Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
599/09.6T3AVR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: OLGA MAURÍCIO
Descritores: ASSISTENTES
CRIME PÚBLICO OU SEMI-PÚBLICO
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 119º B) E 285º CPP
Sumário: 1.- Deduzida acusação apenas pelo assistente por crime público ou semi-publico, comete-se a nulidade insanável prevista no artº 119º, al. b), do C.P.P., de falta de promoção do Ministério Público e, como tal, insuprível por este.
2.- O facto de o Ministério Público eventualmente acompanhar a acusação deduzida não sana o vício e não salva a acusação particular
3.- Assim sendo não pode o juiz, aquando da prolação do despacho do art. 311º do C.P.P., desconsiderar a qualificação, que transformou o crime particular em crime semi-publico, de forma a receber a acusação por crime para o qual o assistente tenha legitimidade para acusar.
Decisão Texto Integral: RELATÓRIO


1.

            O Ministério Público deduziu acusação contra A... e B... imputando-lhes a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, do art. 145º, nº 1, al. a), e nº 2, com referência ao art. 132º, nº 2, al. h), e j), do Código Penal.

            O arguido/assistente A... deduziu acusação particular contra o arguido B..., acusando-o por dois crimes de difamação do art. 180º do Código Penal, terminando a acusação do seguinte modo: «porque o assistente é um militar da GNR os crimes de difamação deverão ser considerados agravados nos termos do artigo 184º ex vi artigo 133º, nº 2, al. l) do Código Penal».

            O Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular deduzida por A... quanto aos factos consubstanciadores do crime previsto e punível pelo art. 180º, nº 1, do Código Penal.

            No despacho a que se refere o art. 311º do C.P.P. a srª juíza não recebeu a acusação particular deduzida, por o assistente carecer de legitimidade para acusar, por si só, por crime semi-público e rejeitou o despacho do Ministério Público, em que declarou acompanhar esta acusação, por aquela acusação não ter sido recebida.

            2.

            Inconformados, o Ministério Público e o assistente recorreram, retirando da motivação as seguintes conclusões:

Recurso do Ministério Público

«1. O assistente A...deduziu acusação particular, além do mais, por crimes de difamação previstos e punidos pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

2. O Ministério Publico tinha legitimidade para acompanhar a acusação particular deduzida pelo assistente A...quanto aos factos descritos consubstanciadores do crime de difamação previsto e punido pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal.

3. Assim sendo, o M.mo Juiz a quo deveria ter recebido a acusação particular pelos factos nela descritos quanto aos crimes de difamação previstos e punidos pelo artigo 180º, nº 1, do Código Penal, bem como o subsequente despacho de acompanhamento da acusação particular efectuada pelo Ministério Público nos termos em que o fez.

4. Ao entender de modo diverso, o despacho recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 285º, nº4, do Código de Processo Penal».

Recurso do assistente

«1º - As condutas descritas na acusação deduzida pelo assistente, a provarem-se em sede de audiência de discussão e julgamento, são aptas a integrar o tipo legal do art. 180º, nº 1 do Código Penal.

2º - Em nenhum momento o assistente teve intenção de imputar ao arguido um crime de difamação agravado.

3º - O art. 20º da acusação tratou-se de um mero lapso, que só por si não deveria implicar a rejeição.

4º - O Mmo. Juiz, ao rejeitar a acusação deduzida, fez uma incorrecta interpretação do disposto nos artigos 180º, nº 1 do Código Penal e dos artigos 50º, 283º e 311º, nº 3 do Código do Processo Penal».

            3.

O recurso foi admitido.

4.

A Exmª Srª P.G.A. emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento aos recursos, desde logo porque dos factos narrados não resulta que o crime alegadamente cometido seja agravado.

Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do C.P.P.

5.

Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.

Realizada a conferência, cumprindo decidir.

 


*

*


FACTOS PROVADOS

6.

            Dos autos resultam os seguintes elementos, essenciais à decisão a proferir:

1º - Em 9-9-2010 A... deduziu a seguinte acusação contra B...:

«1º

O arguido é militar da Guarda Nacional Republicana com o posto de sargento-ajudante.

