Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
189/08.0TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO COSTA
Descritores: ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
FORÇA MAIOR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 334, 1072, 1083 DO CC, 64 DO RAU, 59 DO NRAU ( LEI Nº6/2006 DE 27/2)
Sumário: I - Tendo o contrato de arrendamento ajuizado sido celebrado antes de 18 de Junho de 1988, aplicam-se-lhe as normas instituídas pela Lei nº 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por força do preceituado no respectivo artº 59º, nº 1;

II - O fundamento da resolução do contrato de arrendamento para habitação, constante da al. d) do artº 1083º, segundo a redacção daquela Lei nº 6/2006, consiste no não uso do locado por mais de um ano consecutivo;

III - Caso de força maior, para efeitos de tornar lícito o não uso do locado pelo arrendatário, é o evento natural ou de acção humana de terceiro (com exclusão, pois, de conduta do locador, do locatário ou de pessoas com este relacionadas) que, embora pudesse prevenir-se, não poderia ser evitado;

IV - Não pode configurar-se como um caso de força maior a circunstância de o telhado do locado ter abatido, após a data em que o Réu e a família deixaram de aí habitar;

V - Não pode ter-se como integradora de abuso de direito a conduta do senhorio que, decorridos cerca de dez anos após o inquilino ter deixado de habitar no locado, vem pedir a resolução do contrato de arrendamento com esse fundamento.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

RELATÓRIO

V (…) intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso, a presente acção com processo sumário contra:

- J (…), pedindo que seja declarado resolvido o contrato de arrendamento existente entre as partes e o Réu condenado a entregar-lhe o locado, livre de pessoas e bens, bem como a pagar as rendas que se vencerem durante a pendência da acção e uma indemnização igual ao valor da renda, desde o termo do prazo para contestar até à entrega efectiva da habitação.

Alegou, para tanto, em resumo, que é dono do imóvel sito na Rua (…) em (…), ..., o qual foi dado de arrendamento ao Réu, para habitação, há cerca de vinte anos, sendo que este não reside em permanência no locado desde 1998.

Contestou o Réu, arguindo a sua ilegitimidade, por se encontrar desacompanhado da sua mulher; em via de impugnação, alegou que apenas deixou de residir no locado devido à degradação deste e à recusa do senhorio em fazer obras de conservação, não obstante ter sido instado para tal pelo Réu; a sua saída do locado foi provisória, uma vez que esperava que o senhorio realizasse as obras; termina, por isso, pedindo a improcedência da acção.

Na resposta à contestação, o Autor requereu a intervenção principal provocada da mulher do Réu, M (…), mais alegando que a falta de condições no locado invocadas pelo Réu já existiam aquando da celebração do contrato de arrendamento e que este apenas por uma vez solicitou a realização de obras.

Foi admitida a intervenção principal provocada de M (…), a qual declarou fazer seus os articulados do Réu.

Proferiu-se o despacho saneador, consignaram-se os factos tidos como assentes e organizou-se a base instrutória, sem reclamações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual se respondeu à matéria da base instrutória, também sem reclamações.

Finalmente, verteu-se nos autos sentença que, julgando a acção totalmente procedente, decidiu:

- declarar resolvido o contrato de arrendamento existente entre o A. e o R. e condenar os RR. a entregar àquele o locado, livre de pessoas e bens;

- condenar os RR. a pagar ao A. as rendas que se vencerem durante a pendência da acção e uma indemnização igual ao valor da renda, desde o termo do prazo para contestar até à entrega efectiva da habitação.

Inconformados com o assim decidido, interpuseram o Réu e a chamada recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação e efeito suspensivo.

Alegaram, oportunamente, os apelantes, os quais finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª - “O tribunal “a quo” ao elaborar a sentença cometeu um manifesto erro de julgamento, traduzido numa clara oposição entre os fundamentos e a decisão, pelo que a sentença é nula nos termos do art. 668°, n°1, al. c) do CPC. Com efeito,

2ª - Uma adequada e correcta interpretação dos factos considerados corno provados na sentença – pontos 1 a 22, que se reproduzem – em conjugação com a lei aplicável, conduz à improcedência total da acção e à procedência da excepção de não cumprimento do contrato, invocada na contestação;

3ª - Os factos provados – as infiltrações e degradação do locado, não tendo o este as mínimas condições de habitabilidade por culpa do locador, – são e devem ser enquadráveis no disposto nos artigos 1031°, 1.032° e 1.072, n°2, al. e) do CC.;

4ª - Ou seja, a sua não utilização, pelos Réus há mais de um ano, por essa razão, constitui excepção do não cumprimento do contrato, e não fundamenta a resolução do contrato de arrendamento prevista nos arts. 1.072°, n°1 e 1083°, n°2, al. d) do CC;

5ª - Assim, a sentença recorrida é nula por violação do disposto nos arts. 659°, n°2 e 668°, n°2, al. c) do CPC, pelo que deverá ser revogada e, consequentemente, deverão V. Exas. nos termos do art. 712° daquele diploma julgar procedente o recurso e, portanto, improcedente a acção;

Sem prescindir

6ª - A decisão da matéria de facto, no que respeita às respostas dadas aos pontos 8., 9. e 10. da base instrutória, não está fundamentada, já que não motivou tal decisão - motivação que não pode ser meramente formal, antes devendo expressar as verdadeiras razões que conduziram à decisão -, e nem procedeu à análise crítica das provas, com a especificação dos fundamentos considerados decisivos para a formação da sua convicção;

7ª - O que impossibilita a apreensão e o compreensão do processo de raciocínio lógico que conduziu à concreta decisão da matéria de facto e, por conseguinte, que, a partir desses factos levou àquela precisa sentença;

8ª - Com efeito, o Tribunal a quo não deu cumprimento, como se lhe impunha, ao disposto no n°2 do art. 653° do CPC, uma vez que,

9ª - O Tribunal recorrido, ao reproduzir a fundamentação para todos os depoimentos prestados, não fez referência às concretas e individuais razões de ciência de cada uma das testemunhas;

10ª - Acresce que o texto que o Tribunal usou para se pronunciar relativamente a cada um dos depoimentos valorados é exactamente o mesmo (ipsis verbis), o que

11ª - Deixa a dúvida de que todos aqueles depoimentos tiveram igual valor e igual peso para a resposta dada a cada um dos quesitos cuja apreciação lhes foi feita corresponder, ou então que o próprio Tribunal não precisou em que medida os valorou;

12ª - Por outro lado, o Tribunal não cumpriou, igualmente, o disposto no referido art. 653°, n°2 do CPC, ao não fundamentar as respostas aos factos dados como não provados, limitando-se, antes, a proferir a afirmação genérica, de, quanto a eles “(…) não ter sido produzida qualquer prova ou, no mais, de a prova produzida ter sido contrariada pela demais prova”;

13ª - Assim, de acordo com os arts. 653°, n°2 e 712°, n°5 do CPC, e uma vez que está em causa a decisão relativa a três (pontos 8, 9 e 10) factos essenciais para o julgamento da causa, que não foi devidamente fundamentada, deverão V. Exas. ordenar a repetição da produção da prova.

Sem prescindir

14ª - O Tribunal não confrontou toda a prova produzida, o que conduziu a uma contradição entre os pontos assentes D., H., I. E J., e as respostas dadas aos pontos 8., 9. e 10 da base instrutória;

15ª - Da conjugação dos factos provados e assentes, resulta pacífico, salvo melhor opinião, que a resposta ao ponto 9. tinha que ser diversa, no sentido de “provado”, sob pena de se verificar a assinalada colisão/contradição. Isto porque,

16ª - Foi “devido também à recusa do senhorio – (…), pai do A. – em fazer obras na mencionada casa” que o recorrente e a família deixaram de habitar o locado, e o estado de degradação deste decorre directa e inequivocamente da recusa do senhorio em fazer obras e reparações;

17ª - Aquela resposta contraditória – e não explicada na motivação – levou ainda a que, em sede de decisão final, julgasse procedente a acção, condenando os ora recorrentes a entregar o locado, livre de pessoas e bens;

18ª - Deste modo, ao responder como fez, o Tribunal a quo entrou em contradição, pelo que, ao abrigo do disposto nos arts. 653, n°2 e 712°, n°s 3, 4 e 5 do CPC, deverá ser alterada a resposta ao quesito 9°, que deverá ser considerado provado;

Sem prescindir ainda

19ª - O Tribunal, na elaboração da sentença, apenas valorizou a data constante do documento de fls. 39 – carta enviada pelo R. ao senhorio em 31.07.1996 –, e não o seu teor que, aliás, foi objecto de confissão, por parte do A., e foi ainda levado às als. J. e K. dos factos assentes, em violação do disposto no art. 65 9°, n°3 do CPC. o que determina a nulidade da senteça, nos termos das als. b) e d) do art. 668°, n°1 do CPC;

20ª - E enquanto o Tribunal a quo entende, na sentença, por um lado, a posição de senhorio, e a constatação que faz relativamente às desvantagens ou injustiças a que estão sujeitos. Todavia, não atendeu ao caso concreto, nomeadamente de que o senhorio arrendou um locado que não reunia as condições exigíveis para habitação;

21ª - Por outro lado, salvo melhor opinião, não atendeu à posição do arrendatário com poucas ou nenhumas posses, que arrenda para habitação um espaço que não tem condições;

22ª - Ao contrário do que é referido na sentença, os RR. não poderiam ter lançado mão do mecanismo de obras coercivas (DL 157/2006, de 8 de Agosto), o que está previsto apenas desde 2006, quando as obras solicitadas eram necessárias, como se viu, desde 1996, e o telhado abateu em 1998;

23ª - No que concerne à excepção do não cumprimento do contrato, invocada pelos RR. na sua contestação, o Tribunal não a apreciou ou, se o fez, fê-lo de forma pouco profunda;

24ª - Na verdade, não só dos factos dados como assentes nas als. J. e K., mas também a das respostas aos quesitos 8°, 9º (cuja alteração deste último se requereu) e 10º, resulta assente que os recorrentes deixaram de usar o locado - há mais de uma ano, é certo - mas, em consequência de infiltrações, pelo mau estado do telhado, e do estado geral de degradação do locado;

25ª - Isto, porque o senhorio se recusou injustificadamente a fazer obras e reparações no locado, violando as obrigações contratuais previstas nos arts. 1031º e 1032° do CC, pelo que não há lugar à resolução do contrato, conforme pretendido, por força do disposto nos arts. 1083°, n°2, al. d) desse diploma, precisamente por, no caso em apreço, se verificara a execepção aí prevista, ex vi art. 1072°, n°2, al. a). Ou seja, não há lugar à resolução do contrato, por facto imputável exclusivamente ao locador;

26ª - No presente caso, não é, de modo algum, aceitável que o senhorio, enquanto único responsável pela não realização das obras, que determinou o abandono temporário do imóvel por parte dos RR., possa vir alegar este abandono para exigir o despejo;

27ª - Tal situação consubstancia um caso de abuso de direito – de exercício abusivo do direito de resolução do contrato, por excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé – já que se verifica um caso de força maior justificativo do abandono temporário do imóvel;

28ª - Assim, a sentença é nula, nos termos do art. 659°, n°2, e 668°, n°2, als. c) e d) do CPC, pelo que deverá ser revogada, devendo V. Exas., atento o disposto no art. 712° do CPC, julgar procedente o recurso e, portanto, improcedente a acção;

29ª - Por último, ao contrário do referido na sentença, os RR. não têm qualquer renda em dívida ao A., face ao que consta dos pontos 6. e 16. dos factos provados naquela decisão, já que, não só procederam aos seus depósitos, mas também efectuaram o depósito da renda refente ao ano de 2008, cfr. consta do doc. 7 junto com a valoração;

30ª - Por conseguinte, nesta parte, a sentença violou o disposto nos arts. 14°, nos 2 e 3 do NRAU, sendo nula, atento o disposto no art°. 668°, n°1, al. c), por estar em contradição com os citados factos provados, e bem assim com o referido documento;

31ª - A decisão sobre a matéria de facto violou o estatuído no art. 653°, n°2 do CPC, e a sentença recorrida violou, salvo melhor opinião, as normas constantes dos arts. 1031°, 1032°, 1071º, l072°e 1083° do CC, art. 14°, n°s2 e 3 do NRAU, e 659°, n°2 do CPC, pelo que deverá ser revogada, com as citadas consequências”.

Contra-alegou o apelado, pugnando pela manutenção do julgado.


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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos artºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C. de Proc. Civil, na versão introduzida pelo Dec. Lei nº 303/2007, de 24/8.

De acordo com as apresentadas conclusões, as questões a decidir por este Tribunal são as de saber:

- Se a sentença recorrida enferma das apontadas nulidades;

- Se existe falta de fundamentação da decisão da matéria de facto;

- Se existe contradição nos factos considerados provados;

- Se existe fundamento para decretar a resolução do contrato de arrendamento; e

- Se existe abuso de direito na actuação do apelado.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre decidir.


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OS FACTOS

Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

1º - O Autor é dono e legítimo proprietário do imóvel sito na Rua (…), freguesia de (…) ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 00004/140685 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 134;

2º - O Autor adquiriu o imóvel supra identificado por doação de seu pai, (…), no ano de 1997;

3º - Os pais do Autor adquiriram aquele prédio a (…) e mulher, por escritura pública de 9/09/1985;

4º - O pai do Autor e o anterior proprietário da casa, (…) não fizeram qualquer tipo de obras ou reparações nesta;

5º - O Réu encontra-se a residir num imóvel sito no (…) (…) ...;

6º - Desde 1990 que os senhorios se recusam a receber as rendas face ao que o Réu e esposa procederam ao depósito e às notificações aos senhorios das rendas devidas na Caixa Geral de Depósitos;

7º - No momento da celebração do contrato de arrendamento o locado não dispunha de instalação eléctrica nem de casa de banho;

8º - O Réu e a família deixaram de habitar no locado em meados do ano de 1998;

9º - O Autor não fez qualquer reparação na casa mencionada em 1º;

10º - O Réu escreveu ao referido senhorio, (…), em 31/07/1996, uma carta registada na qual lhe comunicou que “o telhado da casa (…) precisa de ser reparado com urgência (…) já que, quando chove, há bastantes infiltrações de água, que dificultam ou, mesmo impossibilitam a normal utilização do locado”;

11º - Na carta mencionada em 10º, o Réu solicitou ao Autor que procedesse às referidas obras até final do mês de Agosto daquele ano de 1996;

12º - (…) deu o imóvel referido em 1º de arrendamento ao Réu há pelo menos vinte anos;

13º - O contrato foi celebrado verbalmente;

14º - O local arrendado destinou-se à habitação do Réu;

15º - O contrato foi celebrado sem prazo;

16º - A renda fixada inicialmente – e que nunca sofreu alteração – era no valor de 300$00/ano (1,50€);

17º - O Réu e a família deixaram de habitar no locado em meados do ano de 1998 devido à degradação deste;

18º - O telhado do locado abateu após a data referida em 8º;

19º - O Réu era um pequeno agricultor;

20º - Tinha, na altura, sessenta anos de idade e a sua esposa sessenta e dois anos;

21º - E uma filha menor de idade;

22º - O Réu deixou na casa mencionada em 1º algumas das suas coisas.


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O DIREITO

1 – As arguidas nulidades da sentença

Os apelantes enxergam nulidades a esmo na sentença recorrida. Segundo referem, a sentença é nula por existir oposição entre os fundamentos e a decisão – o que integraria a nulidade da al. c); por a sentença ter valorizado apenas a data constante do documento de fls. 38 e não o respectivo teor – o que integraria a nulidade das als. b) e d); por a posição do senhorio configurar um caso de abuso de direito – o que integraria a nulidade das als. c) e d); por, ao invés do referido na sentença, os apelantes não terem qualquer renda em dívida – o que integraria a nulidade da al. c), todas pertencentes ao nº 1 do artº 668º do C. de Proc. Civil.
Confunde-se, amiúde, nulidades da sentença com erros de julgamento, que são coisas totalmente diversas. Os próprios apelantes começam por dizer (vide conclusão 1ª) que a sentença cometeu erro de julgamento, mas traduzido numa clara oposição entre os fundamentos e a decisão. O que eles querem, no fundo, dizer é que a sentença errou no julgamento. Mas daí partem para arguir toda uma série de nulidades da sentença que, na realidade, não ocorrem. Vejamos.
Dispõe o artº 208º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei”.

Por sua vez, preceitua o artº 158º do C. de Proc. Civil:

1 – As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição.

A necessidade de fundamentação prende-se com a própria garantia do direito ao recurso e tem a ver com a legitimação da decisão judicial em si mesma[1].

O artº 668º, n.º 1, al. b), do C. de Proc. Civil, diz ser nula a sentença “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

O Prof. Alberto dos Reis[2] justifica a razão de ser deste preceito com uma razão de ordem substancial e com razões de ordem prática. A sentença (razão substancial) deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação do juiz; ao comando geral e abstracto da lei o magistrado substitui um comando particular e concreto. Mas este comando não se pode gerar arbitrariamente; porque o juiz não tem, em princípio, o poder de ditar normas de conduta, de impor a sua vontade às vontades individuais que estão em conflito, porque a sua atribuição é unicamente a de extrair da norma formulada pelo legislador a disciplina que se ajusta ao caso sujeito à sua decisão, cumpre-lhe demonstrar que a solução dada ao caso legal é justa, ou, por outras palavras, que é a emanação correcta da vontade da lei.

Por outro lado, (razões práticas) as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admite recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso.

Mas há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. Com efeito, o que a lei considera nulidade é tão somente a falta absoluta de motivação[3]. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.

Ora, é por demais evidente que a sentença recorrida se mostra fundamentada, tanto de facto como de direito.

De acordo com o disposto na al. c) do nº 1 do mesmo artº 668º, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Segundo o acórdão da Relação do Porto de 13/11/74[4], apenas ocorre a nulidade da sentença prevista na citada al. c), quando os fundamentos invocados pelo juiz deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao que vier expresso na sentença.

Por outras palavras, como ensinava o Prof. Alberto dos Reis[5], ocorre esta nulidade quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto”.

Ora, salvo o devido respeito, não vemos que os fundamentos da sentença, tanto de facto como de direito, estejam em contradição com a respectiva decisão. Ao invés, os fundamentos e a decisão da sentença recorrida estão em inteira sintonia, sendo certo até que tais fundamentos e decisão, como adiante se verá, colhem o nosso inteiro apoio.

Segundo prescreve o al. d) do citado art.º 668.º, “é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

A primeira parte deste comando legal refere-se, como facilmente se depreende dos termos legais, à omissão de pronúncia e a segunda parte ao excesso de pronúncia.

A omissão de pronúncia traduz-se no incumprimento, por parte do juiz, do dever prescrito no n.º 2 do artº 660.º do referido código, nos termos do qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Por sua vez, o excesso de pronúncia ocorre quando o juiz se ocupa de questões que não foram suscitadas pelas partes, salvo se a lei lho permitir ou se essas questões forem de conhecimento oficioso (v. cit. artº 660.º, n.º 2).

Como escreveu Abílio Neto[6], aquela norma suscita, de há muito, o problema de saber qual o sentido exacto da expressão «questões» ali empregue, o qual é comummente resolvido através do recurso ao ensinamento clássico de Alberto dos Reis[7] que escreve: «… assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (…), também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado».

No âmbito lógico deste raciocínio, doutrina e jurisprudência distinguem, por um lado, «questões», e, por outro, «razões» ou «argumentos», e concluem que só a falta de apreciação das «questões» integra a nulidade prevista no aludido normativo, mas já não a mera falta de discussão das «razões» ou «argumentos» invocados para concluir sobre as questões[8].

Salvo sempre o devido respeito, a sentença recorrida não deixou de apreciar nenhuma das questões que ao tribunal foram submetidas pelas partes nem tão pouco conheceu de qualquer questão por elas não suscitada e que lhe fosse vedado conhecer.

A sentença debruçou-se sobre os fundamentos da acção decidiu em conformidade com a factualidade que foi dada como provada. Não extravasou os limites do que lhe era dado conhecer nem tão pouco deixou alguma questão, no sentido supra explicitado, por apreciar e decidir.

Não enferma, pois, a sentença recorrida das apontadas nulidades.


…......


2 – A falta de fundamentação das respostas aos quesitos 8º, 9º e 10º da base instrutória

No entender dos apelantes, as respostas dadas a estes quesitos da base instrutória não estão fundamentadas.

Mas, ressalvado o devido respeito, não é como os apelantes afirmam. Cumpre, desde logo, advertir que os apelantes nenhuma reclamação apresentaram, oportunamente, contra a decisão da matéria de facto.

Nos termos do art.º 653º, nº 2, do C. de Proc. Civil, “a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador”.

Por sua vez, o art.º 712.º, n.º 5, do mesmo código, dispõe que, se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção da prova, quando necessário, sendo impossível obter a fundamentação com os mesmo juízes ou repetir a produção da prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade”.

A falta de fundamentação das respostas aos quesitos da base instrutória não conduz, pois, à nulidade da sentença subsequente àquelas respostas nem tão pouco à anulação da decisão sobre a matéria de facto. Só quando essa fundamentação falta em relação a algum facto considerado essencial para o julgamento da causa é que a Relação, a requerimento da parte, pode determinar que o tribunal de 1.ª instância proceda à respectiva fundamentação.

