Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
110/07.3 PTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRIZIDA MARTINS
Descritores: PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 03/04/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 69º CP
Sumário: 1. A génese e a evolução da sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor, traduzem uma clara operação legislativa para endurecer o quantum da mesma.
2. A determinação da sanção acessória concreta nada tem de específico em relação ao processo de determinação da pena concreta principal.
3. A sanção acessória deve ser encontrada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior deverá ser oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, tendo como limite inultrapassável a medida da culpa.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. B..., com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento, uma vez que acusado pelo Ministério Público da prática indiciária de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido através do artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal [CP].
Na normal tramitação processual, realizado o contraditório, foi proferida sentença que, além do mais por ora irrelevante, determinou a sua condenação enquanto autor do assacado ilícito na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, bem como, ainda e visto o artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma, na sanção acessória de 5 meses de proibição de conduzir veículos motorizados.
1.2. Discordando do veredicto emitido, o arguido interpôs recurso extraindo da motivação apresentada as conclusões (!?) resumidas seguintes:
1.2.1. A M.ma Juiz a quo deu como provada factualidade desconsiderando os depoimentos das testemunhas de defesa inquiridas.
1.2.2. Na verdade, ao contrário do que mencionou, nenhuma delas, nem nenhuma da demais prova produzida, permitia concluir, como fez, que o arguido conduziu o veículo em estado de embriaguez.
1.2.3. As testemunhas M... e J... afirmaram ter visto o arguido, depois do despiste e numa altura em que já não iria conduzir a dirigir-se à mala do carro, abrir uma garrafa de uísque e beber, depois de ter já ter chamado o reboque.
1.2.4. Por consideração à circunstância de que apenas releva a prova produzida no decurso da audiência, bem como ao princípio do in dúbio pro reo, não se mostra adequada a conclusão fáctica retratada na decisão recorrida.
1.2.5. Esta peça mostra-se nula por falta de fundamentação no que concerne ao nexo causal entre a eventual prática do crime e o agente que o praticou.
1.2.6. O arguido sempre se pautou pelas regras de boa conduta. Foi uma pessoa séria, trabalhadora e cumpridora. Mostra-se condenado em pena de multa de medida não superior a 240 dias. Não tem antecedentes criminais.
1.2.7. In casu, não existe dano a reparar. É viável um juízo de prognose favorável à sua ressocialização. Daí que deva ser-lhe aplicada uma simples pena de admoestação, pois que não questiona os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração.
1.2.8. Tarefa que a decisão recorrida não considerou e a comina, consequentemente, com os vícios do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c), do CPP.
1.2.9. A sentença recorrida infringiu ainda o disposto nos artigos 97.º; 374.º; 375.º e 379.º, todos do CPP, bem como os artigos 207.º e 208.º, estes da Constituição da República Portuguesa [CRP].
Terminou pedindo a revogação da decisão proferida, com o decretar da sua absolvição, ou, concedendo a manutenção da condenação, que lhe seja imposta uma pena de admoestação.
1.3. Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público, sustentando o improvimento da impugnação.
Admitido o recurso, foram os autos remetidos a esta Relação.
1.4. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico não provimento.
Cumpriu-se com o disciplinado pelo artigo 417.º, n.º 2, do CPP.
No exame preliminar a que alude o n.º 6 deste inciso, consignou-se nada obstar ao conhecimento de meritis.
Como assim, determinou-se a recolha dos vistos devidos, o que sucedeu, bem como submissão dos autos à presente conferência.
Urge agora ponderar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. Na sentença recorrida consideraram-se como provados os factos seguintes:
1. No dia 23 de Novembro de 2007, cerca das 05h35, na Av. da Comunidade Europeia, em Leiria, o arguido conduzia o veículo de matrícula 00-00-OH.
2. Com uma taxa de álcool no sangue de 1,90 gr/l.
3. Como bem sabia.
4. Bem sabendo que a sua conduta era proibida.
5. O arguido trabalha como gerente de um bar auferindo € 645,00. Vive com os pais. Tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.
6. O arguido não tem antecedentes criminais.
2.2. Relativamente a factos não provados, consignou-se na dita decisão:
“Estes os factos provados. Nenhum outro facto se provou.”
2.3. Por fim, a motivação probatória inserta em tal sentença consigna:
“A convicção do tribunal baseou-se na globalidade da prova produzida conjugada com os elementos documentais dos autos.
