Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
868/11.5TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: TRANSACÇÃO COMERCIAL
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE TOMAR – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: DL 32/2003, 17/02, DL 62/2013, 17/02 E ART. 805.º/1 DO CC
Sumário: Hoje (desde o DL 32/2003, entretanto substituído/revogado pelo DL 62/2013), em transacções entre comerciantes/empresas (nas definições constantes do art. 3.º dos referidos diplomas), há uma regra supletiva legal, “especial”, que é a de que, nada dizendo o contrato sobre o prazo de pagamento, a obrigação de pagar o preço se vence automaticamente, sem necessidade de interpelação, passados 30 dias desde a data de recebimento da factura; não valendo assim a regra geral do art. 805.º/1 do CC, segundo a qual, nada dizendo o contrato, a obrigação de pagar o preço só se vence após a interpelação do credor e não se podendo também dizer/decidir que o ónus da prova da existência do prazo está do lado de quem o invoca e que sem se provar o prazo os juros são devidos apenas desde a citação.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório
A... SA, com sede na Rua (...), na Maia, intentou contra B...., farmacêutica, residente na Av.ª (...), em Tomar, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário (hoje, processo comum), pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 217.017,66 – sendo € 199.319,24 de capital e o restante de juros calculados até 17.06.2011 No relatório da sentença recorrida, escreveu-se “o restante de juros calculados desde 17.06.2011”; tratou-se de lapso. – e juros vincendos à taxa legal dos juros comerciais (sobre o referido montante de capital) até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tal, em resumo, que se dedica ao comércio e distribuição de produtos farmacêuticos e afins; que a R. é dona da “Farmácia C....”; e que, no exercício das respectivas actividades, forneceu e facturou à R., entre 01-09-2009 e 31-10-2010 No relatório da sentença recorrida, escreveu-se “entre 11-09-2009 e 21-10-2010”; tratou-se de lapso., diversos produtos farmacêuticos, acessórios de farmácia, drogaria e perfumaria, necessários à actividade comercial da última, para esta a comercializar na aludida farmácia, no valor total de € 231,674,73; fornecimentos e facturas que se venceram e não foram pagos, com excepção da quantia de € 31.489,38 (montante que sobrou dos € 165.000,00, recebidos em Dezembro de 2010, para pagamento de vários débitos da R. para com a A.) e dos montantes posteriormente creditados à R. (em 31-12-2010, € 331,98; em 31-01-2011, € 208,70; em 28-02-2011, € 150,86; em 31-03-2011, € 149,64; em 30-04-2011, € 24.93) e correspondentes a devoluções de produtos.

A R. contestou, dizendo, fundamentalmente, que o montante da sua dívida é inferior, uma vez que fez devoluções de produtos com prazos de validade expirados, ao longo dos anos de 2008/9/10, no montante global de € 17.766,66, não lhe tendo sido creditado (e descontado na dívida) tal montante; razão pela qual, com tal fundamento e por tal valor, deduziu pedido reconvencional.

A A. replicou, impugnando a factualidade do pedido reconvencional e mantendo o alegado na PI.

Admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador – que declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e, realizada a audiência, foi proferida sentença, em que se concluiu do seguinte modo:
“ (…) julgo parcialmente procedente por provada a presente acção e em consequência condeno a ré a pagar à autora:
-- a quantia de € 199 319,24 a que acrescem juros às taxas acima mencionadas e calculados desde a data da citação – 25.06.2011 – e contados até efectivo pagamento;
-- no demais absolvo a ré;
-- absolvo a autora do pedido de compensação de 17 766,66 € (…) ”

Inconformado com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção totalmente procedente (que, por conseguinte, também condene a R. nos juros vencidos até à citação).
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1 -O Meritíssimo Juiz a quo não considerou provadas as datas em que se venceram as facturas que serviram de base à acção.
2 -As facturas em causa têm prazo certo para o seu pagamento.
3 -A ora Recorrente alegou, por remissão para os documentos de fls. 8 a 46, as datas que representam os termos finais desse prazo certo para pagamento (datas de “vencimento” das “facturas-resumo”).
4 -A alegação por remissão para documentos é técnica geralmente aceite pelos Tribunais Superiores.
