Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
138/04.5TTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GÓIS PINHEIRO
Descritores: PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
NEXO DE CAUSALIDADE
ACIDENTE
LESÃO
Data do Acordão: 06/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTºS 131º, Nº 1, AL. E), E 132º, Nº 1, DO CPT
Sumário: I – O artº 131º, nº 1, al. e), do CPT, determina que o juiz, no despacho saneador, ordene o “desdobramento do processo, sendo caso disso” e o artº 132º, nº 1, dispõe que a fixação da incapacidade para o trabalho corre por apenso, se houver outras questões a decidir no processo principal.

II – No apenso de fixação de incapacidade, quando tenha lugar a sua abertura, apenas essa questão específica – a da fixação da incapacidade – pode ser apreciada e decidida, devendo as demais, designadamente a respeitante à existência do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões corporais (ou alguma delas), se for suscitada, ser apreciada e decidida no processo principal.

III – E porque essas outras questões serão, em muitos casos, não apenas questões de direito mas também de facto, haverá, no despacho saneador, que seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



Ultrapassada sem êxito a fase conciliatória do processo, instaurou A.... acção especial emergente de acidente de trabalho contra “B.... Companhia de Seguros, SA”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
- a pensão anual e vitalícia correspondente à incapacidade que vier a ser fixada em exame por Junta Médica;
- indemnização pelo período de ITP de que foi portador entre 27.10.2003 e 27.04.2004;
- a quantia de € 3.746,83 relativa a despesas com consultas médicas, tratamentos e medicamentos;
- a quantia de € 175,00 de deslocações para consultas, exames e tratamentos;
- a quantia de € 60,00 gastos em transportes para se deslocar a Tribunal;
- juros à taxa legal.
Para tanto alegou, em síntese, o seguinte:
Em 15.10.2003, quando sob as ordens, direcção e fiscalização de “C...”, procedia à limpeza de um buraco no tecto de uma obra, sofreu um acidente de trabalho, que consistiu em ter sido atingido na cara e no olho esquerdo por um pedaço de tijolo.
Daí resultaram para o Autor lesões corporais que determinaram uma ITA desde 16/10/2003 a 26/10/2003, tendo a Ré, para quem a entidade patronal transferira a sua responsabilidade por acidente de trabalho, atribuído ao Autor alta clínica, sem desvalorização, a partir daquela ultima data e pago ao mesmo a indemnização correspondente àquele período de incapacidade.
O Autor, porém, sofreu recaída em 05/01/004, apresentando então uma diminuição da acuidade visual do olho esquerdo que se agravava de dia para dia.
Dado que a Ré se recusou a prestar-lhe a assistência, afirmando que a situação do Autor se encontrava estável, este consultou um especialista e, após exames vários, submeteu-se a intervenção cirúrgica, ficando, ainda assim, afectado de IPP cujo grau deverá ser fixado por junta médica.
Citada, contestou a Ré, sustentando, em resumo, que não aceita os períodos de incapacidade invocados pelo Autor, como não aceita que o mesmo tenha ficado com qualquer grau de incapacidade permanente, além de que os gastos com medicamentos e tratamentos, em que se inclui cirurgia destinada à remoção de catarata, nada têm a ver com o acidente.
Conclui, assim, pela improcedência da acção.
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Prosseguindo os autos os seus termos, abriu-se apenso para fixação de incapacidade e, depois de realizado exame por junta médica, foi proferida decisão no sentido de que o Autor “se encontra curado sem incapacidade, com alta em 27-10-2003”.
Oportunamente, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, após o que viria a ser proferida a decisão sobre matéria de facto e, ulteriormente, a sentença, na qual, julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 60,00 por este gasta em transportes para se deslocar ao Tribunal, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, no mais se absolvendo a mesma do pedido.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o Autor, formulando na respectiva alegação as seguintes conclusões:
1a - Uma decisão judicial haverá sempre de ser o corolário lógico de todos os meios de prova carreadas para os Autos, designadamente, documental, pericial e, sendo caso disso, testemunhal (esta produzida em audiência de Julgamento); Por outro lado, qualquer decisão judicial terá de ser devidamente fundamentada, de forma a que as partes possam, mediante a sua leitura, aperceber-se de qual o raciocínio lógico efectuado pelo Julgador para chegar à conclusão a que efectivamente chegou, sendo que, naturalmente, esse raciocínio também haverá de decorrer da análise dos meios de prova supra referidos (conjugados com a aplicação das normas vigentes na matéria em causa).
