Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1672/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
Data do Acordão: 06/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SÃO PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 205º, N.º 1 E 4, AL. B), DO C. PENAL
Sumário: Estão verificados os pressupostos do crime de abuso de confiança se um herdeiro, invertendo o título de posse sobre dinheiro da herança, sabendo que o mesmo lhe não pertencia e que actuava contra a vontade dos restantes herdeiros, o gasta em proveito próprio, mesmo que tal não venha a afectar a composição dos quinhões dos restantes herdeiros.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA


Findo o inquérito preliminar o digno magistrado do MºPº deduziu acusação contra: A..., melhor identificada nos autos.
Pelos factos descritos na acusação (por se ter apropriado de mais de 160.000,00 euros de determinada herança em proveito exclusivo) acusou-a da prática de um crime de abuso de confiança previsto e punido no artigo 205º, n.º 1 e 4, alínea b), por referência à alínea b) do artigo 202.º, ambos do Código Penal.
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Notificada da acusação requereu a arguida a abertura da instrução, alegando, em síntese que: atenta a sua qualidade sucessória, pertence-lhe metade da herança, que é composta por dinheiro mas também por bens imóveis cujo valor ascende a € 200.000,00; o valor que pertence à herança será por si devolvido no momento próprio; não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime também porque o dinheiro em causa não consubstancia coisa alheia.
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Após realização do debate instrutório foi proferido despacho instrutório, que, dando como procedentes os fundamentos do requerimento de abertura da instrução, decidiu não pronunciar a arguida, determinando o arquivamento dos autos.
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Recorre o digno magistrado do MºPº do referido despacho de não pronúncia, terminando a motivação com as seguintes CONCLUSÕES:
1. (…)
2. Foi proferida, a fls.558 a 564 dos autos, douta decisão instrutória em que se decidiu não pronunciar aquela arguida pela prática do aludido crime de abuso de confiança, por se ter entendido que dos autos não resultava indiciado um dos elementos objectivos deste tipo legal de crime, ou seja, o carácter alheio da coisa, mais concretamente, da quantia de mais de 160.000,00 euros com que a arguida se locupletou.
3. Contudo, a nosso ver, e salvo o devido respeito por opinião diversa, dos autos resulta suficientemente indiciado que aquela quantia superior a 160.000,00 euros, descrita na acusação pública supra referida como tendo sido gasta em proveito próprio pela arguida, é efectivamente coisa alheia para aquela.
4. Assim, o Tribunal de São Pedro do Sul ordenou, no âmbito do procedimento cautelar comum n.º 229/1997 a entrega da quantia global de 163.190,99 euros à arguida, mas unicamente para que aquela, enquanto cabeça-de-casal daquela herança indivisa, pudesse saldar “os encargos e dívidas da herança”.
5. Pelo que tal entrega ocorreu a título não translativo da propriedade, já que com a mesma não se operou qualquer transferência da propriedade da dita quantia para a arguida.
6- Dessa quantia assim entregue a arguida gastou em proveito próprio, pela forma e nos prazos descritos na dita acusação pública, para onde se remete, uma quantia não concretamente apurada, mas superior a 160.000,00 euros, quantia esta que era coisa alheia para a arguida, na altura em que aquela dela se apropriou.
7- De facto, tal quantia era pertença da herança indivisa aberta por óbito de B..., herança essa já aceite por outros herdeiros testamentários. Tal herança indivisa constitui um património autónomo onde existe uma comunhão de tipo romano, com repartição da massa patrimonial entre os herdeiros por quotas ideais e em que estes não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários.
8. Ora, neste caso concreto aquela quantia (de mais de 160.000,00 euros) era, de facto, coisa alheia para a arguida na altura em que a mesma dela se apropriou, uma vez que aquela quantia não lhe pertencia e a arguida não tinha ainda qualquer direito próprio sobre tal bem hereditário.
9- Aliás, ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de concluir que tal quantia era coisa alheia para a arguida na medida em que “alheia á toda a coisa que, segundo este direito, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente” - Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, § 10, p. 98.
Ora, tal quantia, sempre seria, pelo menos em parte, ou seja, na quota-parte (metade) em que àquela herança (e, por conseguinte ao conjunto dos bens que constituíam o acervo hereditário, neles se incluindo a dita quantia) sucediam os herdeiros testamentários, alheia à arguida, pois, nessa parte, sempre pertenceria a outra pessoa que não o agente.