No caso presente, os apelantes não formularam esse requerimento nas conclusões da sua alegação recursiva, limitando-se a arguir a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, não só em relação às respostas aos quesitos 8º, 9º e 10º, mas também em relação aos demais factos dados como não provados. Com essa pretensa falta de fundamentação pretendem os apelantes que esta Relação ordene a “repetição da produção da prova” (vide conclusão 13ª), o que se traduziria numa anulação do efectuado julgamento.

No caso presente, não existe, de modo algum, falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, como se alcança da leitura do despacho de fls. 144 e 145. Nesse despacho, o Tribunal “a quo” fundamentou adequadamente as respostas dadas a todos os quesitos, fazendo concreta referência às testemunhas em que se baseou a resposta positiva aos quesitos 8º e 10º. Quanto à resposta negativa ao quesito 9º e aos demais que obtiveram resposta semelhante, o despacho de fundamentação justifica convenientemente a resposta que obtiveram.

Improcede, pois, esta crítica dos apelantes.


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3 – A contradição da matéria de facto

Defendem os apelantes que existe contradição entre os factos dados como assentes nas alíneas D), H) I) e J) da matéria dada como assente e as respostas dadas aos quesitos 8º, 9º e 10º da base instrutória.

Para melhor se aquilatar da eventual existência de tal contradição, transcrevem-se aqueles factos e estes quesitos, com a correspondente resposta.

D. O pai do A. e o anterior proprietário da casa, (…), não fizeram qualquer tipo de obras ou reparações nesta;

H. O R. e a família deixaram de habitar no locado em meados do ano de 1998;

I. O A. não fez qualquer reparação na casa mencionada em A);

J. O Réu escreveu ao referido senhorio, (…), em 31/07/1996, uma carta registada na qual lhe comunicou que “o telhado da casa (…) precisa de ser reparado com urgência (…) já que, quando chove, há bastantes infiltrações de água, que dificultam ou, mesmo impossibilitam a normal utilização do locado”;

8º - O Réu e a família deixou de habitar no locado em meados do ano de 1998 devido à degradação deste?

Resposta: Provado.

9º - E devido também à recusa do senhorio (…), pai do A. – em fazer obras na mencionada casa?

Resposta: Não provado.

10º - O telhado do locado abateu?

Resposta: Provado com o esclarecimento de que o telhado abateu após a data referida em H).

Os apelantes sustentam a invocada contradição na resposta negativa dada ao quesito 9º, que assim deveria ser alterada para «provado». Ou seja, com base numa apontada contradição, mais não pretendem os apelantes do que a alteração da resposta a um quesito (9º).

Mas a verdade é que não se descortina nenhuma contradição entre a matéria das referidas alíneas e as respostas aos quesitos 8º e 10º. E não se vê como possa existir contradição alguma entre um facto dado como provado e um outro que foi dado como «não provado».

Pretendendo, no fundo, os apelantes ver alterada a resposta ao quesito 9º da base instrutória, é patente que a sua pretensão está votada ao fracasso. Desde logo, os apelantes não deram cumprimento ao preceituado no artº 685º-B do C. de Proc. Civil, o que é motivo de rejeição do recurso quanto à pretendida alteração.

Além disso, a prova produzida em audiência não se mostra gravada ou registada por qualquer modo, como se alcança da respectiva acta (fls. 138 a 141), pelo que esta Relação não pode sindicar a decisão da matéria de facto da primeira instância, por não ter ao seu alcance todos os elementos de prova que serviram de base à decisão (artº 712º, nº 1, al. a), do CPC).


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4 - O fundamento para decretar a resolução do contrato de arrendamento

Não se mostra questionado que entre Autor e Réu existe um contrato de arrendamento destinado à habitação deste, no prédio identificado no item 1º dos factos. Esse arrendamento foi celebrado há mais de 20 anos, tendo em conta a data da entrada em juízo da presente acção, o que ocorreu em 18 de Junho de 2008, pelo que o contrato em causa foi celebrado antes de 18 de Junho de 1988.

Ao contrato em apreço aplicam-se as normas instituídas pela Lei nº 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por força do preceituado no respectivo artº 59º, nº 1.

Nos termos do disposto no artº 1083.º do Código Civil, cuja redacção foi reposta pelo artº 3º da já citada Lei nº 6/2006:

1 - Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.

2 - É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:

(…)

d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º.

Este último preceito refere que o não uso pelo arrendatário é lícito:

a) Em caso de força maior ou de doença;

b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto;

c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano.

Já nos termos do disposto no artº 64º, n.º 1, al. i), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU)[9], o senhorio podia resolver o contrato se o arrendatário: “conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia”.

Como era comummente entendido, aquela alínea continha dois fundamentos para a resolução do contrato de arrendamento:

 - Conservar o arrendatário o prédio desabitado por mais de um ano; e

 - Não ter nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia, sendo o prédio destinado a habitação[10].

O fundamento da resolução constante da al. d) do artº 1083º é mais restrito do que o anterior, já que agora, fora dos casos previstos no nº 2 do artº 1072º, já descritos, a lei se basta com o não uso do locado por mais de um ano. Não é necessário, agora, não ter residência permanente no locado, bastando o seu não uso por mais de um ano.

O conceito de residência permanente, para efeitos do artº 64º, al. i), do RAU, já era equacionado com o grau de vida do arrendatário e consequente incidência em relação ao arrendado, devendo ser entendido tendo em atenção o aspecto subjectivo referido ao próprio morador. E tal acontece geralmente naquelas situações em que o inquilino tem outra casa onde vive com permanência mas abusando de só poder ser despejado depois de um longo e aleatório processo judicial, simula uma residência habitual no prédio arrendado para continuar assim a beneficiar do vinculismo também quanto a ele ou exigir luvas ao senhorio. O que é necessário é que possa concluir-se que o arrendatário tem no arrendado o seu lar, que tem nele instalada a sua vida doméstica, a ele regressando logo que a sua vida profissional lho permite[11].