2a - Do depoimento do Sr. Prof. D... que se encontra gravado na cassete n° l, do lado A, da rotação 00 à rotação 862, como aliás resulta da acta que se reporta à audiência do dia 21.04.2006 (mas onde, certamente por lapso, vem identificado como ANTÓNIO e não D...), decorre, além do mais, que tendo admitido diversas causas prováveis para esta situação (designadamente decorrentes da simples passagem do tempo), realizou na pessoa do Autor uma série de exames, a fim de detectar a real origem de tal problema, tendo, na sequência de tais exames, eliminado uma a uma todas as causas possíveis para o aparecimento da catarata, e por isso mesmo, estabelecia entre o sinistro dos Autos e a catarata um nexo de causalidade adequado.
3a - É incompreensivelmente redutora a brevíssima alusão (em nota de rodapé) que se faz ao depoimento do Sr. Prof. D... , e igualmente incompreensível é a reduzidíssima relevância que se lhe deu e que, além do mais, não traduz o que na realidade tal testemunha disse em audiência.
4a - O Autor, com a prova documental carreada para os Autos (relativamente ao
quantitativo das despesas efectuadas), e com a prova testemunhal que conseguiu levar ao Julgamento (relativamente ao nexo de causalidade) cumpriu objectivamente com o ónus de prova que se lhe impunha - art°s 342° e 563° do Código Civil.
5a - Os peritos Médicos que compuseram a Junta Médica não descartaram categoricamente a hipótese do nexo de causalidade entre os dois factos; na verdade, referiram apenas que dificilmente poderia existir tal nexo; E mais disseram que do facto de, naquela data, nada poder fazer prever o aparecimento de uma lesão do cristalino, tal não significa que, necessariamente, caso viesse a surgir (como efectivamente sucedeu), não houvesse relação causal.
6a - Ao decidir nos termos constantes da douta Sentença em recurso o Tribunal "A Quo" violou o disposto nos art°s. 659°, n° 3 do Cód. Proc. Civil, art°s 342° e 563° do Código Civil e art° 10° n° 3 da LAT, dos quais fez uma incorrecta interpretação.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal:
Revogando a douta Sentença em recurso na parte em que absolveu a Ré do pagamento da quantia € 3.746,73 relativa a despesas com consultas médicas, tratamentos (incluindo cirurgia) e medicamentos, e condenando-a no pagamento dessa verba,
E, consequentemente, reformulando a decisão no que às custas diz respeito, Vs. Exª's. farão, como sempre, a habitual Justiça.
A ré contra-alegou, concluindo assim:
1 - Não merece qualquer reparo a aliás douta sentença posta em crise pelo Recorrente - Sinistrado.
2 - Ora, na verdade, as consultas, intervenção cirúrgica e tratamentos cujo pagamento o Sinistrado - Recorrente reclama foram feitas em 2004 isto é, muito tempo depois da alta (27.10.2003).
3 - Provado também ficou que 3 meses após a alta o sinistrado- recorrente não apresentava qualquer lesão do cristalino com indicação cirúrgica.
4 - Não ficou pois, demonstrada qualquer relação causa - efeito entre o acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado e o surgimento de cataratas no olho do sinistrado.
5 - Foi feito nos presentes autos um exame médico ao Sinistrado - Recorrente. Do
referido exame também não foi possível estabelecer-se qualquer nexo de causalidade entre o acidente e o surgimento de cataratas no olho do sinistrado.
6 - Pretende o Recorrente que o tribunal valore superiormente o depoimento – opinião de um Sr. Prof. do que a dos médicos que realizaram a perícia médica. Ora tal facto é manifestamente despropositado... Deve o Tribunal valorar a prova produzida recorrendo à convicção depois de devidamente analisadas.
7-0 surgimento de cataratas não tem como causa necessária ter sido vítima de um
acidente de trabalho ou outro tipo de acidente. Pelo que, toda a conclusão a que o Recorrente chega se encontra viciada.
8 - Não violou pois o Tribunal" a quo " qualquer norma.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença proferida em 1a Instância, com as legais consequências …
Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da confirmação da sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
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Como decorre do disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ao caso por força do preceituado no artigo 1º, nº 2, alínea a), do Código de Processo de Trabalho, são as conclusões da alegação de recurso que delimitam o âmbito deste, isto sem prejuízo, obviamente, da obrigatoriedade de apreciação das questões cujo conhecimento oficioso a lei imponha.
E, percorrendo as conclusões formuladas pelo apelante, logo se constata que a questão – única - suscitada consiste em saber se existe nexo de causalidade entre o acidente de que aquele foi vítima e a patologia ocular (catarata) que, já depois de lhe haver sido dada alta pelos serviços clínicos da apelada, apresentou e que determinou a realização de intervenção cirúrgica.
Ora, o Tribunal “a quo” considerou provados os seguintes factos (transcreve-se):
I) A empresa “ C...” dedica-se à actividade de construção de edifícios, tendo, no âmbito dessa actividade, admitido o autor ao seu serviço subordinado, para no exercício da profissão de encarregado de 1ª trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização, mediante remuneração. (A)
II) No dia 15.10.2003, quando o autor trabalhava por conta, sob as ordens, direcção e fiscalização da empresa referida no ponto anterior foi vítima do seguinte acidente: quando procedia à limpeza de um buraco no tecto de uma obra, um pedaço de tijolo saltou e atingiu-o na cara e olho esquerdo. (B)
III) Nessa altura o autor recebia o salário anual de € 12.181,34 [€ 798,36 x 14 + (€ 4,15 x 22 dias x 11 meses) de subsídio de alimentação]. (C)
IV) Submetido a exame médico neste Tribunal do Trabalho de Aveiro não foi atribuída qualquer incapacidade ao autor. (D)
V) A ré pagou ao autor a quantia de € 227,38 relativa a período de ITA (de 16.10.2003 a 26.10.2003), nada mais tendo pago. (E)
VI) A sociedade “ C...” à data referida em II), havia transferido para a ré seguradora a responsabilidade infortunistico-laboral por acidentes ocorridos com os trabalhadores ao seu serviço, através de contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, com o valor da retribuição referida em III) – fls. 31 ss. (F)
VII) Na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória deste processo a ré seguradora reconheceu o acidente referido em II) como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões, a retribuição referida em III), entendendo que o sinistrado/autor se encontra curado sem desvalorização a partir de 27.10.2003, como consta de fls. 97 vº. (G)
VIII) Aberto apenso para fixação de incapacidade, nele se realizou exame por Junta Médica e, no seu termo, foi proferida decisão na qual se determinou que o autor se encontra curado sem incapacidade, com alta em 27.10.2003. (cfr. apenso)
IX) Em deslocações ao Tribunal o autor despendeu € 60,00. (1)
X) No ano de 2004 o autor teve despesas médicas (consultas e tratamentos, incluindo cirurgia) e medicamentosas, tudo na área de oftalmologia, no valor de € 3.746,83. (2)
XI) Nas deslocações a consultas e tratamentos a que se reporta o ponto anterior, o autor despendeu quantia em montante que não foi possível apurar. (3)
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Como se vê, nada encontramos na matéria de facto provada - e não há factos não provados, pois que nenhum dos quesitos que integram a base instrutória teve resposta negativa - que, aparentemente, permita tirar qualquer conclusão acerca da existência ou inexistência do falado nexo de causalidade.
Todavia, a questão foi resolvida na sentença. Lê-se, a propósito, nessa peça:
Com a presente acção pretende o autor reparação de lesões e despesas tidas para sua cura, decorrentes de acidente de trabalho que sofreu.
As partes estão de acordo que ocorreu acidente caracterizável nos termos legais, para efeitos reparatórios, como um acidente de trabalho, tendo a ré – para a qual se encontra transferida a responsabilidade através de contrato de seguro – aceite o acidente participado como de trabalho, tendo já pago indemnização por período de ITA.
A questão está, como se deixou expresso supra, em saber se a ré tem que reparar mais danos além daqueles que já reparou.
Vejamos.
Pede o autor o pagamento da indemnização relativa ao período de ITP de que foi portador entre 27.10.2003 e 27.04.2004 e pensão anual e vitalícia correspondente à incapacidade que vier a ser fixada em exame por Junta Médica.
Sucede que, no apenso aberto para fixação de incapacidade se decidiu, depois de realizado exame por Junta Médica, que o autor se encontra curado sem incapacidade, com alta em 27.10.2003.
Assim, porque não demonstrado que se verificasse o período de ITP referido pelo autor e que resultasse para o mesmo IPP, nada há a fixar por esta via.
Pede também o autor o pagamento da quantia de € 3.746,83 relativa a despesas com consultas médicas, tratamentos e medicamentos.
