Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2544/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: SOUSA PINTO
Descritores: CUSTÓDIA
LEI APLICÁVEL
CONVENÇÃO DE HAIA
Data do Acordão: 02/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES DE COIMBRA - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: -
Legislação Estrangeira: ARTºS 3º , 5º E 13º DA CONVENÇÃO DE HAIA
Sumário: I – A deslocação ou a retenção de uma criança só é considerada ilícita quando ocorra em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção.
II – A estipulação da residência do menor para fora do país onde se encontra à data da sentença que fixou o regime de regulação do exercício do poder paternal constitui uma decisão importante inerente ao dito exercício, pelo que só pode ser tomada de comum acordo entre os progenitores da criança .
III – Nos termos do artº 13º da Convenção o regresso da criança ao país do seu inicial domicílio não será ordenado se a pessoa que se opuser ao mesmo comprovar que a pessoa que tinha a seu cuidado a criança não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção, ou que se regista um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo ficar numa situação intolerável .
Decisão Texto Integral:
Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra,

I - RELATÓRIO

O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Coimbra veio requerer que fossem tomadas as medidas consideradas necessárias, relativamente ao menor, A..., na sequência de requerimento apresentado pelo progenitor deste, B..., no sentido do indicado menor regressar ao seu país natal – o Reino da Bélgica.
Para fundamentar tal pretensão foi alegado, em síntese, que por acordo homologado por sentença do Tribunal de Menores de Bruxelas, o poder paternal quanto ao A... seria exercido conjuntamente por ambos os progenitores. Em Outubro de 2003, a mãe deste – C.... – deslocou-se para Portugal trazendo consigo o menor, aqui permanecendo sem autorização ou conhecimento do progenitor. O pai da criança requereu entretanto no Tribunal de 1.ª Instância de Bruxelas uma acção de alteração da regulação do exercício do poder paternal, com vista a ser-lhe este atribuído em exclusivo, sendo que a mãe tomou idêntica atitude junto do Tribunal de Família e Menores de Coimbra.
Juntou com tal requerimento, um documento, composto de todos os elementos que lhe foram enviados pelo Instituto de Reinserção Social, a Autoridade Central Portuguesa, nos termos da Convenção de Haia de 25/10/1980, Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Notificada a mãe do menor para se pronunciar sobre tal pedido, veio a mesma fazê-lo, referindo que o progenitor teve conhecimento da vinda do menor para Portugal com a sua mãe, tendo inclusivamente já visitado este no nosso país e ido o mesmo à Bélgica visitar o pai, considerando que não se está perante uma situação em que seja de aplicar a Convenção em causa, pois que pelo acordo de regulação do exercício do poder paternal compete- -lhe a ela a guarda principal do menor.
Juntou com a sua resposta seis docs..
Foi elaborado o relatório social pela Equipa de Família e Menores do Círculo Judicial de Coimbra, o qual foi notificado a ambos os progenitores.
O Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer final considerou que, no caso, não se verificam os requisitos de aplicação da referida convenção, pelo que não deveria ser ordenado o regresso do menor A....
Foi proferida decisão final onde, ao abrigo do disposto no art.º 13.º da Convenção de Haia de 25/10/1980, não se ordenou o regresso do menor para o Reino da Bélgica.
O progenitor do menor, não se conformando com tal decisão, veio dela recorrer, sendo que com as suas alegações apresentou as seguintes conclusões:
1. A Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças tem por objecto assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente, e fazer respeitar, de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes, os direitos de custódia e de visita.

2. No caso em apreço, dever-se-ia apreciar a situação do menor A..., filho de C... e de B....

3. O Tribunal a quo indeferiu o regresso do menor ao país de origem.

4. Fê-lo considerando que, como o Tribunal Belga fixou o domicílio principal do menor com a mãe, não existe violação da regulamentação do poder paternal. O ora Apelante considera que, uma vez que a sentença do Tribunal Belga determinou o exercício conjunto do poder paternal, toda e qualquer decisão relativa aos aspectos mais importantes da vida do menor têm de ser tomadas em conjunto pelos pais, e entre essas encontra-se, obviamente, a mudança de país de residência.

