Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
333/11.0TBPCV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO
INCUMPRIMENTO
DEVER JURÍDICO
Data do Acordão: 11/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PENACOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 186º, Nº 1, AL. D) DO CIRE
Sumário: I – Integra o fundamento de qualificação da insolvência como culposa, previsto na al. d) do nº 1 do artº 186º do CIRE, a venda, ao seu pai, pelo sócio único e gerente da devedora, escassos dois meses e meio antes da insolvência ser requerida por um credor, pelo preço global de € 10.032,66, de todo o activo, com o valor contabilístico de € 49.331,04.

II – Não cumpriu o dever de apresentação à insolvência a devedora que encerrou a única loja/estabelecimento comercial em Fevereiro de 2010, por não conseguir suportar o valor mensal das rendas com os proveitos de dela auferia; guardou as mercadorias em armazém, alienando-as em Abril de 2011; e foi declarada insolvente por sentença de 22/07/2011, em processo instaurado por um credor em 17/06/2011.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

Na sequência da declaração de insolvência de “C…- Unipessoal, Lda.”[1], foi pelo Administrador da insolvência apresentado o parecer a que se refere o artº 188º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[2], alegando factos que a seu ver justificam a qualificação – que propôs – da insolvência como culposa e indicando M… como a pessoa que deve ser afectada pela qualificação.

Também o Ex.mo Magistrado do Ministério Público se pronunciou (art. 188º, nº3 do C.I.R.E.), concordando com o parecer do Administrador da Insolvência e promovendo a qualificação desta como culposa.

Cumprido o disposto no artº 188º, nº 5, apenas insolvente deduziu oposição, contrariando ou justificando a factualidade invocada pelo Administrador e pelo Ministério Público e defendendo a qualificação da insolvência como fortuita.

Saneada e condensada a causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Foi depois emitida sentença, cujo dispositivo se transcreve:

“Assim, de acordo com o disposto nos artºs 185º, 186º, 189º e 191º, do C.I.R.E., qualifico a presente insolvência como culposa e, em consequência, decide-se:

a) Indicar M… como a pessoa afectada pela qualificação;

b) Declarar M… inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 3 (três) anos.

Registe e notifique a presente sentença.

Custas a cargo do requerido M… – artº 446°, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artº 17º do CIRE.”

Inconformada, a insolvente recorreu, encerrando a alegação de recurso que apresentou com as conclusões seguintes:

O Ministério Público respondeu, defendendo a manutenção do julgado.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:

         a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

         b) (In)existência de fundamentos para a qualificação da insolvência como culposa.

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.1.1. Factualidade considerada provada pela 1ª instância:

         2.1.3. Alteração da decisão sobre a matéria de facto

         2.2. De direito

         2.2.1. (In)existência de fundamentos para a qualificação da insolvência como culposa

         A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita (artº 185º), indicando a lei quando é culposa (artº 186º) e sendo fortuita, por exclusão de partes, nos casos em que não seja culposa.

         E a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (artº 186º, nº 1).

         São, pois, requisitos ou pressupostos para a qualificação da insolvência como culposa: (1) que tenha havido uma conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito; (2) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; (3) que essa conduta tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência; (4) e que tal conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave[3].

Mas, sendo a definição referida algo vaga, o legislador quis densificá-la ou concretizá-la, estabelecendo nas nove alíneas do nº 2 do artº 186º situações que constituem presunções juris et de jure, ou seja, inilidíveis, de insolvência culposa e nas duas alíneas do nº 3 do mesmo preceito legal presunções juris tantum, isto é, susceptíveis de ser ilididas, de existência de culpa grave.

         Ou seja, enquanto a verificação de qualquer das previsões das diversas alíneas do nº 2 faz presumir de forma inilidível quer o nexo de causalidade entre a conduta em questão e a criação ou agravamento da situação de insolvência, quer a existência de dolo ou culpa grave, levando inexoravelmente à qualificação da insolvência como culposa, a verificação das previsões das alíneas do nº 3 apenas conduz à presunção ilidível da existência de culpa grave, só fundamentando a qualificação da insolvência como culposa se a presunção não for ilidida e se for feita prova do nexo de causalidade atrás referido.