Pese embora todas as testemunhas ouvidas tenham referido que o arguido antes do embate não tinha ingerido bebidas alcoólicas, com excepção da testemunha G…, agente da PSP que tomou conta da ocorrência e que quanto a este facto nada presenciou, certo é que à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer esta versão dos factos não merece qualquer credibilidade. Efectivamente não é credível que o arguido após o embate tenha decidido beber quase uma garrafa de whisky, sabendo que dentro de minutos a policia ia chegar e iria ser submetido a teste para pesquisa de álcool no sangue (pois a polícia e o reboque tinham sido chamados) e que atento o teor alcoólico daquela bebida certamente não poderia deixar de acusar uma taxa elevada, além de que a testemunha G… nada referiu quanto ao facto de ter ou não sido informado pelo arguido que tinha estado a beber.
Por outro lado, embora as testemunhas arroladas pela defesa tenham vindo dizer que o arguido na noite dos factos não bebeu antes do embate, não pode afirmar-se que a credibilidade destas testemunhas não mereça qualquer reparo, pois se a testemunha M... afirmou ter bebido da garrafa de whisky no local com o arguido, já a testemunha J... declarou que só o arguido bebeu, contradições que retiram credibilidade aos seus depoimentos no sentido de que o arguido não ingeriu bebidas alcoólicas antes do embate e assim insusceptíveis de criar no Tribunal a dúvida sobre se o arguido bebeu ou não antes do embate.
Por outro lado, apenas a testemunha T... afirmou ter estado toda a noite com o arguido, no bar deste a trabalhar e posteriormente na discoteca X..., sendo que a testemunha M... esteve inicialmente no bar do arguido, vindo depois a encontrá-lo na discoteca X... e a testemunha J... apenas o encontrou nesta discoteca, pelo que estas duas últimas testemunhas não estão em condições de poder afirmar que o arguido não bebeu durante toda a noite e a menos que a testemunha T... desempenhe as suas funções em simultâneo com o arguido, só assim poderia afirmar que aquele não bebeu bebidas alcoólicas.
Relevou o depoimento da testemunha G..., agente da PSP, quanto ao local onde ocorreu o embate e ao teste de álcool realizado ao arguido.
Quanto à situação económica do arguido relevaram as suas declarações, tendo o arguido usado do seu direito ao silêncio quanto aos factos de que vinha acusado.
Levou-se ainda em consideração o teor do exame para pesquisa de álcool no sangue de fls. 3 e 4 e o teor do CRC do arguido quanto à ausência de antecedentes criminais.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. Como é consabido, o âmbito do recurso define-se através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), o que não preclude, todavia, o conhecimento oficioso dos vícios elencados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2 do mesmo diploma, ou, ainda, das nulidades cominadas como insanáveis pelo seu n.º 3.
Não se nos afigurando emergir qualquer fundamento que reclame a aludida intervenção oficiosa, decorre que das conclusões do recorrente sobressaem como questões decidendas, as seguintes:
- A sentença recorrida é nula por falta de fundamentação?
- O Tribunal a quo deveria ter dado crédito ao depoimento das testemunhas arroladas pelo arguido?
- Decidindo como fez, o mesmo Tribunal violou o princípio in dúbio pro reo?
- Bem como o citado artigo 410.º, n.º 2, suas alíneas b) e c)?
- A pena de multa aplicada ao arguido deveria ser substituída pela pena de admoestação?
- E, a pena acessória cominada, reduzida ao mínimo legal?
Vejamos, então.
3.2. A Constituição da República Portuguesa [CRP] consagra no respectivo artigo 205.º, n.º 1, que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Em conformidade com este preceito constitucional, o mencionado artigo 374.º, n.º 2 do CPP, determina que a sentença deve conter a “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Para a falta de indicação de alguma destas menções comina-se no subsequente artigo 379.º, n.º 1, alínea a) o vício de “nulidade” da sentença.
Decorre a redacção daquele artigo 374.º, n.º 2 da Revisão do CPP operada em 1998 e através da qual se veio assegurar um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto atribuída às Relações.
Desiderato prosseguido (para além da antecedente exigência da indicação das provas) com a novel imposição, não tanto o de se exigir um detalhado exame crítico da prova produzida (que a ter lugar é suportado pela documentação da prova e pela sua posterior reapreciação por parte do Tribunal Superior, e não pela intermediação subjectivada pelo tribunal, relatada tão só por um dos seus membros, sobre a forma de «apreciação crítica das provas» e a partir de meras indicações não obrigatórias dada por cada membro do tribunal recorrido), mas antes no exame crítico dos próprios meios de prova, designadamente da sua razão de ciência e credibilidade, de forma a (como refere o Tribunal Constitucional no Ac. n.º 680/98) «explicitar (d) o processo de formação da convicção do tribunal».
É que só assim se garante que não se tratou de uma ponderação arbitrária das provas ao atribuir ao seu conteúdo uma especial força na formação da convicção do Tribunal.
Com efeito, como refere Marques Ferreira (Jornadas de Processo Penal, págs. 229/30), a propósito da motivação da decisão, «Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência».
Ou, noutros termos, a ratio do mencionado imperativo legal – mormente no segmento que ora releva de tal “exame crítico” das provas que suportaram a convicção do Tribunal – radica, em suma, no facto de permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, e das razões que levaram a que determinada prova tenha convencido o tribunal, bem como assegurando a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.
Como se escreveu no Ac. do STJ, de 9 de Janeiro de 1997, in Colectânea de Jurisprudência (STJ), Ano V, Tomo I, pág. 172: «O art. 374.º, n.º 2, do CPP não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das interferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas».
No caso presente, lendo-se a motivação probatória da decisão recorrida, decorre que o Tribunal sindicado precisou, de forma coerente e explícita, as razões nas quais baseou a sua convicção – regras comuns da experiência, não adequadamente infirmadas pelos sujeitos inquiridos, e teste de alcoolémia, mormente –, o porquê e a relevância que deu (ou desconsiderou) aos meios de prova apresentados pela acusação e pela defesa, isto no que concerne aos factos provados, já que, atento o objecto processual em causa, nenhum teve como não provado.
Do que resulta, inquestionavelmente, a determinação do substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido mencionado; o porquê da valoração dos meios de prova na conformidade a suportar essa conclusão.
O que, obviamente, é coisa distinta da conformação ou rebeldia do arguido com o acolhido, e se traduz na improcedência da primeira questão colocada.
3.3. Segunda linha de argumentação do arguido a não conformação com o acervo factual acolhido, nomeada e essencialmente, o facto de ele haver conduzido um veículo na via pública sob influência do álcool.
Segmenta aqui o dissídio em três aspectos: o Tribunal a quo não credibilizou os depoimentos das testemunhas de defesa arroladas; violou o princípio in dúbio pro reo, e, por fim, o apontado artigo 410.º, n.º 2, suas alíneas b) e c).
Tudo se resume a uma pretensa impugnação da matéria de facto, como facilmente se intui.
Esta pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no dito artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
No caso em apreço, o arguido sobrevoa ambas as formas, embora, reconheça-se, sem verdadeiramente entrar no âmago de qualquer delas.
Isto porquanto a motivação do recurso e as respectivas conclusões não cumprem minimamente os requisitos exigidos pelo recurso (impugnação ampla) sobre a decisão da matéria de facto.
Antes se limitam a rebater uma conclusão do Tribunal recorrido, olvidando que a apreciação feita o foi a coberto do artigo 127.º do CPP.
Dispensamo-nos de aqui reproduzir o alcance que comporta um tal normativo, tão abundantemente vem ele sendo apontado em decisões judiciais e concretamente vem mencionado na resposta do Ministério Público na 1.ª instância.
De relevante apenas diremos que da decisão recorrida, e mesmo considerando-se o teor dos depoimentos das testemunhas mencionadas pelo recorrente, não se infere que, no processo de valoração e decisão, no âmbito dessa livre apreciação, tenha o tribunal a quo actuado contra a lei ou de modo desconforme aos ditames da razão, da lógica e da experiência comum.
O silêncio por si assumido em audiência não pode olvidar que quando confrontado com o agente policial para submissão ao teste nada referiu, além de que é arredio ao senso comum haver ingerido bebidas apenas após o sinistro, exactamente na altura em que aguardava a submissão ao despiste de tal substância…
Também não colhe o apelo a que se considere com infringido o princípio in dúbio pro reo.
Com efeito, não resulta da sentença que o tribunal recorrido haja ficado num estado de dúvida – dúvida razoável, objectiva e motivável – e que, a partir desse estado dubitativo, tenha procedido à fixação dos factos provados desfavoráveis ao arguido; acresce que, não se tendo encontrando o tribunal a quo nesse estado de dúvida, nada impunha a consideração do princípio aludido.
Mais uma vez o que avulta é que o arguido/recorrente tão-somente pretende sindicar a valoração que esse tribunal fez das provas produzidas. Mas, reafirmamos, valoração efectuada no quadro da livre apreciação e sem que se identifique nessa valoração qualquer arbitrariedade ou violação das regras da boa lógica e da experiência comum.
Última ratio de discordância, o questionar das alíneas b) e c) do artigo 410.º, n.º 2, do CPP.
Os vícios aí previstos [tal como o da sua alínea a)], têm de resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum. Quer isto dizer que a sua verificação não decorre de qualquer reapreciação da prova produzida na audiência de julgamento.
Naquelas alíneas, reporta-se a lei, respectivamente, à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e, ao erro notório na apreciação da prova.
O primeiro consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
O segundo, por sua vez, emerge quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, págs. 61 e seguintes).
Do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios.
Quanto ao “erro notório”, manifestamente que o recorrente confunde tal erro e o recurso alargado sobre a matéria de facto.
No fundo, o que o recorrente impugna, sob a invocação do vício do “erro notório”, é a circunstância de o tribunal, face à prova produzida e à valoração que dela realizou, ter dado como provados os factos constantes da sentença.
Porém, arredada como acima se exarou a impugnação ampla da matéria de facto, este tribunal não reaprecia a prova produzida e não pode, consequentemente, decidir que o recorrente não conduziu sob efeito do álcool.
Quanto ao vício da alínea b), também que nenhuma incompatibilidade se descortina na decisão recorrida entre os factos provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tudo perfaz um fio condutor lógico, encadeado, de forma a perfazer um silogismo legalmente suportado.
Donde a conclusão de que deve subsistir como assente a factualidade provada, e, por via disso, a condenação do arguido pelo ilícito considerado.
3.5. Ponto seguinte de discordância, o facto de a pena de multa que lhe foi aplicada não ter sido substituída pela pena de admoestação.
Nos termos do artigo 60.º, n.º 1, do CP, “se ao agente dever ser aplicada pena de multa não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação”, isto porém apenas caso se conclua “que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Estas mostram-se elencadas no artigo 40.º, n.º 1, do CP, traduzindo-se na protecção de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade.
A protecção de bens jurídicos logra-se na prevenção dos comportamentos danosos que os possam questionar, além da tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal e da reintegração do agente na sociedade.
Condutas como as do recorrente assumem números perfeitamente devastadores que apenas uma sociedade com parca consciência cívica não rejeita ainda com mais veemência, sabidas que são as suas consequências funestas no domínio dos acidentes rodoviários. Particulares razões de prevenção geral se impõem, consequentemente.
Também que a conduta processual assumida pelo recorrente em nada credibiliza o seu apelo. Perante a evidência dos factos, esgrime com aspectos meramente formais, pretendendo obter um eximir de responsabilidades que, ele próprio, devia começar por assumir interiormente. A prognose que dessa forma possibilita em nada colhe com a pretensão de um aligeirar da reacção penal adequada. Pelo contrário, apenas reafirma a bondade do decidido, que, pois, importa manter.
3.6. Reclamação final do recorrente, a da diminuição da medida da sanção acessória aplicada, isto pese embora a tenha deixado “cair” nas conclusões ofertadas.
O Professor Figueiredo Dias, defendia em 1993, a necessidade de se passar a dispor de uma verdadeira pena acessória de proibição de condução de conduzir veículos motorizados, a qual deveria ter, como pressuposto formal, a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução e, como pressuposto material, a circunstância de, no caso concreto, o exercício da condução se revelar especialmente censurável.
Escrevia aquele Professor: “As razões político-criminais que justificam a urgência de uma regulamentação deste tipo são (infelizmente) por demais óbvias entre nós para que precisem de ser especialmente encarecidas.”
E acrescentava que à proibição de condução se devia pedir um efeito geral de intimação, dentro do limite da culpa e ainda “que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.”