Em meados de Abril de 2009 o assistente é informado pelos seus superiores hierárquicos que, em consequência de uma carta dirigida ao Delegado de Saúde …, iria ser aberto um processo clínico para averiguação do seu estado de saúde.

Uma vez na Unidade de Saúde … o assistente verifica que os exames a que está a ser submetido destinam-se à despistagem de substâncias estupefacientes e álcool.

Perante tal situação, e sentindo-se ofendido na sua dignidade enquanto militar, o assistente "exigiu" do responsável daquela unidade informação do conteúdo da carta dirigida aquela instituição e respectivo autor.

É nessa altura que o assistente toma conhecimento do teor da carta

(fls. 65 dos autos) envida pelo arguido B…, datada de 09 de Abril de 2010, formulando juízos ofensivos da sua honra e reputação afirmando, nomeadamente:

- que o assistente "sofre de doença do foro psíquico e psicológico desde alguns anos" com "antecedentes de depressão e de distúrbios comportamentais" .

- necessitando, por esse motivo, de um internamento "uma vez que a pessoa em causa (o assistente) não tem apoio familiar, nem ouve as pessoas que o tentam ajudar, não cumpre tratamentos que lhe são prescritos, tem hábitos alcoólicos e procura constantemente ajuda do mundo oculto";

- que o assistente tinha vindo a "ameaçar de morte" o arguido "há já um longo período de tempo" e "intimidações através de telefonemas, mensagens, perseguição e declaração de vontade de consumar ameaças revelando-o por intermédio de outras pessoas" .

Obviamente, que os resultado dos exames clínicos realizados demonstraram a falsidade daquelas imputações.

O assistente não tinha qualquer tipo de relacionamento social com o arguido, muito embora o conhecesse de vista porque tinham amigos em comum.

E, segundo informações de várias pessoas, o arguido pretendia afastar o assistente da proximidade da sua namorada uma vez que se sentia ameaçado pela sua presença.

Por isso é que, quando o assistente avistou o arguido que se encontrava com outros amigos, apenas pretende saber o porquê de tão inusitada atitude.

10º

Nesse momento, o assistente abeirou-se do arguido perguntando-lhe de onde o conhecia e qual o motivo para ter enviado aquela carta difamatória, e este, sem que nada o fizesse prever, começou a agredir o assistente com socos duma violência extrema atingindo-o na cara, no tórax e no estômago.

11º

O assistente sabe que durante as agressões o arguido utilizou um objecto contundente, provocando-lhe dois rasgos numa orelha, um corte numa sobrancelha e um hematoma num olho.

12º

Entretanto aproximaram-se dois indivíduos que segurando as mãos do assistente atrás das costas duma forma técnica (impedindo-o de se defender) e, covardemente, o arguido arremessou várias vezes e á queima roupa um paralelo da calçada na zona da cabeça.

13º

Perante tais agressões o assistente ficou completamente aturdido e caído no chão completamente ensanguentado e, num acto instintivo e tentando rechaçar novo ataque, arremessou uma pedra que estava no chão completamente às cegas.

14º

Pelo que, ao assistente não restou outra alternativa, face à desproporcionalidade do número e dos meios, que não a legítima defesa.

15º

Em 18 de Dezembro de 2009, na sequência do processo disciplinar entretanto intentado contra o aqui assistente, requereu a consulta de várias peças processuais tendo, nessa altura, tomado conhecimento da carta datada de 05 de Junho de 2009 (cfr. fls. 66 dos autos).