10- É que, ao invés do que á referido na douta decisão instrutória, a herança indivisa não constitui um património colectivo, mas tão somente um património autónomo, pelo que não se poderá dizer que cabe à arguida o direito completo sobre todos os bens que compõem o acervo hereditário, pois, existindo neste caso concreto outros herdeiros (testamentários), a arguida apenas sucede numa quota parte da mesma.
11- É que a adoptar-se a tese expressa na douta decisão instrutória então qualquer herdeiro, ainda que tivesse direito a herdar apenas uma ínfima parte do património hereditário sempre poderia, antes de efectuada a partilha, dispor em proveito próprio da totalidade dos bens que integram a herança indivisa sem se considerar que estava a dispor de coisa alheia!
12- Por outro lado, tal crime consumou-se com o gasto em proveito próprio, por parte da arguida, de tal quantia, nas circunstâncias descritas na acusação pública supra referida, para onde se remete. E que a inversão do título da posse, momento em que se consuma o crime em questão, ocorre quando, tratando-se de coisa fungível, como é o caso, o agente dispõe dolosamente da mesma de forma injustificada — F. Dias, Ob. Cit., § 25, p. 104.
13- Doutra parte, também dúvidas não restam quanto ao dolo com que a arguida actuou, já que aquela sabia que não podia gastar aquela quantia senão para fazer face aos encargos e despesas ordinárias daquela herança indivisa e teria de prestar contas mensais de tais gastos ao Tribunal. Sabia igualmente que existiam outros herdeiros àquela herança e que a mesma não tinha qualquer direito sobre aquela quantia até à partilha da mesma, tal como resulta do seu requerimento no procedimento cautelar referido na acusação pública.
14- Para mais, ainda que a arguida venha a devolver a quantia em questão aos restantes herdeiros, tal como por si propalado no seu requerimento para abertura de instrução, o que é facto é que essa (hipotética) devolução não “apaga” a prática do crime de abuso de confiança em questão, podendo relevar apenas nos termos e para os efeitos do disposto no art. 206º do Código Penal.
15- Assim, dos autos emergem indícios suficientes da prática, pela arguida, dos factos descritos na acusação pública de fls. 451 a 454-v, factos esses que, por sua vez, integram o crime de abuso de confiança, p. e p. pelos arts. 205º, nº1 e 4, al. b), por referência á al. b) do art. 202º, todos do Código Penal, pelo que a douta decisão instrutória de que se recorre ao não pronunciar a arguida pela prática deste crime violou o disposto nos arts. 205º, nºs 1 e 4, al. b) do Código Penal e 308º, n.º1 do Código de Processo Penal.
15. Pelo que deverá a decisão instrutória recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie a arguida A... pelos factos e incriminação jurídica constantes da acusação.
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Recorre também a assistente C... concluindo que: dos factos constantes do processo resulta que a arguida cometeu o crime de burla qualificada p e p pelos artigos 217º e 218 n.º2 alínea a) do C. Penal; como tal, após comunicação da alteração substancial dos factos, devia a arguida ser pronunciada por este crime; Sem prescindir, os factos da acusação preenchem o tipo legal de crime de abuso de confiança.
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Não foi apresentada resposta a nenhum dos recursos.
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No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso interposto pelo MºPº merece provimento.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, tendo-se procedido a julgamento em audiência, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre conhecer e decidir.
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O douto despacho recorrido, em conformidade com o requerimento de abertura da instrução a que reconhece bom fundamento, não questiona a matéria de facto descrita na acusação, sendo certo que não foi produzida durante a instrução qualquer meio de prova que infirmasse tal matéria de facto.
O despacho recorrido funda-se exclusivamente em que a aludida matéria de facto descrita na acusação não integra os elementos do crime porquanto os bens da herança não constituem “coisa alheia”.

Temos, assim, como matéria de facto indiciada, em resumo:
A arguida é filha adoptiva da referida B..., falecida no dia 04.09.1997, no estado de viúva.
Aquela B..., através de testamento público celebrado no Cartório Notarial de Vouzela, instituiu como herdeiros da sua quota disponível seus irmãos D... e E....
Tendo, esta última, falecido em 14.05.1997, deixou a representá-la 6 (seis) filhos, entre eles a assistente C....