5 -Os factos “datas de vencimento” das facturas mostram-se inequivocamente individualizados sem quaisquer dúvidas ou ambiguidades, nos documentos juntos aos autos pela Autora,
6 -A Recorrida aceitou expressamente essa alegação e não impugnou ou de alguma maneira pôs em causa os referidos documentos.
7 -Pelo que os factos em questão – as datas de vencimento das facturas – devem considerar-se assentes por acordo das partes.
8 -A omissão de tais factos constitui a incorrecção de julgamento a que se refere a al. a) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.
9 -A prova da Autora constituída pelos documentos juntos a fls. 8 a 46 dos autos impunha decisão sobre a matéria de facto que incluísse as datas a partir das quais decorria para a Ré a obrigação de pagar juros de mora – al. b) do n.º 1 do mesmo artigo.
10 -Sobre a questão de facto suscitada no presente recurso deveria ter sido proferida decisão com o seguinte sentido – al. c) do n.º 1 do art. 640.º do mesmo artigo do CPC:
“As facturas constantes do documento de fls. 8 a 11 tinham prazo de pagamento até 14-11-2009.
As facturas constantes do documento de fls. 12 a 16 tinham prazo de pagamento até 15-12-2009.
As facturas constantes do documento de fls. 13 a 20 tinham prazo de pagamento até 14-01-2010.
As facturas constantes do documento de fls. 21 a 24 tinham prazo de pagamento até 14-02-2010.
As facturas constantes do documento de fls. 25 a 28 tinham prazo de pagamento até 17-03-2010.
As facturas constantes do documento de fls. 29 a 31 tinham prazo de pagamento até14-04-2010.
As facturas constantes do documento de fls. 32 a 36 tinham prazo de pagamento até 14-11-2010.
As facturas constantes do documento de fls. 37 a 41 tinham prazo de pagamento até 15-12-2010.
A factura constante do documento de fls. 42 vencia-se em 14-02-2011.
A factura constante do documento de fls. 43 vencia-se em 17-03-2011.
A factura constante do documento de fls. 44 vencia-se em 14-04-2011.
A factura constante do documento de fls. 45 vencia-se em 15-05-2011.
A factura constante do documento de fls. 46 vencia-se em 14-06-2011”.
11 -Em consequência da ampliação da matéria de facto dada por provada, a douta sentença recorrida deverá ser reformulada no sentido da condenação da Recorrida em juros de mora às taxas anuais legalmente fixadas para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial.
12 -A douta decisão recorrida violou o disposto no n.º 1 do art. 374.º e no n.º 1 do art. 376.º do Código Civil, no n.º 4 do art. 604.º do CPC na parte em que dispõe que o juiz toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo e provados por documentos e no Aviso n.º 10478/2013 da DGTF, publicado no DR, II, n.º 162, de 23-08-2013.
Não foi apresentada qualquer resposta.
Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação de Facto
1) - A Autora é uma sociedade que se dedica ao comércio e distribuição de produtos e especialidades farmacêuticos e, ainda de acessórios de farmácia, drogaria e de perfumaria. – alínea A) dos factos assentes
2) - A Ré é proprietária do estabelecimento de farmácia denominado “Farmácia C...", localizado na Av. (...), em Tomar. – alínea B) dos factos assentes
3) - No exercício da sua actividade, a Autora vendeu à Ré, entre 01-09-2009 e 31-10-2010, diversos produtos e especialidades farmacêuticos, acessórios de farmácia, drogaria e perfumaria, necessários à actividade comercial da última, para esta a comercializar na aludida farmácia. – alínea C) dos factos assentes
4) - No valor total de € 231.674,73, conforme resulta das 8 "facturas-resumo” juntas aos autos. – alínea D) dos factos assentes
5) – Tais “facturas-resumo” a que se refere a alínea anterior tinham as seguintes datas de emissão e vencimento:
A factura resumo constante de fls. 8 a 11, no valor total de € 33.253,33, tinha como emissão a data de 30/09/2009 e prazo de pagamento até 14-11-2009.
A factura resumo constante de fls. 12 a 16, no valor total de € 34.076,01, tinha como emissão a data de 31/10/2009 e prazo de pagamento até 15-12-2009.