16º

Esta segunda carta, dirigida ao Comandante do Comando Territorial do Porto da GNR, reiterando o teor difamatório da carta anterior, afirma que o assistente:

- "desprestigia e em muito o bom nome da instituição (GNR)";

- "nos últimos meses se tem portado indignamente";

- o tem vindo ameaçar de morte;

- “não se encontrava com as plenas faculdades mentais .. devido a doença ou a substâncias que por certo farão mal a qualquer pessoa";

- "desequilibrado e sem ajuda ou tratamento adequado";

- enquanto militar da GNR, representa um perigo para a pessoa do arguido e terceiros;

- "pela sua hipotética doença mental, tem procurado várias vezes o mundo do oculto" que por "estar fragilizado psicologicamente o tem afectado cada vez mais";

- tem tido problemas com mais pessoas;

- deverá "ser internado e tratado do seu problema mental".

17º

O arguido sabia que com aquela conduta poderia prejudicar, profissional e pessoalmente, o assistente como, aliás, veio a suceder.

18º

Agiu assim o arguido deliberada, livre e conscientemente, com o propósito alcançado de imputar factos falsos e formular juízos ofensivos da honra e consideração do assistente. - Cfr. artigo 180º do Código Penal.

19º

Cometeu, assim, o arguido B…, dois crimes de difamação, previstos e punidos no artigo 180º Código Penal e um crime de ofensas à integridade física qualificada previstos e punidos nos artigos 145º nº 1 a) e 2 ex vi artigo 132º nº 2 h) e j).

20º

Porém, e porque o assistente é um militar da GNR, os crimes de difamação deverão ser considerados agravados nos termos do artigo 184º ex vi 133º nº 2 aI. l) do Código Penal».

2º - Em 22-9-2010 o Ministério Público proferiu o seguinte despacho:

«O Ministério Público acompanha a acusação particular deduzida a fls. 202 pelo assistente A..., contra B..., aí melhor identificado, quanto aos factos descritos consubstanciadores de crime de difamação, p. e p. pelo art. 180º, nº 1, do Código Penal, descrição factual essa que aqui se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais».

3º - Remetido o processo para tribunal, foi proferido despacho ao abrigo do art. 311º do C.P.P., que no seu início, e sob a epígrafe “questões prévias”, decidiu:

«1- Ilegitimidade do assistente (e também arguido A...) para, por si só, acusar por crimes de natureza semi-pública, como é o caso dos crimes de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º e 184º, ex vi do art. 133º nº 2 al. I) do Código Penal.

O assistente (e também arguido A...) deduziu a acusação particular constante de fls. 202 a 208 na qual imputa ao arguido B... dois crimes de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º e 184º, ex vi do art. 133º nº 2 aI. I) do Código Penal.

Acontece que tal crime de difamação agravada reveste natureza semi-pública (cfr. art. 188º nº 1 a) de tal diploma).

Revestindo, pois, tal crime natureza semi-pública o assistente não goza de legitimidade para acusar se o Ministério Público não o tiver feito (cfr. art. 284 nº 1 a contrario sensu, do C.P.P.). Apenas os crimes de natureza particular podem ser acusados directamente pelos assistentes (cfr. art. 285º nº 1 do CPP). Após uma eventual acusação do Ministério Público é que o assistente poderia ter aderido a tal acusação, e não foi isso que se passou pois acusou antes do Ministério Público. Apenas os crimes de natureza particular, tal como referimos, podem ser acusados directamente pelo assistente (cfr. art. 285º nº 1 do CPP).

Nestes termos, considerando que o assistente A... não goza de legitimidade para, por si só, acusar por crimes de natureza semi-pública, não recebo a acusação particular deduzida contra o arguido B..., na parte em que imputa a este arguido a prática de factos integradores dos crime de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º e 184º, ex vi do art. 133º nº 2 aI. I) do Código Penal do crime de ameaças p. e p. no art. 153º do Código Penal.

Pelo incidente a que deu causa condeno o assistente A... em 1 (uma) UC de taxa de justiça (arts. 515 nº 1 aI. f) e 2 do Código de Processo Penal e art. 8º nº 5 do Regulamentadas Custas Processuais).

Notifique.

*

II- Inadmissibilidade legal para do Ministério Público acompanhar uma acusação particular por crimes semi-públicos, como é o caso dos crimes de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º e 184º, ex vi do art. 133º nº 2 al. I) do Código Penal.