Ficou demonstrado que o autor teve tais despesas.
Conforme resulta do artº 10º da LAT (Lei nº 100/97, de 13 de Setembro) o sinistrado tem direito às prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica, hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e da capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado e à sua recuperação para a vida activa.
Assim, se tais prestações não forem proporcionadas quando o deviam ter sido há lugar ao pagamento do seu custo.
Só que, não há dever de indemnização caso falte a causalidade adequada entre o facto e o dano (entre o acidente e as lesões que motivam as prestações), cabendo a prova dessa causalidade ao sinistrado (cfr. a propósito arts. 342º e 563º do Código Civil).
Ora, no caso sub judice estão em questão consultas, intervenção cirúrgica e tratamentos no ano de 2004, isto é, depois da alta, tendo os Srs. peritos médicos que compuseram a Junta Médica sido unânimes em afirmar que: neste caso concreto o mecanismo do traumatismo, dificilmente poderia ter sido a causa da catarata. De facto em 07-01-2004 (três meses após o traumatismo) não havia qualquer lesão do cristalino com indicação cirúrgica (acuidade visual de 1.0 no olho traumatizado) e nada fazia prever que tal pudesse acontecer nos meses subsequentes (cfr. resposta aos quesitos no auto de exame por Junta Médica de fls. 39 do apenso).
Deste modo, não estando demonstrado o nexo de causalidade entre as consultas/tratamentos e necessidade de medicamentos com o acidente não pode a seguradora ser responsabilizada pelo seu pagamento.
Como se vê, o Senhor Juiz “a quo” valeu-se da opinião, expressa aquando da reunião da junta médica, no âmbito do apenso para fixação de incapacidade, pelos peritos que a integraram, para afastar a existência do nexo de causalidade entre o acidente e as alegadas lesões, tendo ainda, a esse propósito, em nota de rodapé, feito a seguinte observação: “O Sr. Prof. que depôs em audiência igualmente referiu que a única causa que encontra para o surgimento da catarata monocular era o acidente, mas acrescentou não poder ser taxativo, sendo apenas uma relação (acidente-traumatismo) possível”.
Mas a verdade é que a matéria não era da competência da junta médica.
Efectivamente, o artigo 131º, nº 1, alínea e), do Código de Processo do Trabalho determina que o juiz, no despacho saneador, ordene “o desdobramento do processo, sendo caso disso” e o artigo 132º, nº 1, dispõe que a fixação da incapacidade para o trabalho corre por apenso, se houver outras questões a decidir no processo principal.
Sobre a correspondente norma do Código de Processo de Trabalho de 1981, escreveu o Dr. Leite Ferreira in Código de Processo do Trabalho Anotado, 4ª Edição, pag. 598:
Com efeito, frustrada a solução do conflito por amigável composição, podem as partes pretender, com o recurso à fase contenciosa, que o tribunal se pronuncie sobre:
1 — a existência do acidente ou da doença, a sua caracterização, as relações de causalidade entre o acidente ou doença e as lesões, a determinação do salário, a determinação da entidade responsável, ete., ou
2 — a fixação da incapacidade para o trabalho.
As questões referidas em 1serão sempre decididas no processo principal.
Quanto à questão referida em 2 é preciso considerar:
a) além dessa, o tribunal tem que decidir qualquer das questões mencionadas
em l;
b) a única questão a resolver é a indicada em 2.
No caso da alínea a), isto é, se além da fixação da incapacidade o tribunal tiver
que decidir qualquer das questões mencionadas em l, correrá esta no processo principal e aquela no respectivo apenso.
Se, porém, se verificar o caso da alínea b), quer dizer, se o conflito se limita exclusivamente à fixação da incapacidade os termos da questão correrão no processo principal. A fixação da incapacidade para o trabalho constituirá, neste caso, o objecto do processo principal.
Daqui decorre que no apenso de fixação de incapacidade, quando tenha lugar a sua abertura, apenas essa questão específica – a da fixação da incapacidade – pode ser apreciada e decidida, devendo as demais, designadamente a respeitante à existência do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões corporais (ou alguma delas), se for suscitada, ser apreciada e decidida no processo principal.
E, porque essas outras questões serão, em muitos casos, não apenas questões de direito mas também de facto, haverá, no despacho saneador, que seleccionar a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, que deva considerar-se controvertida, como determina a alínea e) do nº 1 do citado artigo 131º - isto para além de, no mesmo despacho, se terem de considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados (alínea c) do mesmo número).