Como ensinam Mário Júlio Almeida Costa e Henrique Mesquita[12], “existe falta de residência permanente quando a casa é utilizada como residência eventual, esporádica ou secundária e não quando é utilizada como residência alternativa”.

As residências alternadas verificam-se quando uma pessoa tem mais do que uma residência, mas cada uma delas permanente ou habitual, onde habita com estabilidade, muito embora não em exclusividade.

Segundo o Ac. do S.T.J. de 5/3/1985[13], a residência permanente prevista na alínea i) do n.º 1 do art.º 1093.º do Código Civil, ou seja, aquela em que o arrendatário habitualmente vive e tem instalada a sua vida familiar e social, é compatível com a existência de residências alternadas, podendo o arrendatário fazer de cada uma delas o centro da sua vida, na decorrência de períodos diferentes e conforme as suas conveniências. Ou seja: São residências alternadas entre as quais não existe qualquer hierarquização ou diferenciação de fins, antes se substituindo uma à outra em unicidade de vida familiar e social, mesmo que eventualmente a permanência numa delas possa ser mais alongada do que na outra, não podendo o senhorio de qualquer dos prédios obter o despejo do arrendatário com fundamento na falta de residência permanente.

Revertendo ao caso presente, decorre dos factos que:

- O Réu encontra-se a residir num imóvel sito no (…) (…) ... (item 5º).

- O Réu e a família deixaram de habitar no locado em meados do ano de 1998 (item 8º)

17º - O Réu e a família deixaram de habitar no locado em meados do ano de 1998 devido à degradação deste (item 17º).

Deste modo, é inegável que o Réu e a família não utilizavam o locado há mais de dez longos anos, tendo em conta a data da instauração da presente acção. E não obstante o Réu ter deixado na casa algumas das suas coisas (item 22º), que os factos provados não especificam, o certo é que é inegável, à luz dos factos provados, o não uso da casa pelo Réu e família durante mais de um ano consecutivo.

Não se verifica nenhuma das previsões do nº 2 do artº 1072º do C. Civil que considera lícito o não uso pelo arrendatário em certos casos. Embora o Réu e família tivessem deixado de habitar no locado devido à degradação deste, tal não configura, a nosso ver, um caso de força maior.

Já o artº 64º, nº 2, al. a), do RAU previa a não aplicação do disposto na al. i) do seu nº 1, em caso de força maior ou doença.

O legislador não traçou qualquer critério que defina o conceito de «força maior», deixando essa tarefa reservada à doutrina e à jurisprudência.

Para o Prof. Antunes Varela[14], “ao afastar o direito de resolução do arrendamento baseado na desabitação do prédio por mais de um ano ou na falta de residência permanente do inquilino no prédio destinado a habitação, sempre que o facto atribuído ao arrendatário resulte de caso de força maior ou de doença, a lei quer efectivamente abranger os casos em que a desabitação ou a falta de residência permanente se torne compreensível, aceitável, perfeitamente explicável, em consequência de tais factos exteriores à pessoa do locatário (...), normalmente imprevisíveis ou pelo menos imprevistos, cuja força é superior à vontade normal do homem, que estão na origem da situação[15]”.

Sobre o caso de força maior, acrescenta o Prof. Antunes Varela, “essencial é que torne-se compreensível, justificável, perfeitamente razoável, aos olhos de um julgador compreensivo e avisado, seja o facto da não ocupação, seja o da não fixação de residência permanente no imóvel arrendado.

Cabem naturalmente nesta órbita a epidemia que grasse durante muito tempo na zona, a falta de água potável para a população em consequência de inundações ou outro cataclismo, a falta de segurança das pessoas (como hoje acontece em algumas áreas do antigo ultramar português), a falta de estabilidade do prédio em consequência de qualquer abalo sísmico recente, a derrocada de parte do prédio arrendado, ou a abertura de fendas no prédio vizinho que ameace a segurança do prédio arrendado, etc.”.

No Ac. da R. de Lisboa de 24/03/92[16], em que estava em causa o assalto a um estabelecimento, onde foram causados avultados danos, designadamente nas respectivas portas, o que não foi considerado caso de força maior, concluiu-se que caso de força maior “é o evento natural ou de acção humana de terceiro (com exclusão, pois, de conduta do locador, do locatário ou de pessoas com este relacionadas) que, embora pudesse prevenir-se, não poderia ser evitado, nem em si, nem nas suas consequências danosas e que torne compreensível, aceitável, perfeitamente explicável que o locatário conserve encerrado por mais de um ano, consecutivamente, o prédio arrendado para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal[17]”.

É, pois, na ideia de imprevisibilidade e na circunstância de haver impossibilidade não imputável ao devedor que geralmente se coloca o assento tónico do conceito de força maior a que alude o artº 64º, n.º 2, al. a), do RAU[18].

Deste modo, não pode configurar-se como um caso de força maior a circunstância de o telhado do locado ter abatido, após a data em que o Réu e a família deixaram de aí habitar. Desconhece-se em que data tal facto ocorreu e qual a causa adequada de tal facto

Decorre do exposto que, tal como concluiu a douta sentença recorrida, o Réu incumpriu o dever de usar efectivamente a coisa para o fim contratado, deixando de a utilizar por muito mais de um ano.