5. O Tribunal concluiu que se o menor ficar com o pai, o acordo de regulação do poder paternal será violado, pois o menor deveria viver principalmente com a mãe. Lembra o ora Recorrente que esta conclusão encontra-se a jusante do cerne da questão, que é o facto do menor nunca dever ter saído da Bélgica sem a devida autorização paternal ou, na falta desta, o suprimento judicial daquela. O Recorrente não pede a custódia do filho, pede o seu regresso à Bélgica.

6. Fundamenta ainda tal decisão no facto de o menor já não viver com o pai desde Abril de 2001. Não pode ser esquecido que o menor, entre Abril de 2001 e Outubro de 2002, esteve com o pai uma quarta-feira em cada duas e com ele passava igualmente um fim-de-semana em cada dois. Apenas desde Outubro de 2002 é que o ora Recorrente se encontra privado de estar com o seu filho, ou seja, desde que este foi raptado pela mãe.

7. O Tribunal considerou também que não fazia sentido que se ordenasse o regresso à Bélgica de uma criança que, tendo já permanecido na Bélgica durante alguns dias, não foi retida pelas autoridades. Assim, prejudica-se o Recorrente por não actuar com recurso à "força". Se o fizesse, conseguiria talvez mais facilmente obter uma composição justa para este litígio, mas atentando contra os seus princípios morais e interesses do seu filho que são, e sempre foram, a sua principal preocupação.

8. O Tribunal a quo considera que os objectivos da Convenção não são os de, à custa de medidas de força, prejudicar os interesses da criança. O ora Recorrente concorda e lembra que o que pede é que o menor regresse à Bélgica, e que nesse país possam ser discutidos os direitos que assistem aos progenitores, alterando- -se, caso necessário, os termos do acordo de regulação do poder paternal, com vista à nova situação.

9. Não se pode assim concluir, como faz o Tribunal a quo, que no quadro legal, a ordem de regresso constituiria uma medida de força gratuita, a prejudicar os interesses da criança, sendo certo que o pai pode exercer o seu direito de visita. Considerando que desde que o menor se encontra em Portugal, o ora Recorrente apenas teve contacto com o mesmo meia dúzia de vezes, claramente se conclui que, de facto, o ora Recorrente está privado dos seus direitos de visita.

10. O Tribunal a quo invoca que o Recorrente não conseguiu provar o desconhecimento da decisão da mãe do menor de abandonar a Bélgica com este. O ora Recorrente só pode responder, dizendo que em momento nenhum foi chamado ao processo para intervir ou se pronunciar, tendo apenas tido conhecimento do mesmo quando foi notificado do relatório social.

11. Diga-se ainda que esse relatório foi parcial pelo facto de só avaliar as condições sociais e familiares do menor em Portugal com a sua mãe, não avaliando de igual forma a relação do menor com o pai, violando frontalmente o princípio da igualdade de armas nos processos judiciais.

12. A verdade é que o presente processo teve origem na apresentação, na Bélgica, de uma providência para recuperar a custódia do seu filho e que as Autoridades Belgas, na sequência, contactaram as Autoridades Portuguesas ordenando a confirmação da localização do menor e o seu regresso à Bélgica, o que não foi feito pelos Tribunais Portugueses.

13. Este procedimento tem o objecto específico de ordenar o regresso do menor à Bélgica e suspender quaisquer procedimentos intentados em Portugal, e não para determinar qual dos pais tem melhores condições para educar o menor.

14. O ora Recorrente, ao reclamar o regresso do seu filho ao país de origem, de onde foi retirado ilegitimamente pela mãe, pretende fazer respeitar e assegurar na prática os direitos do menor e os seus próprios direitos como pai atento e preocupado, que quer acompanhar o desenvolvimento e crescimento do filho.