Ora, como já se acentuou, não foi levado à base instrutória facto algum susceptível de conduzir ao estabelecimento de um eventual nexo de causalidade entre o acidente, a subsequente perda de visão e o surgimento de catarata no olho esquerdo do Autor – sendo que, nessa sede, havia matéria de facto controvertida relevante para a decisão da causa.
E, com tal omissão, impediu-se, na prática, o Autor de fazer, na audiência de discussão e julgamento, prova sobre esses factos e a Ré de fazer a respectiva contraprova. E daí que o depoimento prestado pelo “Sr. Prof” – testemunha oferecida pelo Autor - a que se alude na citada nota da sentença, não tenha, na parte ali referenciada, podido ser apreciado, como devia, no âmbito da decisão sobre matéria de facto; e que o Senhor Juiz se tenha visto forçado, para resolver a questão, a socorrer-se da opinião dos referidos peritos, que não depuseram na audiência de julgamento – opinião que foi emitida em diligência de carácter secreto (cfr. artigo 139º, nº 1, do C.P.T.) e logo, sem observância do princípio da audiência contraditória consagrado no artigo 517º do Código de Processo Civil .
Compulsando os autos, verifica-se que essa situação – a apontada omissão - foi de algum modo induzida pelas partes, porquanto, ao usarem da faculdade concedida pelo nº 6 do artigo 139º do C.P.T., formularam quesitos, para serem respondidos pelos peritos constituintes da junta médica, que extravasam a matéria respeitante à incapacidade e entram já no domínio do problema do nexo de causalidade, sendo que o Senhor Juiz não exerceu sobre o ponto o seu poder de censura e permitiu, assim, que a discussão desse problema se transferisse do processo principal para o apenso. Estão nessas circunstâncias o 1º quesito formulado pelo Autor (cfr. fls. 129 dos autos principais) em que se pergunta se “as lesões sofridas pelo Autor em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima determinaram-lhe Incapacidade Permanente Parcial para o exercício da profissão”, que teve resposta negativa; e o 3º quesito formulado pela Ré (cfr. fls. 148), em que se pergunta se “as lesões sofridas pelo examinando em consequência do acidente dos autos no olho atingido [escreveu-se, por manifesto lapso, no “membro atingido”] são susceptíveis ao surgimento de cataratas” , que teve a seguinte resposta: “Apesar de um traumatismo ocular poder resultar em catarata, neste caso concreto o mecanismo do traumatismo dificilmente poderia ter sido a causa da catarata. De facto, em 07-01-2004 (três meses após o traumatismo) não havia qualquer lesão do cristalino com indicação cirúrgica (acuidade visual de 1.0 no olho traumatizado) e nada fazia prever que tal pudesse acontecer nos meses subsequentes)”.
Acresce que, vistas as coisas nesta perspectiva, a mencionada resposta ao quesito 1º formulado pelo Autor é deficiente ou obscura, na medida em que dá como assente, ou parece dar como assente, que a “catarata” que ulteriormente se manifestou não é uma consequência do acidente. E o que afinal era importante apurar era se o sinistrado, após a cirurgia e como sequela da “catarata”, ficou afectado de alguma IPP – isso independentemente de se saber se existe ou não nexo de causalidade entre o acidente e aquela patologia, questão que não tinha, repete-se, que ser dilucidada ali.
E do mesmo vício padece a decisão do Senhor Juiz proferida no apenso, pois a afirmação segundo a qual “o sinistrado A... se encontra curado sem incapacidade, com alta em 27-10-2003” pressupõe que não existe nexo de causalidade entre o acidente e a “catarata” que se manifestou após aquela data.
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Impõe-se, em face disto, que este Tribunal faça uso da faculdade estabelecida no artigo 712º, nº 4, do Código de Processo Civil, anulando a decisão proferida no apenso de fixação de incapacidade para que se proceda a novo exame por junta médica, devendo os peritos restringir as suas respostas à questão supra aludida; e anulando a sentença, para que se adite à base instrutória novo quesito, atinente à questão do nexo de causalidade, e se repita o julgamento para apuramento desse facto, após o que se proferirá decisão.
Com esta solução, oficiosamente decretada, fica prejudicado conhecimento da questão suscitada pelo apelante.
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Termos em que se decide anular a decisão proferida no apenso de verificação de incapacidade e, bem assim, a sentença, para que o Tribunal “a quo” proceda nos termos supra indicados.
Sem custas.