Alegou o Réu, porém, que apenas deixou de residir no locado devido à degradação deste e à recusa do senhorio em fazer obras de conservação.

Resultou provado que nunca os senhorios realizaram quaisquer obras ou reparações no locado e que o Réu e a sua família deixaram de habitar o mesmo devido à degradação deste.

Mas o único facto que, a este propósito, se demonstrou foi que o telhado do imóvel abateu, já depois de o Réu e a família terem abandonado o locado. Além disso, dos factos provados (item 10º) apenas decorre que o Réu enviou ao então proprietário do imóvel, em 24/7/1996 (doc. de fls. 39) uma carta em que comunicou: “…o telhado da casa sita na (…) de que sou arrendatário e V. Exª proprietário, precisa de ser reparado com urgência, já que, quando chove, há bastantes infiltrações de água, que dificultam ou, mesmo impossibilitam a normal utilização do locado. Assim, solicito-lhe que até ao final do próximo mês de Agosto do corrente ano, proceda às referidas obras. Chamo ainda a sua atenção que, decorrido tal prazo, procederei eu próprio à reparação dessas obras urgentes, pedindo depois a V. Exª o seu reembolso, nos termos do artigo 1036º do Código Civil”.

Resultou igualmente provado que, desde que foi celebrado o contrato de arrendamento até ao presente, o locado nunca dispôs de instalação eléctrica nem de casa de banho, ou seja, já na altura em que o Réu decidiu tomar o imóvel de arrendamento o mesmo dispunha de reduzidas condições de habitabilidade.

Conforme refere Pedro Romano Martinez[19], “não haverá responsabilidade por parte do locador sempre que os vícios de direitos ou os defeitos da coisa tenham sido previamente conhecidos, fossem reconhecíveis pelo locatário ou lhe sejam imputados (…). De facto, se o locatário já sabia ou devia saber, aquando da celebração do contrato, que a coisa locada tinha um defeito, terá celebrado o contrato nessa perspectiva e, possivelmente, estabelecendo-se uma renda ou aluguer inferior, onde foi ponderada a existência do defeito”.

O locado já dispunha de poucas condições de habitabilidade aquando da celebração do contrato de arrendamento, o que o Réu não podia ignorar, sendo a renda quase simbólica do locado reflexo disso mesmo. Na verdade, para uma renda, fixada inicialmente e que nunca sofreu alterações, anual de somente € 1,5, (nada mais nada menos, um euro e meio!), o que equivale à renda mensal de € 0,125, não se podia esperar um locado com grandes condições.

Insurge-se também os apelantes contra a sentença recorrida, na parte em que condena a pagar as rendas que se vencerem durante a pendência da acção e a indemnização igual ao valor da renda, desde o termo do prazo para contestar até à entrega efectiva da habitação.

Aduzem os apelantes que procederam ao depósito das rendas, como efectuaram o depósito da renda referente ao ano de 2008. Mas não é isso que está em causa. As rendas já depositadas ficam pagas. Os apelantes têm de depositar ou pagar todas as rendas vencidas na pendência da acção de despejo. Não têm de pagar duas vezes as mesmas rendas nem é isso que resulta da sentença. Desconhece-se, por tal não constar dos factos, quais as rendas efectivamente pagas até ao presente.

Naturalmente, o Autor tem direito a receber as rendas pagas na pendência da acção (artº 14º, nº 3, do NRAU). E tem também direito a receber uma indemnização igual ao valor da renda determinada nos termos dos artigos 30º a 32º desde o termo do prazo para contestar até à entrega efectiva da habitação.

Aqueles artºs 30º a 32º referem-se às rendas passíveis de actualização, ao valor máximo da renda actualizada e ao valor do locado. No caso presente, porém, a sentença apenas considerou a renda actualmente paga, sem qualquer actualização, o que beneficia inegavelmente os apelantes.

A sentença, também neste ponto, não merece censura.



5 – O abuso de direito na invocação pelo Autor do abandono do locado por parte do Réu

Invocam os apelantes o instituto do abuso de direito por banda do Autor ao invocar como fundamento da resolução do contrato o abandono do locado, o qual se terá ficado a dever a “caso de força maior justificativo do abandono temporário do imóvel”.

Esta excepção foi somente invocada na alegação recursiva, sendo, pois, uma questão nova, mas, por se tratar de excepção de conhecimento oficioso[20], passamos a tomar dela conhecimento.

Segundo o disposto no artº 334º do C. Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[21], “exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (..)”.

Conforme refere Heirich Hörster[22], a maioria da doutrina nacional ou estrangeira tende a alargar o campo de aplicação do art. 334º do CC. às faculdades, liberdades, poderes, etc., que fluem da capacidade jurídica das pessoas, ao abrigo da sua liberdade de agir, designadamente no que respeita à liberdade contratual, embora o autor lhe coloque reservas.

O abuso de direito pode manifestar-se num venire contra factum proprium, ou seja numa conduta anterior do seu titular, que, objectivamente interpretada face à lei, bons costumes e boa fé, legitima a convicção de que tal direito não será exercido.

Vaz Serra[23] refere que há abuso de direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado, e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar; refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do art. 334º do C. Civil.