Entre os bens a partilhar por morte de B... contava-se, para além do mais, a quantia de 163.190,99 euros (à altura 32.716.858$70), quantia essa que se encontrava depositada em três contas bancárias tituladas por B..., com os números 074103525400, 074132525120 e 074103525828, todas domiciliadas na agência de São Pedro do Sul da Caixa Geral de Depósitos.
À arguida, enquanto única herdeira legitimária (filha adoptiva) da falecida B..., competia o exercício do cargo de cabeça de casal da herança indivisa aberta pela sua morte e, como tal, a administração da mesma herança.
Posteriormente, a arguida, na qualidade de cabeça-de-casal da mencionada herança indivisa, interpôs no Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, em 11 de Dezembro de 1997, o procedimento cautelar comum que tomou o número 229/1997.
Nesse procedimento cautelar a arguida, invocando a necessidade de efectuar o pagamento dos encargos da herança indivisa, nomeadamente as despesas de funeral de B..., os gastos de luz, água e telefone de uma casa de habitação que fazia parte do acervo hereditário, os gastos com os salários dos trabalhadores que prestavam serviço nos prédios que pertenciam àquela herança e os gastos com a alimentação dos animais que pertenciam ao acervo hereditário, peticionou que se ordenasse a entrega, a si, da quantia em dinheiro existente nas contas bancárias supra referidas, no já referido montante global, à altura, de 32.716858$70.
Através de decisão judicial proferida em 27/01/1998, no âmbito desse procedimento cautelar comum, foi julgada procedente a providência requerida e ordenado à Caixa Geral de Depósitos, a requerimento da arguida, que entregasse à arguida as quantias em dinheiro depositadas nas supra referidas contas bancárias, para que esta, enquanto cabeça-de-casal daquela herança indivisa, pudesse saldar os encargos e dívidas da herança.
Através da mesma decisão judicial foi ainda ordenado à arguida que depositasse tais quantias nessa agência de São Pedro do Sul da Caixa Geral de Depósitos, numa conta bancária por si titulada, devendo, mensalmente, remeter ao Tribunal Judicial de São Pedro do Sul o comprovativo do levantamento mensal efectuado.
Assim, no cumprimento daquela decisão judicial, os responsáveis pela Caixa Geral de Depósitos procederam à entrega à arguida da totalidade das quantias que se encontravam naquela data - 27/01/1998 - depositadas nas supra referidas contas bancárias, cujo montante global ascendia a 32.716.858$70, depositando-a numa conta à ordem aberta em nome da arguida, com o número 0741040356500.
A arguida, contudo, logo no final de Janeiro de 1998, firmou o propósito de fazer sua, gastando-a em proveito próprio, a supra mencionada quantia depositada, pertencente à dita herança indivisa.
Assim, na execução desse propósito, a arguida, entre o dia 11 de Fevereiro de 1998 e 15 de Outubro de 2002, mais concretamente nas datas que constam de fls. 185 a 187 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, procedeu ao levantamento da totalidade da quantia depositada - 32.716 858$70.
Dessa quantia em dinheiro a arguida gastou com os encargos da herança indivisa uma quantia inferior a 3.750,00 euros.
A restante quantia em dinheiro, pertença da herança indivisa, em valor superior a 160.000,00 euros, foi gasta pela arguida em proveito próprio, que assim fez seus aqueles mais de 160.000,00 euros.
A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que enquanto cabeça-de-casal daquela herança indivisa só podia utilizar a supra mencionada quantia em dinheiro para prover aos encargos normais daquela herança.
A arguida sabia igualmente que aquela quantia, superior a € 160.000,00, que gastou em proveito próprio, não lhe pertencia, actuando com o propósito, concretizado, de fazer sua aquela quantia, bem sabendo que actuava contra a vontade dos herdeiros testamentários.
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Como acima se referiu está em causa no presente recurso, apenas, determinar se a quantia, superior a € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), reconhecidamente pertencente à herança indivisa, e de que a arguida reconhecidamente se apropriou, sabendo que pertencia à herança, utilizando-a em seu exclusivo proveito, constitui “bem alheio” para feito de crime de abuso de confiança.
No crime de abuso de confiança exige-se a inversão do título de posse ou de detenção da coisa apropriada: a coisa encontra-se confiada ao agente, com determinada finalidade específica e, em certa altura, passa a comportar-se como dono, praticando sobre ela actos de disposição que apenas cabem ao titular do direito de propriedade, dispondo dela ou arrogando-se, por qualquer forma o respectivo, o direito de propriedade. O agente, mero detentor da coisa, passa a comportar-se em relação à mesma, como seu verdadeiro dono.