15. Crê o ora Recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração a aplicação da Convenção de Haia, que é o objecto principal desta causa, nomeadamente o seu art.º 3, que define uma deslocação ou retenção ilícita de uma criança. Não há dúvida que a Senhora C... deslocou-se para Portugal, com a criança, em violação de uma decisão transitada em julgado por um Tribunal Belga, impossibilitando o Recorrente de exercer, conjuntamente, o poder paternal.

16. Assim, dúvidas não restam que deve ser ordenado o regresso do menor, não vingando as teses especulativas da decisão recorrida, no sentido que o menor estaria bem integrado no seu novo domicílio em Portugal. Em nenhum artigo, a Convenção excepciona o não regresso da criança em virtude de uma alegada boa integração na sua nova realidade de vivência.

17. A decisão recorrida limita-se a considerar que a ordem do regresso constituiria “uma medida de força gratuita”, não definindo o que entende por gratuitidade no caso concreto, mais dizendo que tal ordem de regresso constituiria uma alteração dos termos do exercício do poder paternal, como se o regresso não visasse reconstituir, precisamente, os termos do poder paternal, definidos pelo Tribunal Belga, postos em causa pelo rapto da criança por parte da mãe.

18. Apenas nos dois casos do art.º 13.º da Convenção, seria possível, no poder discricionário do Tribunal, não ser ordenado o regresso do menor mas faltam factos na decisão recorrida para sustentar qualquer um daqueles dois casos/situações.

19. Crê assim o ora Recorrente, que a douta sentença do Tribunal a quo não enquadrou devidamente as circunstâncias do presente processo, não tendo ouvido o ora Recorrente em momento algum do processo, nem tendo permitido que a sua posição processual fosse idêntica à da Senhora C..., sendo que a pretensão do Recorrente é, efectivamente, legítima e deverá ser atendida dentro do quadro legal aplicável.

20. Tendo a sentença recorrida violado o disposto nos artigos 3.º e 13.º da Convenção de Haia.

A requerida, bem como o Ministério Público, apresentaram as suas contra-alegações, nas quais sustentaram a manutenção da decisão recorrida.

II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO;
Questões a apreciar:

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões suscitadas pelo apelante, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

1 – Impugnação da matéria de facto
2 – Erro de julgamento – Aplicação da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças

III – FUNDAMENTOS

O recorrente nas suas alegações refere (fls. 109): “I – IMPUGNAÇÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO:
“Da matéria de facto:
…”.
Sucede porém que nas suas conclusões de recurso não respeita os requisitos necessários inerentes a essa forma de impugnação da decisão recorrida.
O art.º 712.º do CPC, refere nas três alíneas do seu n.º 1, quais as situações em que o Tribunal da Relação pode alterar a decisão de facto estabelecida na 1.ª instância, indicando-se por seu turno no n.º 1 do art.º 690.º-A, do mesmo diploma legal, quais os procedimentos que o(a) recorrente deve assumir para que tal reapreciação possa verificar-se.
Assim, deverá o(a) recorrente especificar “quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados” (al. a), do n.º 1 desse último dispositivo), bem como “quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (al. b) do mesmo normativo).
Ainda no tocante às situações que permitem a modificabilidade da decisão de facto, haverá que ter presente a posição dominantemente aceite na jurisprudência que aponta no sentido de tal reapreciação não poder subverter o princípio da livre apreciação das provas consagrado no art.º 655.º do CPC.
Como muito bem é salientado no Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, in CJ, Ano XXV, T. 4, págs. 186 “…o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”.
Este é aliás o sentido que o legislador pretendeu dar à possibilidade do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, pois que expressamente refere no preâmbulo do diploma que possibilitou a documentação da prova (Dec.-Lei n.º 39/95, de 15/12) que “…a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Tendo presente estes princípios orientadores, tal como referimos supra, concluímos que o recorrente não deu cabal cumprimento ao estipulado nos apontados artgs. 690.º, n.º 1 e 690.º-A, n.º 1, al. b), ambos do CPC, pois que não indicou quais os concretos meios probatórios constantes dos autos que impunham decisão diversa da adoptada na decisão recorrida. Na realidade, o recorrente ao longo das suas alegações, no que concerne a esta particular questão da impugnação da matéria de facto, o que faz é extrair conclusões jurídicas distintas das do Senhor Juiz do Tribunal a quo, face à factualidade existente, o que se traduz numa outra forma de se opor à decisão, por erro de julgamento.
Pelo que deixamos exposto, há pois que considerar que o recurso baseado na impugnação da matéria de facto não terá provimento, atento o disposto naqueles normativos legais.

Importa agora elencar a matéria dada por provada, a qual será constituída pela que consta da decisão final e ainda pelos elementos que este Tribunal considerar imprescindíveis para a decisão e que constam dos autos, tendo presente o disposto no art.º 712.º, n.º 1, al. a) do CPC.
De notar que a decisão recorrida utilizou uma incorrecta técnica de apresentação dos factos dados por provados, ao arrepio da ideia consagrada no art.º 659.º, n.º 2, do CPC, pois que foi indicando os mesmos à medida que ia tecendo as considerações de direito inerentes ao caso em apreço, não discriminando por forma autónoma os mesmos.
Por via desse circunstancialismo, passaremos a enumerar a factualidade apurada com relevo para a presente causa:
1- A..., nasceu no dia 6 de Julho de 1998, sendo filho de B... e C...;
2- Por sentença proferida em 21 de Fevereiro de 2002, do Tribunal de la Jeunesse de Bruxelas, foi regulado o exercício do poder paternal referente ao A..., tendo ficado estabelecido: “A autoridade parental será executada conjuntamente pelas partes”; “A criança será alojada a título principal em casa da demandista (progenitora) e será anotada aos registos da população no domicílio da referida”;
3- Em tal sentença homologatória ficou ainda consagrado o regime de visitas do progenitor face ao menor seu filho, como melhor consta de fls. 46 e 47, aqui dadas inteiramente por reproduzidas;
4- Em Outubro de 2003 a progenitora do menor, veio com este para Portugal sem que para tal tivesse o acordo do pai do mesmo;
5- O menor frequentou a Escola Municipal n.º 8 de Bois de la Cambre, fase pré-primária, no regime linguístico francês, entre 29/01/2001 e 30/06/2003;
6- A progenitora do menor, em 10 de Outubro de 2003 e 17 de Outubro de 2003, enviou mensagens electrónicas ao pai daquele, dando-lhe conta do local onde ela e o A... se encontravam em Portugal, bem como do número de telemóvel que poderia ser utilizado para o contactar e ainda da sua aceitação nas visitas do pai ao menor, como resulta dos docs. de fls. 68 e 69, aqui dados por reproduzidos;
7- Em 23 de Outubro de 2003, o pai do menor envia à progenitora uma mensagem electrónica onde, entre outras coisas, marca uma visita ao menor no 1.º fim-de-semana do mês de Novembro de 2003, como resulta do doc. de fls. 70, aqui dado por reproduzido;
8- Em 27 de Outubro de 2003, a mãe do menor envia ao progenitor daquele uma mensagem electrónica, onde concorda com a data da visita do pai do A... a este, no fim-de-semana de 1 e 2 de Novembro de 2003, como resulta do doc. de fls. 71, aqui dado por reproduzido;
9- A mãe do menor autorizou por escrito a ida do menor a Bruxelas, no dia 18 de Dezembro de 2003, na companhia do seu pai, como resulta do doc. de fls. 72, aqui dado por reproduzido;
10- O progenitor do menor elaborou e assinou um escrito em que concordava que a mãe daquele o fosse buscar a Bruxelas, no seu domicílio, no dia 5 de Janeiro de 2004, pelas 13 horas, como resulta do doc. de fls. 73, aqui dado por reproduzido;
11- O menor encontra-se a viver com a sua mãe e avós maternos na Rua da Escola n.º 58, Rocha Nova, subúrbios da cidade de Coimbra, onde se encontra bem enquadrado, dispondo de espaço próprio para dormir;
12- Existe uma interacção positiva no relacionamento do seu actual agregado familiar, com particular relevo na relação mãe/filho, em que o afecto é notório, sendo que o menor sempre com ela viveu;
13- O menor, à data de 22 de Dezembro de 2003, frequentava em Portugal o estabelecimento de ensino “Centro de Bem-Estar Social Sagrada Família”, em Coimbra, considerando a sua educadora que o mesmo se encontrava adaptado a tal escola e utilizava o português como forma de comunicar com os outros, como resulta do doc. de fls. 82, aqui dado por reproduzido.