         No caso que nos ocupa a insolvência foi qualificada de culposa por se ter entendido que se verificavam as previsões da al. d) do nº 2 e da al. a) do nº 3 do artº 186º.

         A recorrente discorda.

         Vejamos.

         De acordo com a al. d) do nº 2 do artº 186º, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham … (d) disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.

Encontra-se provado que a insolvente encerrou a loja/estabelecimento comercial que explorava em Coimbra, em Fevereiro de 2010, por não conseguir suportar o valor mensal das rendas com os proveitos que dela auferia; que as mercadorias e outros bens ficaram guardados em armazém, desde Fevereiro de 2010 até Abril de 2011, data em que o sócio gerente conseguiu alienar as mercadorias; que os artigos de moda, adquiridos no ano de 2009 e anteriores, foram vendidos, na totalidade e em pacote, pelo valor global de € 4.179,00; o equipamento de transporte foi vendido em 01/04/2011, pelo valor de € 5.609,76; o equipamento informático foi vendido pelo preço de € 243,90.

Mais está provado que, de acordo com o relatório efectuado à contabilidade da insolvente, em 2011 foram vendidos e abatidos bens arrolados no inventário, com um valor contabilístico de € 49.331,04.

Ou seja, os bens tinham o valor contabilístico de € 49.331,04 e foram alienados pelo sócio único e gerente da insolvente, M…, pelo preço global de € 10.032,66.

Diz a recorrente que o valor real do activo era muito inferior ao seu valor contabilístico. Mas, embora o tenha tentado, a recorrente não logrou fazer prova desse facto. E o ónus era seu.

Aliás, que o valor contabilístico não diferiria muito do real resulta confirmado pelo que a recorrente alega nas conclusões 14ª e 15ª, ao dizer que o Sr. ... – pai do sócio único da recorrente, realce-se – era credor da insolvente de um valor muito superior a € 50.000,00, uma vez que fez empréstimos à sociedade, pagou facturas de mercadorias destinadas à actividade comercial da sociedade e garantiu, em nome pessoal, dívidas da sociedade; e que no momento da aquisição do activo, o Sr. ... e a Recorrente fizeram um acordo, segundo o qual este ficava com o activo existente, pagava € 10.032,66 e deixava de ser credor da sociedade, perdoando a dívida.

Com efeito, dada a situação em que a “C…” se encontrava, mal se compreenderia que, sem disso extrair qualquer vantagem, o Sr. …, em vez de aconselhar o filho a requerer a insolvência, nela reclamando oportunamente os seus créditos, tenha adquirido, ao preço real – ou até, na sua versão, a preço acima do real – o activo da sociedade, “perdoando” a diferença, várias vezes superior.

É manifesto, portanto, que o M…, na sua qualidade de sócio e gerente da devedora “C…”, dispôs dos bens dela em proveito pessoal do seu pai, ...

O nexo de causalidade entre a disposição dos bens e o agravamento da insolvência, para além de ressaltar por si próprio, dispensando justificação, integra a presunção juris et de jure com que o legislador dotou todas as situações previstas no nº 2 do artº 186º.

         Outro dos fundamentos invocados na sentença sob recurso para a qualificação da insolvência como culposa foi a omissão por parte da insolvente do dever de requerer a declaração de insolvência, o que constitui, nos termos do artº 186º, nº 3, al. a), presunção ilidível – mas, segundo a sentença, não ilidida – de culpa grave.

         A aludida omissão constitui presunção (ilidível) de culpa grave, mas não dispensa a prova do nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de apresentação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (nº 1 do artº 186º)[4].

         Comecemos, pois, por verificar se houve ou não incumprimento do questionado dever.

Havendo-o, passará a apurar-se da ilisão ou não da presunção de culpa grave.

E, não se mostrando ilidida a presunção, da existência ou não do falado nexo de causalidade.

         A situação de insolvência ocorre quando o devedor se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, nº 1).

         O devedor – exceptuando se for uma pessoa singular que não seja titular de uma empresa na data em que se verifique aquela impossibilidade, hipótese que, in casu, está arredada – deve cumprir o dever de apresentação dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da sua situação de insolvência, ou à data em que devesse conhecê-la, presumindo-se, de forma inilidível, o conhecimento, no caso de devedor titular de empresa, decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº 1 do artº 20º[5] (artº 18º).