A factura resumo constante de fls. 17 a 20, no valor total de € 24.567,19, tinha como emissão a data de 30/11/2009 e prazo de pagamento até 14-01-2010.
A factura resumo constante de fls. 21 a 24, no valor total de € 25.291,23, tinha como emissão a data de 31/12/2009 e prazo de pagamento até 14-02-2010.
A factura resumo constante de fls. 25 a 28, no valor total de € 26.451,53, tinha como emissão a data de 31/01/2010 e prazo de pagamento até 17-03-2010.
A factura resumo constante de fls. 29 a 31, no valor total de € 24.198,64, tinha como emissão a data de 28/02/2010 e prazo de pagamento até 14-04-2010.
A factura resumo constante de fls. 32 a 36, no valor total de € 35.690,40, tinha como emissão a data de 30/09/2010 e prazo de pagamento até 14-11-2010.
A factura resumo constante de fls. 37 a 41, no valor total de € 28.146,50, tinha como emissão a data de 31/10/2010 e prazo de pagamento até 15-12-2010.
6) - A Ré entregou à Autora, em Dezembro de 2010, a quantia de € 165.000,00, para pagamento de vários débitos que detinha para com esta; desse montante, foi imputado à dívida titulada pelo "resumo-factura" constante de fls. 8 a 11 a quantia de € 31.489,38. – alínea G) dos factos assentes
7) - A Autora creditou ainda à Ré, em 31-12-2010, € 331,98; em 31-01-2011, € 208,70; em 28-02-2011, € 150,86; em 31-03-2011, € 149,64; em 30-04-2011, € 24.93, valores correspondentes a devoluções de produtos. – alínea F) dos factos assentes.
8) - Nesta data apenas não foram reembolsados produtos devolvidos pela Farmácia Alfa, no valor de 371,86 €. – alínea I) dos factos assentes
9) - Bem como, produtos de volvidos pela mesma Farmácia no valor de 39,28 €. – alínea J) dos factos assentes
10) - Na actividade farmacêutica, os produtos vendidos estão sujeitos a rigorosos prazos de validade. – alínea K) dos factos assentes
11) - Prazos esses que determinam a imediata retirada do produto expirado do mercado, não só por não se garantir já a sua eficácia, como porque a deterioração dos produtos expirados pode acusar danos na saúde de quem os pudesse consumir por alteração dos seus compostos. – alínea L) dos factos assentes
12) - Deve a Ré à Autora, na presente data, a título de capital, o montante de € 199.319,24. – r q 1
13) - Na sequência do referido nas alíneas K) e L) da MA (matéria assente), o sistema de validade dos produtos, implica que as farmácias devolvam aos fornecedores os produtos cujo prazo de validade será ultrapassado dentro do prazo de um mês, sendo reembolsadas pelo valor que pagaram lhe inicialmente. – r q 2
14) - Nos casos de devolução de produtos, o armazenista/distribuidor, tal como a Autora, limita-se a reenviar esses artigos para o laboratório de onde os recebeu para distribuição, aguardando depois que o laboratório em causa lhe pague ou credite esses mesmos produtos, procedendo então, ao pagamento ou à creditação dos mesmos à farmácia que os devolveu. – r qs 5, 6 e 7
15).- O procedimento mencionado acima é do conhecimento da Ré, e é o procedimento habitual dos armazenistas/distribuidores neste ramo do comércio. – r qs 10 e 11.
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III – Fundamentação de Direito
Apenas a A., como resulta do relatório, recorre da sentença; significa isto, tendo o pedido reconvencional Chamou-se-lhe “pedido de compensação”, mas não foi apenas isso; tratou-se de lapso. sido julgado improcedente, que o desfecho da reconvenção está consolidado nos autos.
Resta pois a acção; a nosso ver e com o devido respeito, de extrema simplicidade processual e substantiva.