É esta a matéria fáctica que se apura dos elementos constantes dos autos e que é vertida aqui à luz do indicado art.º 712.º, n.º 1, al. a) do CPC.
As observações feitas pelo recorrente quanto ao facto de não ter sido ouvido no processo e de só dele ter tido conhecimento por via da notificação que lhe foi feita do relatório social, o qual terá sido parcial por só avaliar as condições sociais e familiares do menor, merecem-nos um pequeno comentário.
Em primeiro lugar, há que ter presente que estamos face um procedimento que é accionado precisamente pelo ora recorrente, junto das autoridades do seu país, as quais remeteram o pedido de entrega à nossa Autoridade Central (I.R.S.) que, por seu turno, solicitou ao Ministério Público o accionamento dos mecanismos processuais tendentes à satisfação de tal pedido, o que deu origem a esta acção. Não pode por isso o ora recorrente dizer que não foi ouvido, pois que a instrução deste processo é iniciada com os elementos por ele alegados e entregues às autoridades competentes, em cumprimento aliás do que é exigido pelo art.º 8.ºda Convenção de Haia de 25/10/1980 (Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, que de ora em diante será designada tão só por Convenção).
Por outro lado, há que ter presente que com este procedimento o que se pretende é o regresso do menor ao país donde ilicitamente terá saído, sendo que tal desiderato só não será alcançado caso não se verifiquem os pressupostos de aplicação de tal Convenção ou se registe uma das situações previstas nos artgs. 12.º, 13.º ou 20.º da mesma.
Ora, essas situações terão de ser demonstradas pelo alegado prevaricador, daí que seja importante ouvi-lo, o mesmo já não acontecendo com o requerente do pedido de regresso, que teve a sua oportunidade inicial de alegar o teor da situação. De qualquer forma, no âmbito deste processo, foi o ora recorrente notificado quer do requerimento e documentos apresentados pela progenitora do menor, quer ainda do relatório social elaborado pelo IRS, sendo certo que nada veio dizer quanto a qualquer dessas peças processuais.
Por último, dir-se-á que o facto do relatório do IRS só abordar as condições sociais e familiares do menor em Portugal, prende-se com a circunstância de serem essas que verdadeiramente importam no âmbito deste processo, em que se terá de apreciar da existência ou não de factores que possam levar ao accionamento das cláusulas que permitem a não satisfação do pedido de regresso da criança ao país donde terá saído ilicitamente.
Como o próprio recorrente salienta, noutro ponto das suas alegações, não estamos nestes autos a apurar a qual dos progenitores caberá a confiança da criança, em termos de exercício do poder paternal, está aqui tão só em causa saber se o regresso deve ser deferido ou, se existem razões que possam levar a que o mesmo o não deva ser.
Postas estas questões, passemos agora à abordagem da segunda questão que importa apreciar:

2 – Erro de julgamento – Aplicação da Convenção de Haia Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças

Entende o ora apelante que a decisão recorrida terá violado o disposto nos artgs. 3.º e 13.º da Convenção, o primeiro por se verificar a sua previsão e o segundo por não subsistir qualquer situação que leve ao não regresso do menor a Bruxelas.
Como é referido no acórdão da Relação de Lisboa de 2/5/86 In:Col. de Jurisprud. 1989, Tomo 4, pág. 110, a Convenção “teve por fim (como nela se lê) proteger a criança no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao estado da residência habitual, bem como assegurar a protecção dos direitos de visita”.
O primeiro passo a dar face a um pedido de regresso, será verificar se se registam os pressupostos para a sua aplicação, o que vale por dizer que há analisar se nos encontramos face a uma das situações previstas no art.º 3.º da Convenção.
Com efeito, a deslocação ou a retenção da criança só é considerada ilícita quando ocorra “em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.” (als. a) e ), de tal preceito).
O art.º 5.º da Convenção, indica por seu turno o que se deverá entender pelas expressões “direito de custódia” e “direito de visita”, sendo que a primeira “…inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência”(al. a), do normativo).
Vejamos como enquadramos a matéria provada no âmbito destes normativos.
Apurou-se que “Por sentença proferida em 21 de Fevereiro de 2002, do Tribunal de la Jeunesse de Bruxelas, foi regulado o exercício do poder paternal referente ao A..., tendo ficado estabelecido: “A autoridade parental será executada conjuntamente pelas partes”; “A criança será alojada a título principal em casa da demandista (progenitora) e será anotada aos registos da população no domicílio da referida” (ponto 2 do probatório).
A forma como está redigida a decisão do Tribunal de Bruxelas, que nesse particular se limita a homologar um acordo entre os pais do menor, denota o estabelecimento do que no nosso ordenamento jurídico designamos por exercício conjunto do poder paternal (art.º 1906.º, n.º 2 do Código Civil). Este, consiste na responsabilização de ambos os progenitores, na assumpção das decisões fundamentais da vida do seu filho, desde as relativas à educação e à saúde, até às que se prendem com o seu domicílio principal.
Questiona-se se tal exercício conjunto é compatível com a fixação dum regime de visitas, por se considerar que o entendimento que terá de existir entre os progenitores nessa forma de exercício do poder paternal, implicará que tais visitas devam ocorrer sempre que ambos os progenitores em tal acordarem, não fazendo por isso sentido fixar-se um tal regime Cfr. Maria Clara Sottomayor, in “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, 2.ª Ed., pág. 91..
Não entraremos aqui em tal polémica, por desnecessário, na medida em que o que é facto é que no caso concreto foi proferida uma decisão judicial que admitiu essa coexistência: por um lado, a admissão de que “a autoridade parental será executada conjuntamente” e, por outro, a existência dum regime de visitas para o pai, na medida em que o menor seria “alojado a título principal em casa da demandista”.
É para nós líquido que a estipulação da residência do menor para fora do país onde se encontrava à data da sentença que fixou o regime de regulação do exercício do poder paternal, constitui uma decisão importante inerente ao exercício do poder paternal, pelo que só poderia ser tomada de comum acordo entre os progenitores.
Assim, a progenitora, ao ter-se ausentado para Portugal, sem previamente ter obtido a concordância do pai do menor nesse sentido, desrespeitou a decisão judicial que consagrava o princípio de que a autoridade parental seria exercida conjuntamente, situação que se enquadra na previsão do apontado art.º 3.º, conjugado com o art.º 5.º, da Convenção.
Concluímos pois que a situação em causa é de facto passível do accionamento da Convenção e do seu potencial deferimento, pelo que neste aspecto discordamos da posição defendida pelo Senhor Juiz do Tribunal a quo, que sustentou que a mudança do domicílio estaria na disponibilidade exclusiva da mãe do A....
Chegados aqui, importará agora analisar se se regista uma das aludidas excepções ao dever de determinar o regresso para o país do seu inicial domicílio.
Nos termos do art.º 13.º da Convenção, esse regresso não será ordenado se a pessoa que se opuser ao mesmo comprovar que a pessoa que tinha a seu cuidado a criança “não exercia efectivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com essa transferência ou retenção” (al. a)), ou que se regista “um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo ficar numa situação intolerável” (al. b)).
No caso em apreço será de afastar a situação prevista na alínea a), na medida em que o menor vivia predominantemente com a sua mãe, nada indicando que o seu progenitor, dentro dos seus poderes/deveres paternais algo limitados (limitação essa decorrente precisamente da circunstância do menor não viver consigo) não exercesse de forma efectiva a sua quota parte da custódia referente ao seu filho.
Entendemos também que o facto referido no ponto 10 do probatório – “O progenitor do menor elaborou e assinou um escrito em que concordava que a mãe daquele o fosse buscar a Bruxelas, no seu domicílio, no dia 5 de Janeiro de 2004, pelas 13 horas” – não representa por si só uma concordância a posteriori da mudança de domicílio do menor para Portugal (o que integraria a excepção prevista na 2.ª parte dessa al. a)), traduzindo-se antes numa situação de necessidade de cooperação com a mãe, tendente a viabilizar o seu direito a estar com o seu filho e ainda de respeito pela actuação das autoridades com competência para a resolução do problema que lhes suscitara.
Já no tocante à previsão da alínea b), é nosso entendimento que se apuraram elementos bastantes para fazer accionar a excepção aí prevista.
Com efeito, há que ter presente que se a Convenção “teve por fim proteger a criança no plano internacional dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita e estabelecer formas que garantam o regresso imediato da criança ao estado da residência habitual, bem como assegurar a protecção dos direitos de visita”, não é menos verdade que foram razões inerentes à salvaguarda dos superiores interesses das crianças que estiveram na base do estabelecimento das excepções à aplicação do regime de recondução das mesmas para o país onde se encontravam antes da actuação ilegítima, isto é, foram essas razões que estão na base da previsão deste art.º 13.º, em particular, da alínea b) do mesmo.
Ora, no caso em apreço, tem-se como assente que o menor sempre viveu com a sua mãe, registando-se notório afecto recíproco (ponto 12 do probatório), sendo que pelo menos desde 21 de Fevereiro de 2002 que tal relacionamento é mais intenso, dado que o progenitor apenas o visitava às quartas-feiras de quinze em quinze dias e em fins-de-semana alternados (pontos 2 e 3). Existe uma interacção positiva no relacionamento do seu actual agregado familiar, composto pelo menor, sua progenitora e avós maternos (pontos 11 e 12). A nível escolar, a sua situação mostra-se estabilizada, tendo-se adaptado bem à escola portuguesa, onde já comunica em português (ponto 13).
Todos estes elementos, a que acresce a circunstância do menor ter apenas seis anos de idade, são para nós indicadores seguros de que o eventual retorno do menor a Bruxelas, com a consequente entrega do mesmo a seu pai e afastamento face a sua mãe, acarretaria para ele indubitavelmente um sofrimento, que poria em risco a sua estabilidade emocional e afectiva, reflectindo-se necessariamente no seu normal desenvolvimento.
Tal situação traduz-se quanto a nós na verificação da situação de risco grave para a criança de, com o seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem psíquica a que alude a apontada alínea b) do art.º 13.º da Convenção.
Entendemos por isso que estamos perante a excepção consagrada em tal normativo o que nos conduz a considerar não ser de determinar o regresso do A... a Bruxelas, sendo por isso de manter a decisão recorrida, embora com base em raciocínio algo diverso do vertido na mesma.

IV - DECISÃO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, nega-se provimento à apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas (art.º 26.º da Convenção).

Coimbra,