Da factualidade provada consta que a insolvente encerrou a loja/estabelecimento comercial que explorava em Coimbra, em Fevereiro de 2010, por não conseguir suportar o valor mensal das rendas com os proveitos que dela auferia; as mercadorias e outros bens ficaram guardadas em armazém, desde Fevereiro de 2010 até Abril de 2011, data em que o sócio gerente conseguiu alienar as mercadorias; a insolvência foi requerida, em 17/06/2011, por “F…, S.A.” e declarada por sentença datada de 22/07/2011.

         Em Fevereiro de 2010, quando encerrou a loja/estabelecimento comercial por não conseguir suportar o valor mensal das rendas com os proveitos que dela auferia e ao guardar as mercadorias e outros bens em armazém, o M…, como sócio único e gerente, não podia desconhecer a situação económica global da “C…”, isto é, tinha todos os elementos para saber da situação da insolvência da sociedade [cfr. artº 20º, nº 1, al. g), iv)].

         Tinha, pois, o dever de requerer a declaração de insolvência e não o cumpriu, deixando degradar – ou degradando ele próprio – a situação até que um credor a requereu em 17/06/2011.

         Presume-se, portanto culpa grave da parte do administrador da insolvente, sendo que nenhuma factualidade foi apurada que aponte para a ilisão de tal presunção.

         E o incumprimento do aludido dever por parte do M… agravou a situação de insolvência da “C…”, como decorre cristalinamente da circunstância de, entretanto, ter disposto em proveito pessoal de um terceiro, por sinal seu pai, de todo o activo da insolvente, deixando os credores sem qualquer possibilidade de obter pagamento, ainda que parcial, dos seus créditos.

         Ou seja, caso a “C…” se tivesse apresentado à insolvência dentro do prazo legal, tê-lo-ia feito ainda titular de algum activo; tendo esperado pela iniciativa de um credor, ganhou tempo para, entretanto, alienar todo o património, deixando os credores totalmente desamparados.   

         É, pois, inquestionável o nexo de causalidade.

         Entende-se, portanto, como decorre de quanto se disse, que bem andou a primeira instância ao qualificar a insolvência como culposa.

         Sumário (artº 713º, nº 7 do CPC):

         I – Integra o fundamento de qualificação da insolvência como culposa, previsto na al. d) do nº 1 do artº 186º do CIRE, a venda, ao seu pai, pelo sócio único e gerente da devedora, escassos dois meses e meio antes da insolvência ser requerida por um credor, pelo preço global de € 10.032,66, de todo o activo, com o valor contabilístico de € 49.331,04.

         II – Não cumpriu o dever de apresentação à insolvência a devedora que encerrou a única loja/estabelecimento comercial em Fevereiro de 2010, por não conseguir suportar o valor mensal das rendas com os proveitos de dela auferia; guardou as mercadorias em armazém, alienando-as em Abril de 2011; e foi declarada insolvente por sentença de 22/07/2011, em processo instaurado por um credor em 17/06/2011.

 

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo da recorrente.

                                                       

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo


[1] Adiante designada, por facilidade, apenas pelo nome de “C…”.
[2] Aprovado pela Lei nº 168/99, de 18/09. São dele todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[3] Cfr. Acórdãos desta Relação de 21/04/2009 (Processo nº 369/07.6TBCDN-B.C1, relatado pela Des. Sílvia Pires) e de 19/01/2010 (Processo nº 132/08.7TBOFR-E.C1, relatado pelo Des. Isaías Pádua), em www.dgsi.pt.
[4] Ac. Rel. Porto de 13/09/2007 (Proc. 0731516, relatado pelo Des. José Ferraz); Ac. Rel. Guimarães de 20/09/2007 (Proc. 1728/07-2, relatado pelo Des. António Gonçalves); e Ac. Rel. Évora de 17/04/2008 (Proc. 2773/07-2, relatado pelo Des. Sílvio Sousa), todos in www.dgsi.pt.
[5] São elas: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência.