidade permanente geral global, sendo as sequelas compatíveis com a sua actividade profissional, exigindo esforços acrescidos, bem como a natureza das lesões, sendo que, para além de perder o primeiro emprego foi obrigada a abdicar de outros, por não conseguir estar muito tempo de pé;
Todos aqueles factores que, sendo projectados para o futuro, não é possível quantificar, como, por exemplo, a evolução dos rendimentos, a inflação e variabilidade das taxas de capitalização, devendo ainda atender-se ao facto de receber de uma só vez aquilo que em princípio deveria receber em fracções anuais, a fim de se evitar uma situação de injustificado enriquecimento.

Em juízo de equidade, estima-se actualmente o dano patrimonial futuro em € 125.000,00.

2.8.2. - Danos não patrimoniais:
A doutrina e a jurisprudência têm teorizado sobre os modos de expressão do dano não patrimonial, distinguindo-se, como mais significativos, o chamado “ quantum doloris “, ou seja, as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária; o “ dano estético “, o “ prejuízo de afirmação pessoal “, dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes, o prejuízo da saúde geral e longevidade, que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar, o “ pretium juventutis “.
Pretende-se, desta forma, superar a categoria tradicional de “ dano moral“, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se com isso um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais. Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.
Como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial ( arts.496 nº3 e 494 do CC ), há que atender à natureza e intensidade do dano, à situação económica do lesado e do responsável, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.
Em matéria de acidentes de viação, assistiu-se nas últimas décadas a uma evolução significativa quanto aos padrões da indemnização, a fim de se evitarem prejuízos irreparáveis aos lesados.
De resto, nesta linha de evolução, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, facto notório, na carecido de alegação ou prova ( art.514 do CPC ), aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados em aplicação das directivas comunitárias, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação ( cf. por ex., Ac STJ de 1/3/2001, anotado por CALVÃO DA SILVA na RLJ ano 134, pág.112 e segs.), o que significa que os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados.

Seguindo este critério de orientação e considerando a natureza das lesões sofridas pela Autora (lesões no joelho e na perna direita com rotura do menisco interno), o período de doença, com vários internamentos hospitalares, consultas e três intervenções cirúrgicas, o grau de incapacidade, o desgaste físico e psicológico com as deslocações a Coimbra, as queixas e dores físicas permanentes de que sofreu e ainda sofre, a ansiedade e tristeza diários, tratamentos e sequelas resultantes do embate, haver perdido o primeiro emprego e ter de abdicar de outros, a circunstância de deixar de usar saias, fato de banho e evitar ir à praia ou piscinas por causa das cicatrizes com que ficou na perna direita, sendo que ainda hoje não consegue descer ou subir umas escadas sem apoio ou de pessoas ou de um corrimão, nem consegue estar muito tempo em pé essencialmente assentando a força na perna direita, bem como a idade jovem (tendo agora 27 anos de idade), mostra-se proporcionada a indemnização actualizada de € 30.000,00 ( cf., em situações algo similares, embora objectivamente mais graves, por ex., Ac do STJ de 23/5/2006 (proc. nº06A1122) e de 22/1/2008 (proc. nº07A4338), atribuindo-se uma indemnização de € 35.000,00).

Totalizam os danos o valor global de € 155.170,17, a que acrescem os juros de mora, à taxa legal, desde a citação sobre a importância de € 170,17, e desde o presente acórdão sobre a quantia de € 155.000,00, porque já actualizada (cf. Assento nº 4/2002 de 9/5/2002, DR I-A de 27/6/2002, transformado em acórdão de uniformização ).

Procede a apelação, alterando-se, em conformidade, a sentença recorrida.

2.9. - Síntese conclusiva:

1. - Alegando a Autora factos que consubstanciam simultaneamente uma situação de responsabilidade contratual e de responsabilidade extracontratual, existe concurso de responsabilidades, arrancando o pedido de indemnização de uma cumulação inicial de causas de pedir.

2. - No ensino da condução automóvel, o contrato celebrado entre a Escola e o aluno/instruendo, postula deveres de protecção destinados a salvaguardar a integridade pessoal e patrimonial, designadamente, aquando da prática de condução.

3. – Os instruendos não têm a direcção efectiva do veículo que conduzem em aprendizagem, sendo terceiros beneficiários, para efeitos do art.504 nº1 do CC, por ser a Escola de Condução quem detém a direcção do veículo e o utiliza no seu próprio interesse, respondendo pelos riscos do mesmo, nos termos do art.503 do CC.

4. - Proposta inicialmente um acção pela autora contra a Seguradora da Escola de Condução, que veio a ser absolvida do pedido com fundamento na não cobertura pelo contrato de seguro, o direito de indemnização contra a Escola, na qualidade de proprietária do veículo, só pôde ser exercido após o trânsito da sentença absolutória proferida naquela acção, cujo decurso do processo, face ao princípio da legitimidade exclusiva (art.29 nº1 a) do DL nº522/85 de 31/12), funcionou como causa impeditiva do exercício do direito de indemnização contra a Escola de Condução, proprietária do veículo, nos termos do art.306 do CC, pois só a partir dai é que a autora adquiriu as condições objectivas para exercitar o seu direito de indemnização contra a Ré e exigir judicialmente a respectiva obrigação, segundo o “critério da exigibilidade”.

5. - Por outro lado, o pedido de intervenção principal provocada da Escola de Condução, requerido pela Autora na primitiva acção, constitui acto interruptivo da prescrição, nos termos do art.323 nº1 e 4 do CC, por revelar a intenção da Autora em exercer o correspondente direito.

6. - O Dec. Lei nº59/2004 de 19 de Março que alterou o art.508 do CC, relativamente aos limites da responsabilidade pelo risco, tem natureza interpretativa, logo aplica-se aos acidentes anteriores ao início da sua vigência.

7. - Provando-se que a Autora tinha 18 anos de idade, na data do acidente ( 17/8/2000), era pessoa saudável, tinha concluído o Curso de  Recepção e Administração Turística e estava para ingressar, alguns dias após o acidente, no seu primeiro emprego como recepcionista numa empresa, onde iria auferir € 450,00 por mês, perdeu o emprego e foi obrigada a abdicar de empregos porque não consegue estar muito tempo de pé, ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral global de 20%, é equitativo o montante de € 125.000,00, a título de indemnização pelo dano patrimonial futuro.
8. - A concepção do dano não patrimonial, não limitada às simples perturbações emocionais e à dor, mas centrada na estrutura ontológica da pessoa e no seu projecto de vida, enquanto “dano pessoal”, é que a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória.

9. - Provando-se que a Autora sofreu lesões no joelho e perna direita, com rotura do menisco interno, teve três intervenções cirúrgicas e vários internamentos hospitalares, com 638 dias de incapacidade temporária, o desgaste físico e psicológico com as deslocações e tratamentos, as queixas e dores físicas permanentes de que sofreu e ainda sofre, a ansiedade e tristeza diários, a tristeza por haver perdido o primeiro emprego e ter de abdicar de outros, a circunstância de deixar de usar saias, fato de banho e evitar ir à praia ou piscinas por causa das cicatrizes com que ficou na perna direita, sendo que ainda hoje não consegue descer ou subir umas escadas sem apoio ou de pessoas ou de um corrimão, nem consegue estar muito tempo em pé essencialmente assentando a força na perna direita, bem como a idade jovem (tendo agora 27 anos de idade) mostra-se proporcionada a indemnização de € 30.000,00, a título de dano não patrimonial.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:


1)

            Julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida.

2)

Julgar a acção parcialmente procedente e condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 155.170,17 ( cento e cinquenta e cinco mil cento e setenta euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação sobre a importância de € 170,17 ( cento e setenta euros e dezassete cêntimos) e desde o presente acórdão sobre a quantia de € 155.000,00 ( cento e cinquenta e cinco mil euros).

3)

            Condenar a Ré nas custas da apelação, sendo as da 1ª instância por Autora e Ré, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à Autora ( fls.448).