Ainda seguindo o pensamento de Figueiredo Dias, reportado a 1993, de jure condendo, “(…) parece indiscutível (…) continuar a existir espaço (…) para sanções acessórias ou adjuvantes da função da pena principal, que reforcem e diversifiquem o conteúdo sancionatório da condenação. O que importa então é que tais sanções se assumam como verdadeiras penas indissociavelmente ligadas ao facto praticado e à culpa do agente, dotadas de uma moldura penal especifica e permitindo a tarefa judicial de determinação da sua medida concreta em cada caso (…).”
Consagrando este entendimento político-criminal, o Código Penal de 1995, aprovado através do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, veio estabelecer, no seu artigo 69.º, n.º 1, alínea a), que “é condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano quem for punido por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário.”
Assim se consagrava uma verdadeira pena acessória, aplicável àquelas situações de condução em que as regras do trânsito rodoviário foram, em concreto, gravemente violadas, dispondo o julgador de um campo de manobra para aplicar ou não a referida pena e adequar a medida concreta da mesma em face das necessidades de punição, dentro dos limites da culpa.
No período de vigência de tal diploma, a jurisprudência divergiu sobre a aplicação da proibição de condução ao agente do crime de condução em estado de embriaguez, tendo vindo a fixar-se jurisprudência no sentido de que “o agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º do Código Penal, deve ser sancionado, a título da pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) – cfr. Assento n.º 5/99 do STJ, publicado no DR, I série, de 20.07.1999 –.
Mas o legislador, a fim de afastar, de todo, tal divergência jurisprudencial, veio expressamente consagrar, pela alteração ao artigo 69.º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 77/2001, de 13.07.20011, que: “1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor, quem for punido: a) por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º.”
Tal alteração legislativa, é nosso entendimento, veio consagrar, de modo definitivo, uma ideia já presente na jurisprudência acima citada do nosso Tribunal superior: a de que, no crime de condução em estado de embriaguez, se revela, sempre, uma especial censurabilidade, cuja razão político-criminal é demasiado óbvia para precisar de ser explicitada.
Mas a alteração legislativa não se limitou a introduzir uma automática sanção acessória de proibição de condução para o agente do crime de condução em estado de embriaguez, tendo agravado, de modo significativo, a pena abstracta da mencionada sanção acessória, alterando-a, no seu limite mínimo, de 1 mês para 3 meses e, no seu limite máximo de 1 ano para 3 anos.
E tal agravação da moldura abstracta não resulta apenas do entendimento jurisprudencial que sustentava que, por força de uma ideia de unidade do sistema, o limite mínimo da sanção acessória, atendendo ao limite mínimo previsto para a contra-ordenação de condução sob a influência do álcool, deveria ser de 2 meses.
Resulta de uma clara opção político-criminal que reconhece que as finalidades da punição, atenta a reconhecida pouca eficácia da pena de multa, se obtêm, neste tipo de crime rodoviário, essencialmente, através da aplicação da sanção acessória de proibição de condução.
A génese e a evolução da sanção acessória de proibição de condução de veículos com motor, traduzem pois uma clara operação legislativa para endurecer o quantum da mesma.
Nesta operação, á míngua de regras específicas, deverá atender-se à culpa do agente e às exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, isto nos termos do disposto no artigo 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP. Seja, a determinação da sanção acessória concreta nada tem de específico em relação ao processo de determinação da pena concreta principal.
Assim sendo, a sanção acessória deve ser encontrada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior deverá ser oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, tendo como limite inultrapassável a medida da culpa.
Ora, considerado o limite mínimo e máximo da sanção acessória aplicável – 3 meses e 36 meses, respectivamente –; as, por todos reconhecidas, prementes exigências em sede de prevenção geral; o grau de ilicitude do facto – dolo directo e taxa de 1,90 gr/l de sangue –; a pouca e relativa importância da circunstância de o recorrente não ter antecedentes criminais (relembra-se a sua idade de 28 anos e, logo, o pouco tempo que ainda tem de condução de veículos) e o facto de se mostrar socialmente inserido, como sopesado na decisão recorrida, tem-se por adequada e proporcionada a medida aplicada.
Improcede então também este fundamento do recurso.
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IV – Decisão.
São termos em que negando provimento ao recurso, consequentemente se mantém a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 5 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 4 de Março de 2009