Como observa FIGUEIREDO DIAS (Comentário Conimbricence Ao Código Penal, p. 103 e p. 104, na anotação feita ao crime de abuso de confiança) “a apropriação traduz-se sempre, no contexto do crime de abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção (...) o agente que recebeu a coisa uti alieno, passa, em momento posterior, a comportar-se em relação a ela uti dominus. (...) Sob que forma deva concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que, como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se como perante a coisa como proprietário”.
O Código Penal vigente não prevê especificamente a hipótese de apropriação de bens comuns.
Na vigência do C. Penal de 1886 entendia-se que a subtracção, pelo comproprietário, de bem móvel comum, o fazia incorrer no crime de furto, sendo punido como abuso de confiança quando se encontrasse previamente em seu poder – cfr. Maia Gonçalves C. Penal Português (de 1886) Anotado, 5ª ed., 1980, p.709, citando a doutrina mais relevante e jurisprudência, uniformes, nesse sentido.
Na vigência do C. Penal de 1982, não tendo este diploma tomado posição diferente sobre a questão, não se vêm motivos apara alterar o referido entendimento.
Com efeito, afigura-se que, como decidiu o Ac.RC de 26.01.2000, proferido no Recurso 3050/99, acessível em www.dgsi.pt “coisas comuns não pertencem a cada um dos comproprietários, mas antes à totalidade dos consortes (art. 1403º do C. Civil), pelo que têm que considerar-se alheias”. No mesmo sentido cfr. Ac. R.L 15.06.90, processo 0006925; Ac.RP de 20.11.91, recurso 9140618, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
Como refere o digno recorrente, citando Figueiredo Dias, “Alheia á toda a coisa que, segundo o direito civil, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente”.
Coisa alheia, para efeito do crime de furto e de dano, aquela que não pertence ao agente ou que não lhe pertence em exclusivo – v. Luís Osório. Notas ao C. enal Português, IV, 376/377; Faria Costa e Costa Andrade, Cometário Conimbricence, II, 43 e 212/213.
Tal como defendem Simas Santos /Leal Henriques (C.P. Anotado, p. 426) a solução dependerá de cada situação concreta.
Tendo em atenção que a responsabilidade criminal exige, para além da verificação dos elementos do tipo objectivo, ainda a imputação da conduta ao agente a título doloso, que em alguns casos de comunhão será de difícil verificação.
Neste contexto tem decidido a jurisprudência, tendo em vista os bens comuns do casal que não se trata de “coisa alheia” para efeito do crime de furto (e por identidade de razão de abuso de confiança) – cfr., entre outros: Ac. STJ 03.07.1996 CJ/STJ tomo II/96, p,. 218; Ac. STJ de 09.12.1999, SASTJ n.º 36, p. 74; Ac. RP de 26.11.97, CJ tomo V/97, p.232; Ac RL de 07.05.97, processo 0005573, acedido em www.dgsi.pt.; Ac. RP de 16.03.2005, CJ tomo II/2005, p. 208.
Na verdade na sociedade conjugal importa estabelecer previamente quis os bens próprios de cada um dos cônjuges em função do regime de bens adoptado.
Sendo certo que qualquer dos cônjuges tem a administração dos bens comuns e, em determinados casos, até, a administração de bens próprios do outro cônjuge – designadamente os bens próprios do outro cônjuge que utilize como instrumento de trabalho, nos termos estabelecidos pelo artigo 1678º, al. e) do C. Civil.
E os bens comuns do casal não são objecto de um direito de compropriedade, mas antes de uma propriedade colectiva, a que os autores alemães, reconhecendo o seu carácter específico dão a designação de propriedade de mão comum – cfr. Antunes Varela, Direito da Família, ed. Petrony, 1982, p. 174.
Sendo certo ainda que na comunhão conjugal, enquanto permanece a indivisão, a utilização por parte de um dos cônjuges geralmente corresponde a utilização, por parte do outro, de outros bens comuns até ao momento de se efectivar a partilha. Pelo que dificilmente se pode estabelecer a verdadeira intenção de apropriação dolosa, em benefício exclusivo, apresentando-se geralmente como mera utilização em proveito exclusivo se e enquanto não se procede à partilha. No pressuposto de que os bens não desaparecem e o outro cônjuge tem também a posse de outros bens comuns.
No entanto a situação da herança indivisa reveste aspectos diferentes da comunhão do casamento.
Desde logo, a herança constitui “um estado de vinculação jurídica de uma universalidade jurídica de bens ou de um património autónomo” – cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, t. II, p. 12.
Património autónomo dotado, aliás, de personalidade judiciária, nos termos do art. 6º do C.P.C.
Existindo assim, diferentemente do que sucede com os bens do casal, uma nítida separação entre o património – autónomo - da herança e o dos herdeiros, que nunca detiveram a disponibilidade individual de qualquer bem da herança.
No caso em apreço é a própria arguida que admite que reconhece que se trata de dinheiro da herança e que se apropriou efectivamente, em seu proveito exclusivo, do dinheiro existente na consta da herança, dispondo dele, levantando-o da conta onde estava depositado por imposição do tribunal, despendendo-o ou gastando-o em seu benefício exclusivo, para fins que nada têm a ver com dívidas ou encargos da herança.
Aliás tratava-se de dinheiro cuja disponibilidade lhe foi conferida pelo tribunal, num determinado contexto e com determinada finalidade que não estava autorizada a ultrapassar ou ir além. Com efeito o tribunal autorizou-a – apenas – a levantar parte desse dinheiro estritamente necessária para saldar dívidas da herança, obrigando-a, aliás, a prestar contas, mensalmente, do dinheiro levantado para o efeito. O que sucedeu a requerimento da própria arguida.
Sendo evidente que arguida desrespeitou a decisão do tribunal, invertendo claramente o título de possa de que dispunha – dando-lhe destino diferente daquele com que lhe foi conferida a respectiva disponibilidade, que não o poder de disposição a seu favor ou proveito exclusivo. Com efeito foi-lhe facultada a movimentação do dinheiro única e exclusivamente para pagar encargos da herança, prestando contas, mensalmente, dos levantamentos efectuados para esse efeito. Mas, contra a decisão expressa do Tribunal e contra a vontade dos restantes herdeiros, apropriou-se da totalidade do dinheiro, fazendo-o seu, ao dispor dele para solver compromissos exclusivamente seus, em seu proveito exclusivo. Inverteu o título da posse sobre o dinheiro: incumbida de zelar pala sua manutenção e pagamento de despesas da herança, fê-lo reverter em seu único e exclusivo proveito.
Sendo certo que ele própria, embora reconhecendo não ser proprietária do dinheiro, por pertencente à herança, assume que o gastou em proveito próprio, ainda que dizendo que os outros herdeiros “poderão” ver o seu quinhão composto com outros bens – cuja existência não está demonstrada.
Mesmo tendo a qualidade de herdeira – e nos autos há notícia da pendência de uma acção judicial instaurada com a finalidade de ver reconhecido que a arguida não é herdeira da autora da herança - enquanto não se proceder à adjudicação de bens, cabe-lhe apenas o direito, em abstracto, a uma quota-parte da herança. Que não a este ou aquele bem específico que só virá a acontecer depois de compostos e adjudicados os quinhões.
E ainda que a apropriação da quantia em causa possa vir, no futuro, a não afectar a composição dos quinhões dos restantes herdeiros, tal não significa que ela se tenha apropriado do dinheiro da herança, ilegitimamente, invertendo sobre ele o título da posse.
Não é questionada, sequer, a verificação dos elementos do tipo subjectivo – consciência de que se tratava de bem da herança (tal como alegava no requerimento em que pediu ao tribunal autorização para movimentar o dinheiro) e que a arguida actuou querendo fazê-lo coisa sua, como efectivamente fez, dispondo dele.
Temos assim que estão verificados os pressupostos do crime por que a arguida vem acusada: a inversão do título de posse sobre o dinheiro da herança, sabendo a arguida que o dinheiro lhe não pertencia e actuava contra a vontade dos herdeiros e a decisão do tribunal. Pelo que se impõe a pronúncia da arguida nos termos definidos pela acusação.
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Em face da apreciação acabada de efectuar, fica prejudicada a apreciação do requerimento do assistente na parte em que se afasta do recurso interposto pelo MºPº (pronúncia da arguida pelo crime de burla).
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Nos termos expostos acorda-se em conceder provimento ao recurso interposto pelo MºPº (e pela assistente na parte em que o acompanha), revogando-se o despacho recorrido e determinando a sua substituição por outro que pronuncie a arguida nos termos da acusação pública. --------
Sem custas (arguida não respondeu).