Segundo Menezes Cordeiro[24], “a proibição de venire contra factum proprium traduz a vocação ética, psicológica e social da regra pacta sunt servanda para a juspositividade, mesmo naqueles casos específicos em que a ordem jurídica estabelecida, por razões estudadas, por desadaptação ou por incompleição, lha negue. Este ambiente pré-jurídico especialmente favorável  à admissão do proibir genérico de comportamentos contraditórios não deve, porém, fazer perder de vista o resultado real de tal aceitação: todos os comportamentos humanos acabariam por ter acolhimento e protecção jurídicos. Pelo seguinte: o vincular uma pessoa às suas atitudes faz sentido, em particular, quando tenham um beneficiário; este, por seu turno, não poderia recusar as necessárias contrapartidas”.

Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade. Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se fundamentalmente os juízos de valor positivamente consagrados na lei, como refere A. Varela[25].

Como se escreveu no Ac. do S.T.J. de 21/09/93[26], “a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim económico e social a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”.

Revertendo ao caso dos autos, afigura-se-nos evidente que não decorre dos factos provados que a conduta do Autor, ao vir invocar e pedir a resolução do ajuizado contrato de arrendamento, seja abusiva e, muito menos, manifestamente abusiva.

Pelo contrário, o Autor só veio exercer o direito que a lei lhe confere à resolução do contrato decorridos cerca de dez anos sobre a data em que o Réu e a família abandonaram o locado.

Como já deixámos dito supra, não existiu caso de força maior no abandono do locado por parte do Réu. E também não decorre dos factos que o abandono do locado por parte do Réu e família tenha sido temporário. Desde a data em que o Réu e família deixaram de habitar no locado até ao presente vão decorridos já perto de doze longos anos, pelo que dizer-se que o abandono do imóvel foi temporário não tem qualquer tradução nos factos dados como provados.

E se o Réu abandonou o locado devido à sua degradação, o certo é que, como ele comunicou ao então senhorio, através da carta de fls. 39, ele próprio podia proceder à reparação das obras consideradas urgentes, pedindo, depois, o seu reembolso, nos termos do artigo 1036º do Código Civil. Mas o Réu não o fez, optando por deixar de habitar no locado e indo residir num imóvel sito (…), ... (item 5º).

Improcede, assim, a arguida excepção de abuso de direito.


...............


Sumário:

1 – Tendo o contrato de arrendamento ajuizado sido celebrado antes de 18 de Junho de 1988, aplicam-se-lhe as normas instituídas pela Lei nº 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por força do preceituado no respectivo artº 59º, nº 1;

2 - O fundamento da resolução do contrato de arrendamento para habitação, constante da al. d) do artº 1083º, segundo a redacção daquela Lei nº 6/2006, consiste no não uso do locado por mais de um ano consecutivo;

3 - Caso de força maior, para efeitos de tornar lícito o não uso do locado pelo arrendatário, é o evento natural ou de acção humana de terceiro (com exclusão, pois, de conduta do locador, do locatário ou de pessoas com este relacionadas) que, embora pudesse prevenir-se, não poderia ser evitado;

4 - Não pode configurar-se como um caso de força maior a circunstância de o telhado do locado ter abatido, após a data em que o Réu e a família deixaram de aí habitar;

5 - Não pode ter-se como integradora de abuso de direito a conduta do senhorio que, decorridos cerca de dez anos após o inquilino ter deixado de habitar no locado, vem pedir a resolução do contrato de arrendamento com esse fundamento.   



DECISÃO

Nos termos expostos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a douta sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.


[1] Vide Ac. do T.C. n.º 55/85, de 25/3/85, Acs. TC, 5º, 467.
[2] Código de Processo Civil Anotado, vol. 5º, 139.
[3] Vide, neste sentido, por todos, o Ac. do S.T.J. de 15/03/74, B.M.J. n.º 235º, 152.
[4] B.M.J. n.º 241º, 344.
[5] C.P.C. Anotado, vol. 5º, 141.
[6] C.P.C. Anotado, 20ª ed., 925.
[7] C.P.C. Anotado, 5º, 54.
[8] Vide, por todos, o Ac. do S.T.J. de 25/2/97, B.M.J. n.º 464º, 464.
[9] Aprovado pelo Dec. Lei n.º 321-B/90, de 15/10.
[10] Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 2ª ed., 305.
[11] Pinto Furtado, Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos, 2.ª ed., 514/515.
[12] C.J., Ano IX, 1.º, 20.
[13] B.M.J. n.º 345, 372.
[14] R.L.J., 119º, 275, cit. por Aragão Seia, ob. cit., 312.
[15] No mesmo sentido, v. Vaz Serra, B.M.J. n.º 46º, 41.
[16] C.J., Ano 17º, 2º, 142.
[17] Vide também o Ac. da mesma Relação de 11/03/99, C.J., Ano 24º, 2º, 89.
[18] Vide, neste sentido, o Ac. da R. de Évora de 11/03/93, B.M.J. n.º 425º, 639, e da R. de Lisboa de 7/1/82, C.J., Ano 7º, 1º, 254.
[19] Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, pág. 160, citado na sentença recorrida.
[20] Vide, neste sentido, por todos, o Ac. do S.T.J. de 12/11/98, RLJ, Ano 132º, 3905/6, pág. 256.
[21] C. Civil  Anotado, vol.  I, 2.ª ed., pag. 277, em anotação àquele artigo.
[22] Teoria Geral do Direito Civil, pag. 287.
[23] RLJ, 111º - 296.
[24] Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, 1997, 751.
[25] Das obrigações em geral, 2.ª ed., vol. 1º, pag. 423, citado no C.C. Anotado já referido.
[26] CJ, S.T.J., 1993, Tomo III, pág. 21.