Constata-se que por despacho de fls. 255 o Ministério Público acompanhou a acusação particular de fls. 202 e segs entendendo que os factos ali referidos são integradores de um crime de difamação p. e p. pelo art. 180º nº 1 do Código Penal.

Desde já diremos que é o Ministério Público, e não o assistente, que tem legitimidade para, por si só, e independentemente da acusação de qualquer assistente, acusar por crimes de natureza semi-pública, como é o caso do crime de difamação agravada.

O assistente é que pode acompanhar uma acusação pública por crime semi-público (cfr. art. 284º nº 1 do CPP), e não o é o Ministério Público que pode acompanhar uma acusação particular por crime semi-público.

Ou seja, se findo o inquérito o Ministério Público tivesse elementos para acusar por crime de natureza semi-pública ou pública deveria ter acusado por "motu próprio" e não aderir a uma acusação particular. E se entendesse que o crime em causa era de natureza particular deveria ter manifestado posição no sentido de ser rejeitada a acusação do assistente por imputar ao arguido crimes de natureza semi-pública.

Aliás, tal acusação particular e pelas razões supra expostas já foi rejeitada, no que diz respeito aos crimes de difamação agravada por falta de legitimidade da assistente para acusar por tal crime. Tendo-o sido cai por base qualquer acompanhamento de uma coisa que já foi rejeitada.

Nestes termos, rejeita-se o acompanhamento da acusação particular efectuado pelo Ministério Público quanto ao denunciado crime de difamação.

Sem custas por delas estar isento o Ministério Público (arts 522º nº 1 do CPP e 4 nº 1 a) do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique …».


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DECISÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (neste sentido art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas).

Por via dessa delimitação resulta que a questão a decidir reside em saber qual a posição do juiz perante uma acusação deduzida pelo assistente em que impute ao arguido um crime público ou semi-publico.


*

            A decisão da questão em discussão decide-se aderindo a uma das duas teses que se confrontam nesta matéria.

Dada a natureza acusatória do nosso processo penal e definindo a acusação o objecto do processo, para a primeira das teses o juiz não pode alterar a qualificação avançada na acusação. Assim, deduzida acusação apenas pelo assistente por crime público ou semi-publico, não pode o juiz, aquando da prolação do despacho do art. 311º do C.P.P., degradar a acusação para crime particular, retirando a qualificação, para a poder receber, e não pode receber a acusação deduzida, por crime qualificado, por se verificar a nulidade insanável do art. 119º, al. b), do C.P.P., de falta de promoção do Ministério Público. O facto de o Ministério Público eventualmente acompanhar a acusação deduzida não sana o vício e não salva a acusação particular.

Neste caso a acusação deduzida é nula e não é recebida.

Esta é, como se viu, a tese seguida pela decisão recorrida.

Ao invés, para a outra corrente – perfilhada pelo recurso -, a incorreta qualificação jurídica dos factos descritos na acusação não conduz necessariamente à sua nulidade, quando dessa incorreção resulta que ilegitimidade do assistente para acusar. Aquando do saneamento do processo, efectuado com a prolação do despacho previsto no art. 311º do C.P.P., o juiz pode corrigir essa qualificação. Assim sendo, tendo o assistente, por si só, deduzido acusação por crime qualificado, pode o juiz retirar a qualificação avançada e receber a acusação pelo crime simples.

Não obstante a enorme valia dos argumentos avançados na defesa da possibilidade de intervenção do juiz na correção da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, a nossa opção vai no sentido de entender que o juiz não pode proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, aquando do seu recebimento.

Ou seja, concordamos com a decisão proferida.

E isto por várias razões.

 

Nos termos do art. 32º, nº 5, da Constituição «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objectividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objecto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

Estes princípios aplicam-se, do mesmo modo, à fase de instrução. Por isso se diz que entre o requerimento de abertura de instrução e a decisão instrutória tem que haver uma correspondência material, no sentido de os factos invocados no primeiro terem que estar tratados na segunda e apenas os factos invocados no primeiro poderem ser conhecidos na segunda.

Mas os princípios do acusatório e vinculação temática têm a sua aplicação por excelência na audiência de discussão e julgamento: o objecto do processo é o objecto da acusação, sendo este que fixa os poderes de cognição do tribunal e os limites do caso julgado. A este efeito se chama a vinculação temática do tribunal, no qual se inscrevem os princípios da identidade, unidade e consunção, segundo os quais o objecto do processo deve manter-se inalterável desde a acusação até à sentença definitiva e deve ser conhecido e julgado na sua totalidade ou, mesmo que o não tenha sido, considerar-se que o foi.

Todas estas regras, de cumprimento estrito, resultam da necessidade de garantir um efectivo direito de defesa ao acusado, inevitavelmente posto em causa se ele for surpreendido com novas imputações ao longo do processo.

No entanto, nem sempre a falta de coincidência entre o objecto da acusação e o do julgamento gera violação do princípio acusatório. O que é seguro é que a legalidade desta desconformidade depende, sempre, da salvaguarda do direito de defesa do acusado.

Estamos a falar, claro está, dos institutos da alteração não substancial e substancial dos factos, previstos no art. 358º e 359º do C.P.P. para a fase do julgamento, apenas.

Sufragando o decidido pelo Tribunal Constitucional em 5-2-1998, no acórdão 130/98, entendemos que o que define o objecto do processo são os factos acusados «normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas com a sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória …».

A acusação apenas vale quando atribui ao agente um facto jurídico-penalmente relevante, que despolete a intervenção do direito penal.

Daí que as normas infringidas tenham que estar indicadas.

Ou seja, a acusação é uma unidade e é assim que deve ser vista e analisada e «não pode ser lida e interpretada sectorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente» [1].

Por isso, aquando da prolação do despacho do art. 311º do C.P.P. o juiz não pode imiscuir-se no seu conteúdo alterando a qualificação dos factos ali feita.

            Dado que a acusação constitui uma unidade, entendemos que o crime que o assistente A... imputou ao arguido B... na acusação que deduziu foi o crime de difamação agravada.

            É este o crime pelo qual o assistente pretende o julgamento do arguido.

            E a acusação do assistente é a primeira acusação deduzida contra o arguido por um tal crime, pois que o Ministério Público não acusou por este factos.

            Nos termos dos art. 284º e 285º do C.P.P. o assistente não tem legitimidade para acusar por crime público ou semi-publico. Esta situação configura, nos termos da al. b) do art. 119º do C.P.P., a nulidade de falta de promoção do processo pelo Ministério Público.

            Dado que o juiz, aquando do despacho de saneamento do processo, não pode intervir na qualificação jurídica dos factos feita na acusação, então quando o assistente acusa por factos integradores de crime semi-publico o juiz não pode desconsiderar a qualificação, que transformou o crime particular em crime semi-publico, de forma a receber a acusação por crime para o qual o assistente tenha legitimidade para acusar.

            E não sendo a acusação particular recebida não é de aceitar, consequentemente, o despacho de acompanhamento dessa acusação, proferido pelo Ministério Público, que exige uma acusação anterior juridicamente válida.

           

            Em tal caso a solução é rejeitar a acusação e o despacho de acompanhamento, conforme foi decidido na decisão recorrida [2].


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            DISPOSITIVO

                Por todo o exposto, acordam os juízes desta relação em negar provimento ao recurso e manter, na íntegra, a decisão recorrida.


            Taxa de justiça mínima pelo assistente.

Olga Maurício (Relatora)

Luís Teixeira


[1] Acórdão do S.T.J. de 7-5-1997, processo 96P1068, citado a fls. 770 do Código de Processo Penal, Notas e comentários, de Vinício Ribeiro, em anotação ao art. 283º.
[2] Neste mesmo sentido, e para além de muita outra jurisprudência, indica-se o acórdão desta relação de 24-8-2001, proferido no processo 413/07.7TACBR.C1 e jurisprudência nele citada.