A A/apelante, comerciante, forneceu à R/apelada, também comerciante Que é o que hoje são os farmacêuticos; ao “venderem nas suas farmácias sobretudo medicamentos comprados com intuito de os revender” – Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol I, pág. 146/7., por diversas vezes, produtos do seu comércio para revenda no estabelecimento de farmácia da R/apelada; tendo assim celebrado, em execução e no âmbito do contrato-quadro por certo previamente também celebrado, vários contratos de compra e venda comercial (cfr. art. 463.º e 3.º do C. Comercial e 874º e 939.º do C. C.), atento o intuito lucrativo que presidiu ao negócio Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, pág. 346/7..
Da compra e venda, é sabido, emerge, para o comprador, o dever de pagar o preço (art. 879º/c) do C. C.), pagamento que, como facto extintivo que é (art. 342º/2 do C. C.), pertencia à R./apelante provar; o que não aconteceu, mais exactamente, não foi – por estar em oposição com a defesa produzida (em que apenas se invoca um contra-crédito, não demonstrado, por produtos expirados e devolvidos) – sequer alegado (para além, claro está, dos pagamentos/entregas parciais “confessados” na PI.).
Era pois juridicamente inquestionável a procedência do montante respeitante ao preço das compras e vendas; que foi concedido sem qualquer censura recursiva.
Temos dúvidas sobre a bondade de não se haver descontado aos € 199.319,24 concedidos (como preço global em dívida) os dois pequenos montantes referidos nos factos 8 e 9; uma vez que os € 199.319,24 resultam apenas da “aritmética” da A./apelante – isto é, da soma dos montantes das 8 facturas resumo e da posterior subtracção dos € 31.489,38 referidos no facto 6 e dos vários montantes referidos no facto 7 – não tomando em conta essas outras devoluções referidas nos factos 8 e 9.
Em todo o caso – é o que aqui conta e vale – os € 199.319,24 foram concedidos (como preço global em dívida), pelo que, não tendo neste aspecto sido feita qualquer censura recursiva, não faz tal questão do “cálculo” do preço global em dívida – por o seu desfecho ter feito caso julgado – parte do objecto do presente recurso.
O qual – objecto do recurso – se cinge, como também resulta do relatório inicial, à questão dos juros; mais exactamente, aos que foram pedidos até à citação, que, tendo sido negados (só foram concedidos juros após a citação), suscita o presente recurso da A/apelante.
Questão esta em que a divergência recursiva da A/apelante é totalmente justificada.
E não apenas pela razão que invoca (isto é, por razões factuais, por haver factos provados que assim não foram considerados), mas também por substantivamente, mesmo sem “novos” factos, os juros pedidos até à citação serem devidas.
Expliquemo-nos:
1 - Começando pela razão “factual” invocada pela A/apelante.
Como claramente resulta do relatório inicial – e mais detalhadamente do confronto entre a PI e a contestação – a R/apelada nunca colocou em causa os factos constitutivos do direito da A/apelante; isto é, os concretos fornecimentos, os seus montantes, a emissão das “facturas-resumo” e o conteúdo das mesmas (aqui se incluindo as respectivas datas de emissão e de vencimento); o que o R/apelante invocou, em termos defensivos, foi outro e diverso facto extintivo (além dos “confessados” pela A. na PI), a saber, um contra-crédito no montante global de € 17.766,66 (decorrente de devoluções de produtos com prazos de validade expirados).
Assim, toda a factualidade alegada na PI podia/devia ter sido dada como assente logo no “saneador” (prosseguindo o processo para discutir e apurar a factualidade respeitante à defesa reconvencional).
Foi isto que, na organização dos factos assentes e da Base Instrutória, acabou por ser mais ou menos feito Dizemos “mais ou menos feito”, uma vez que, após tudo o que se deu como assente, formulou-se, retirado da alegação da A/apelante, um quesito (1.º) em que se perguntava se “deve a R. à A., na presente data, a título de capital, o montante de € 199.319,24?
Como é evidente, este montante é o resultado aritmético da subtracção ao montante referido em D) do montante referido em G) e dos pequenos montantes referidos em F), isto é, o que se perguntava em tal quesito estava já assente (era só fazer as contas) na mesma peça em que se fazia a pergunta; ademais, com o devido respeito, não se fazem perguntas para as testemunhas dar o resultado de operações aritméticas elementares e caso o sentido da pergunta fosse outro – isto é, dar a solução final do processo – então também a pergunta não estaria tecnicamente bem.; porém, não “tecnicamente” bem, uma vez que se deu como assente, na alínea E), que “as facturas a que se refere a alínea anterior e os documentos juntos encontram-se vencidas”, quando, em rigor e com rigor, se devia ter feito constar as concretas datas das facturas e os respectivos vencimentos.

Foi-se atrás da alegação do A. na PI e como o A. havia remetido para as facturas, a peça processual ficou sem o que factualmente interessava.
Sem que tais irregularidades/imperfeições – quer da PI quer dos factos assentes – produzam um definitivo obstáculo processual.
A alegação por remissão para os documentos é algo que, longe de ser exemplar Tanto não é “exemplar” que “deu no que deu”: a necessidade dum recurso como o presente. Se a A/apelante tivesse alegado sem imperfeição, não teria por certo ocorrido o lapso, no “saneador” e na sentença, que suscita o presente recurso., é há muito admitido (designadamente, quando, como é o caso, estão em causa os elementos de facturas, cujo montante parcelar e global não está em causa) e uma peça preparatória da decisão (como é o caso do despacho que organizava os factos assentes e a BI) não faz qualquer caso julgado (no caso, negativo); estando a solução processual reparadora do lapso (não nas normas processuais invocadas pelo A/apelante É tudo tão evidente nos autos/recurso que não reputamos necessário estar com grandes explicações: não se trata de impugnar ou de modificar a decisão de facto (isto é, de aplicação dos art. 662.º e 640.º do NCPC), mas de incluir nos factos relevantes tudo aquilo que, findos os articulados, estava já assente por acordo.) no art. 607.º/4 do NCPC (=659.º/3 do VCPC), mais exactamente, no segmento que manda o juiz fazer “o exame crítico das provas”.
Enfim, sintetizando e encurtando razões, fazendo o exame crítico das provas (art. 607.º/4 do NCPC, ex vi art. 663.º/2 do NCPC), dizemos – como o Exmo. Juiz a quo podia/devia ter dito no momento da prolação da sentença recorrida – que a factualidade constante do facto 5 (supra alinhado) foi admitida por acordo na fase dos articulados.
Em consequência, devendo as “facturas-resumo”, respeitantes ao fornecimento do respectivo mês, ser pagas nas datas que das mesmas constam, a obrigação de pagar o preço das facturas/fornecimentos encontrava-se já vencida (antes da citação), incorrendo a R/apelada em mora (art. 805º/2/a) do C. C.); são assim também devidos os juros comerciais (ao abrigo das Portarias 597/2005 e 277/2013 e do art. 102.º, § 3.º do C. Comercial) peticionados até à citação e que correspondem à indemnização pela mora.
2 – Passando à razão substantiva:
Escreveu-se, a dado passo, na sentença recorrida, que “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. A menos que a obrigação tenha prazo certo para o seu cumprimento – art. 805.º. Não se provou esse prazo certo, pelo que só há lugar a juros desde a citação, ou seja, desde 25.06.2011.
Não é exactamente assim, ou melhor, não é sempre assim; a regra é esta, mas tem excepções, estando o caso dos autos/recursos no âmbito duma dessas excepções.
A questão tem o seguinte enfoque, que, em face do que os autos retratam, justifica as seguintes considerações:
A Comissão Europeia, preocupada com os atrasos de pagamentos entre empresas – mais exactamente, com a “cultura do pagamento atrasado” dos agentes públicos e dos grandes agentes económicos – produziu, após Recomendação e Relatório sobre o tema, uma proposta de Directiva que deu origem à Directiva 2000/35 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29/07/2000, que estabeleceu medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais, Directiva esta que foi transposta para o direito interno português pelo DL 32/2003, de 17/02 Entrado em vigor, no que aqui interessa, no dia seguinte ao da sua publicação..
DL 32/2003 que, nos termos do seu art. 2.º, n.º 1, se aplicava “a todos os pagamentos efectuados como remunerações de transacções comerciais”; entendendo-se por transacção comercial “qualquer transacção entre empresas (…) qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração” – cfr. art. 3.º, a); e adoptando-se como conceito de empresa “qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular” – cfr. art. 3.º, b) – isto é, adoptando-se “um conceito subjectivo, tomando a empresa na acepção de todo e qualquer agente de uma actividade económica”, com o que se “abrange os comerciantes em sentido estrito, os artesãos, os agricultores, mesmo os profissionais liberais” Cfr. Pupo Correia, Direito Comercial, 10.ª ed., pág. 433..
E dissemos que “se aplicava” apenas por, entretanto, a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 2011, ter revogado a referida Directiva n.º 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29/07/2000, tendo introduzido medidas adicionais para dissuadir os atrasos de pagamentos nas transacções comerciais; tendo esta última Directiva de 2011 sido transposta para o direito interno pelo DL 62/2013, de 10 de Maio, que procedeu à revisão do regime do DL 32/2003, de 17/02, e à sua substituição/revogação à luz do novo diploma comunitário.
Nova Directiva e DL 62/2013 que não trazem, para uma hipótese como a sub-judice, qualquer alteração significativa (em relação ao regime do anterior DL 32/2003) e que, com rigor, desde logo pelo que se diz nos art. 13.º e 14.º do DL 62/2013 Artigo 13.º (Norma revogatória)
1 - É revogado o Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 107/2005, de 1 de Julho, e pela Lei n.º 3/2010, de 27 de Abril, com excepção dos artigos 6.º e 8.º, mantendo-se em vigor no que respeita aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma.
(…)
Artigo 14.º (Aplicação no tempo)
O presente diploma é aplicável aos contratos celebrados a partir da data de entrada em vigor do mesmo, salvo quando esteja em causa:
a) A celebração ou renovação de contratos públicos decorrentes de procedimentos de formação iniciados antes da sua entrada em vigor e à execução dos contratos que revistam natureza de contrato administrativo celebrados na sequência de procedimentos de formação iniciados antes dessa data;
b) Prorrogações, expressas ou tácitas, do prazo de execução das prestações que constituem o objeto de contratos públicos cujo procedimento tenha sido iniciado previamente à data de entrada em vigor do presente diploma. , não são sequer aqui aplicáveis.
Sintetizando, estando em causa contratos celebrados antes da entrada em vigor do DL 62/2013, é ao caso ainda aplicável – embora se encontre revogado – o DL 32/2003.
Efectivamente – é o que vimos expondo – estando provado que A/apelante e R/apelada são comerciantes/empresas e que foi no exercício das respectivas actividades comerciais que efectuaram as transacções que estão na génese do presente litígio, é de todo indiscutível que são ao caso aplicáveis as medidas e soluções adoptadas pelo DL 32/2003.
Medidas e soluções que nos autos não foram tomadas em conta.
É que – e é aqui que queremos chegar por ser este um ponto saliente para a questão do recurso – uma das inovações do DL 32/2003 consiste exactamente no vencimento automático dos juros; isto é, caso o contrato seja omisso quanto ao prazo do cumprimento da obrigação, esta (a obrigação de pagamento) vence-se – são devidos juros – automaticamente, decorridos 30 dias.
Efectivamente, dispõe-se (dispunha-se Hoje, dispõe-se mais ou menos o mesmo no art. 4.º/3 do DL 62/2013; assim como não há qualquer divergência na definição do que é “transacção comercial” e “empresa”.) no art. 4.º/2 do DL 32/2003 o seguinte:
“ 2 - Sempre que do contrato não conste a data ou o prazo de pagamento, são devidos juros, os quais se vencem automaticamente, sem necessidade de novo aviso:
a) 30 dias após a data em que o devedor tiver recebido a factura ou documento equivalente;
b) 30 dias após a data de recepção efectiva dos bens ou da prestação dos serviços quando a data de recepção da factura ou de documento equivalente seja incerta;
c) 30 dias após a data de recepção efectiva dos bens ou da prestação dos serviços quando o devedor receba a factura ou documento equivalente antes do fornecimento dos bens ou da prestação dos serviços;
d) 30 dias após a data de aceitação quando esteja previsto um processo mediante o qual deva ser determinada a conformidade dos bens ou serviços e o devedor receba a factura ou documento equivalente antes dessa aceitação.”
O que, evidentemente, abala a argumentação da sentença recorrida, isto é, estando em causa, no caso, transacções entre comerciantes/empresas (na definição do art. 3.º do DL 32/2003), não se pode dizer que sem se provar o prazo (até se tinha provado, como já explicámos, mas para o raciocínio não é o relevante) os juros devidos são só desde a citação.
Hoje E continua a ser assim no vigente DL 62/2013. (mais exactamente, desde 18/02/2003) é inexacto dizer-se – quando, como é o caso, estão causa transacções entre comerciantes/empresas – que se não foi acordado/provado prazo de pagamento, a obrigação em causa não tem data certa ou que na determinação dos prazos de pagamento, o ónus da prova está do lado de quem faz a invocação.
Hoje, em transacções entre comerciantes/empresas, há uma regra supletiva legal, “especial”, que é a de que, nada dizendo o contrato, a obrigação de pagar o preço se vence automaticamente, sem necessidade de interpelação, passados 30 dias; não valendo a regra geral do art. 805.º/1 do CC, segundo a qual, nada dizendo o contrato, a obrigação de pagar o preço só se vence após a interpelação do credor (regra esta ínsita na argumentação da sentença recorrida).
É justamente por tudo isto que dizemos/dissemos que, mesmo sem “novos” factos, mesmo sem se ter provado a data de vencimento de cada um das 8 “facturas-resumo”, os juros pedidos até à citação seriam devidos.
A questão até tem a seguinte curiosidade: se a A/apelante não tivesse alegado/provado qual o prazo fixado para pagamento das facturas, até haveria lugar a mais 15 dias de juros; é que, segundo o art. 4.º/2/a) do DL 32/2003, as facturas vencem-se (se não for fixado/provado prazo) 30 dias após terem sido recebidas Facturas que são “facturas resumo” de toda a facturação mensal, tendo os bens sido recebidos até em data anterior (durante e ao longo de todo o mês) à das “facturas resumo”. e a A/apelante alegou que dava mais 15 dias (isto é, 45 dias) para as facturas serem pagas (sendo, naturalmente, em face de tal alegação, este o prazo que conta).
Consequentemente, são devidos – pelas duas razões referidas, factual e substantiva – os juros mora que a sentença recorrida negou à A/apelante.
Juros que são os comerciais (art. 102.º do C. Comercial), como se diz na sentença recorrida; e que foram e serão correctamente calculados – de acordo com as Portaria 597/2005, de 19/07/2005, e 277/2013, de 26 de Agosto, e nos termos dos seguintes e diversos Avisos publicados – às seguintes taxas de juro:
No 2.º Semestre de 2009 (Aviso 12.184/2000) – 8,00%;
No 1.º Semestre de 2010 (Aviso 597/2010) – 8,00%;
No 2.º Semestre de 2010 (Aviso 13.746/2010) – 8,00%;
No 1.º Semestre de 2011 (Aviso 2.284/2011) – 8,00%;
No 2.º Semestre de 2011 (Aviso 14.190/2011) – 8,25%;
No 1.º Semestre de 2012 (Aviso 692/2012) – 8,00%;
No 2.º Semestre de 2012 (Aviso 9.944/2012) – 8,00%;
No 1.º Semestre de 2013 (Aviso 594/2013) – 7,75%;
No 2.º Semestre de 2013 (Aviso 10.478/2013) – 7,50%.
No 1.º Semestre de 2014 (Aviso 1.019/2014) – 7,50%;
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Procede pois nos termos acabados de referir o recurso.
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IV - Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e revoga-se a absolvição da R./apelada respeitante aos juros de mora até à citação, em função do que – incorporando toda a condenação (isto é, a parte da decisão recorrida que não faz parte do objecto do presente recurso) – passa a acção a ser julgada totalmente procedente e condena-se a R/apelada a pagar à A./apelante a quantia de € 217.017,66 – sendo € 199.319,24 de capital e o restante de juros calculados até 17.06.2011 – acrescida de juros desde 17.06.2011, sobre o valor de € 199.319,24, à taxa legal dos juros comerciais (supra referidos), até efectivo e integral pagamento.
Custas em ambas as instâncias pela R./apelada.
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Coimbra, 01/04/2014

(Barateiro Martins - Relator)

(Arlindo Oliveira)

(Emídio Santos)