Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1795/05.0TBPMS-C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JACINTO MECA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
REQUISITOS
CONTRATO-PROMESSA
MORA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 381º, NºS 1 E 2, E 808º, Nº 1, DO CPC E 334º DO CC
Sumário: I - Para que se decrete uma providência cautelar não especificada impõe-se a conjugação dos seguintes requisitos: - a probabilidade séria da existência do direito invocado; - que muito provavelmente esse direito – invocado – exista ou que venha a surgir em acção constitutiva já proposta ou a propor; - o fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na sua pendência, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.

II – A probabilidade séria da existência do direito invocado basta-se com um mero juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária.

III – Em relação aos factos integradores do chamado “periculum in mora”o requerente tem que provar – não basta um mero juízo de verosimilhança – os danos que visa acautelar, sendo certo que se exige a prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do “status quo”.

IV – O que significa que apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.

V – Os prazos fixados para a celebração do contrato prometido tanto podem ser absolutos como relativos. Tratando-se de um prazo absoluto, decorrido o mesmo o contrato caduca; sendo um prazo relativo, decorrido o prazo de cumprimento e verificando-se que o incumprimento não pode ser imputado a nenhuma das partes, sendo ainda possível o cumprimento, então qualquer um dos contraentes pode notificar o outro para o cumprir em prazo razoável a fixar.

VI – Este prazo suplementar admonitório será peremptório, pelo que o contrato se considera definitivamente incumprido se não for respeitado.

VII – Uma vez que a nossa ordem jurídica não colhe a chamada eficácia externa das obrigações, adere-se à tese que sustenta que a co-responsabilização de terceiro cúmplice pela indemnização só é devida desde que este invada os terrenos interditos do abuso de direito.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que compõem o Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou a presente providência cautelar não especificada contra B... e C.... No essencial alegou que por contrato celebrado em 8 de Outubro de 2003, a sociedade C... prometeu vender à requerente e esta prometeu-lhe comprar uma parcela de terreno a destacar da área rústica do prédio sito em Aleixa ou Quinta da Cerca, freguesia e concelho da Batalha, descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob os artigos 1.627, 1.630 e 1.403 e na matriz predial rústica sob o artigo 9.954, devoluta de pessoas e bens e livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, pelo preço de € 900.000,00. Posteriormente, foi autorizado pela Câmara Municipal da Batalha o destaque de uma parcela de terreno, do artigo 9.954, destinada à construção com a área de 8.770 m2. Como sinal e princípio de pagamento, a requerente entregou à promitente vendedor a quantia de € 270.000,00. A parcela de terreno destinava-se a construir “uma ou mais áreas comerciais”, sendo a requerente uma sociedade integrada no “D..., detida a 99%, pela E.... A obrigação de compra por parte da requerente ficou condicionada à verificação das condições plasmadas na cláusula terceira do contrato-promessa, estipulando que a promitente compradora poderia denunciar o contrato dentro do prazo de 18 meses e receber em singelo o que tivesse pago desde que se não verificassem as condições descritas naquela cláusula terceira, faculdade que a requerente não utilizou e daí que continuasse vinculada ao contrato. Na sequência do contrato-promessa encarregou a F... de executar o projecto do edifício e projectos complementares no que gastou € 26.500,00 e executou os actos administrativos necessários para o licenciamento de uma grande superfície com a insígnia D.... A requerida C... enviou para a Direcção-geral da Economia do Centro a declaração junta a folhas 68 dos autos, dando nota que vai vender à requerente ou à sociedade do grupo “D...” uma parcela de terreno destinada à construção e com a área de 8.770 m2 a destacar do prédio sito em Aleixa ou Quinta da Cerca, freguesia e concelho da Batalha, descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob os artigos 1.627, 1.630 e 1.403 e na matriz predial rústica sob o artigo 9.954 (…) declarando que a escritura se encontrava agendada para o dia 15 de Julho de 2005.
A escritura não foi possível efectuar antes em virtude da licença camarária de destaque nº 134/2005 só ter sido emitida em 5 de Julho de 2005 e a declaração para a inscrição do prédio na matriz em 14 de Julho de 2005, como não se efectivou na data combinada porque a 2ª requerida não entregou à requerente a declaração modelo 1 do IMI, necessário para a liquidação do IMI, prévia à escritura.
Acontece que contra todas as expectativas da requerente, tomou conhecimento que por escritura de 18 de Julho de 2005, a parcela de terreno do prédio objecto do contrato-promessa de compra e venda foi, pela 2º requerida, vendida à B..., pelo preço de € 1.500.000,00. Nessa mesma escritura de compra e venda, ficou consignado que os vendedores transferem para a compradora B... “o processo de obras número cento e dezassete barra dois e quatro que se encontra a correr seus termos na Câmara Municipal da Batalha, processo de obras nº 117/2004 da Câmara Municipal da Batalha que é precisamente o processo de licenciamento da obra de construção do hipermercado com a insígnia D.... A 2ª requerida actuou com má fé, fazendo crer à requerente que ia celebrar o contrato definitivo, mas ardilosamente vendeu à concorrência por um preço superior ao que tinha prometido vender-lhe, fazendo correr em simultâneo na Câmara Municipal da Batalha processo idêntico a favor da 1ª requerida para a mesma parcela de terreno. A 1ª requerida é uma empresa do G..., concorrente da requerente na área das grandes superfícies comerciais, sendo que o prédio objecto da venda se encontra muito bem situado numa zona de forte desenvolvimento urbano. A 1ª requerida aliciou a 2ª requerida oferecendo-lhe um preço superior para que violasse o contrato promessa e actuou com manifesto dolo violando os direitos contratuais da requerente decorrentes do contrato promessa, para além de ter praticado concorrência desleal. Tendo em atenção a situação de concorrência entre a requerente e a 1ª requerida no negócio das grandes superfícies, a concorrência desleal praticada pela 1ª requerida, a localização estratégica do terreno objecto do contrato-promessa de compra e venda e os elevados valores de facturação das grandes superfícies, a indemnização em dinheiro é insusceptível de ressarcir os lucros cessantes da requerente decorrentes da violação do contrato, tanto mais que são conhecidas as dificuldades na obtenção de licenciamentos para a instalação de grandes superfícies e ainda que possível o processo é moroso, tal como a aprovação dos processos de licenciamento camarário, para além de que a manutenção da situação ilícita constituiria para a 1ª requerida um prémio à violação do contrato, daí que a sanção adequada para a lesão dos direitos da requerente seja a reconstituição natural, através da declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado em 18 de Julho de 2005 ou, supletivamente, a sua inoponibilidade à requerente e fazer operar a execução específica do contrato-promessa violado. O contrato de compra e venda celebrado em 18 de Julho de 2005 é nulo por força do prescrito nos artigos 280º, nº 2 e 281º do CC, nulidade que pode ser declarada a todo o tempo e é do conhecimento oficioso, sendo que nem o facto de se tratar de um imóvel sujeito a registo a lei impede a declaração de nulidade – artigo 291º – já que a 1ª requerida não pode ser considerada terceiro de boa fé. Desconsiderado o contrato de compra e venda celebrado entre as requeridas, assiste à requerente o direito de requerer a execução específica do contrato promessa de compra e venda celebrado em 8 de Outubro de 2003, nos termos da cláusula 5ª do contrato e por força do artigo 830º do CC. Mas para que a reconstituição natural se mantenha possível é necessário que a 1ª requerida não aliene a terceiros, nem ela implante qualquer construção, designadamente a grande superfície comercial, assim como que a 2ª requerida não desista, nem cancele, o processo de licenciamento nº 117/2004 a correr na Câmara Municipal da Batalha em seu nome, mas por conta da requerente. Conforme resulta do exposto, verificam-se todos os pressupostos para que possa ser requerida uma providência cautelar contra as requeridas: está demonstrado o direito de crédito da requerente resultante do contrato-promessa; ficaram demonstrados os danos emergentes e os lucros cessantes que sofreria; e ficou demonstrada a possibilidade de ver satisfeito o seu direito através da reconstituição natural.
Concluiu pelo decretamento da providência cautelar não especificada:
Contra a 1ª requerida para que seja impedida de:
· Efectuar a venda a terceiros da parcela de terreno dos autos;
· Iniciar qualquer construção na parcela de terreno dos autos.
Contra a 2ª requerida para que esta fique impedida de:
· Desistir ou cancelar o processo de licenciamento nº 117/2004 a correr na Câmara Municipal da Batalha.
Mais requer que seja dispensada a audiência prévia das requeridas.
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Por despacho de folhas 83 e 84, foi indeferida a dispensa de audiência prévia das requeridas e ordenou-se a sua citação nos termos do disposto no artigo 385º do CPC, para querendo deduzirem oposição, no prazo de 10 dias.
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A B... deduziu oposição começando por dar nota da inexistência dos pressupostos que permitam que seja decretada a providência cautelar, inexistência que começou por alicerçar na existência de uma carta datada de 24 de Maio de 2005 enviada à requerente, através da qual lhe é dado a conhecer a resolução do contrato-promessa celebrado entre elas e fê-lo ao abrigo das disposições conjugadas dos nºs 1 e 2 da cláusula terceira, uma vez que estavam decorridos todos os prazos previstos para a celebração do negócio definitivo sem que a escritura pública de compra e venda estivesse sequer agendada, pelo que a probabilidade séria existente é, precisamente, contrária à pretensão da requerente. Quanto ao alegado direito geral de respeito, também não existe, nem mesmo aceitando a teoria da eficácia externa das obrigações e a consequente responsabilidade de terceiro pela violação de um direito de crédito. Quanto ao requisito do justificado e fundado receio de ameaça grave do pretenso direito da requerente, é total a ausência de alegação de factos que a consubstanciem, como é manifesta a desproporção entre o prejuízo que a oponente sofrerá com o eventual decretamento da providência e o dano que com ela se pretende evitar. A oponente já pagou o preço pela parcela de terreno em causa, suportou custos de projecto que ascendem a € 3.600, como já foi aprovado pela Câmara Municipal da Batalha a localização do estabelecimento a retalho. Assim e seja qual for o desfecho desta providência a requerente não pode instalar qualquer estabelecimento comercial do grupo “D...”. Acresce a disponibilização por parte da 2ª requerida junto da requerente dos montantes pagos a título de sinal e princípio de pagamento. Mais alegou que a 1ª requerida apresentou em 31 de Janeiro de 2005 um pedido de autorização para instalação na freguesia da Batalha de um estabelecimento de comércio a retalho com a insígnia “H...”, na sequência da qual apresentou uma carta subscrita pela sociedade C..., proprietário do prédio onde pretendia instalar o estabelecimento comercial, confirmando que se encontrava em negociações com ela para a venda de parte do imóvel sito em Aleixa ou Quinta Cerca, carta que foi acompanhada de certidão da Conservatória do Registo Predial e demais documentação. Inicialmente a requerida desconhecia a existência de qualquer vínculo ou declaração negocial entre a proprietária do prédio e qualquer interessado, nem existia qualquer evidência a partir da qual a pudesse detectar, tanto mais que na certidão do registo predial não constava qualquer registo provisório do contrato promessa. Assim e ao contrário do alegado pela requerente, tal conhecimento não lhe podia advir de outro modo. Em 23 de Setembro de 2004 foi licenciado o processo relativo a obras de edificação de um supermercado, ou seja, quase um ano depois da outorga do contrato-promessa juntos aos autos pela requerente, sendo que a Câmara Municipal da Batalha só dele teve conhecimento, quando a Direcção Geral de Economia do Centro, por ofício de 25 de Maio de 2005, lhe deu conhecimento da entrada de um pedido de instalação de uma loja do D... no concelho da Batalha. Recordou que o pedido dirigido à DRE do Centro para a instalação de uma loja alimentar “D...” não se fazia acompanhar da documentação a que se alude no Anexo I da Lei nº 12/2004, justificando a não entrega com a apresentação de uma declaração emitida pela CMB na qual constava ter sido solicitada a construção de uma edificação destinada a supermercado. Já a oponente apresentou um documento que titulava um interesse legítimo sobre o prédio, cumprindo o estipulado no Anexo I da referida Lei, daí que a DRE do Centro tivesse remetido o processo para a Câmara Municipal da Batalha para que aprovasse a localização pretendida pela 1ª requerida, o que veio a acontecer em 24 de Março de 2005. No normal desenvolvimento do processo de autorização de instalação do estabelecimento “Pingo Doce”, a DRE do Centro solicitou à 1ª requerida que informasse sobre a evolução da situação de propriedade do espaço onde se pretendia instalar, o que levou a que contactasse a 2ª requerida que a informou que o contrato promessa celebrado com a requerente havia sido resolvido, facultando cópia da missiva nesse sentido. Por via destes desenvolvimentos a 1ª requerida informou a DRE do Centro que a proprietária do prédio lhe assegurara a intenção de o alienar. A 1ª requerida actuou no estrito cumprimento das regras gerais e éticas que regulam a economia de mercado e a livre concorrência entre os operadores económicos. A 1ª requerida só avançou para a concretização do negócio quando se assegurou que nenhum vínculo contratual impedia a alienação do prédio, iniciando os procedimentos necessários à marcação da escritura que veio a ser outorgada no dia 18 de Julho de 2005 no Cartório Notarial do Dr. Pedro Nunes Rodrigues, aquisição que igualmente já se encontra registada na Conservatória do Registo Predial.
Concluiu pela rejeição da providência por não estarem preenchidos os requisitos legais exigíveis para o seu decretamento.
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A C... deduziu oposição alegando que a requerente alterou a verdade dos factos e omite factos relevantes para a decisão da causa, litigando com má fé. Decorridos 12 meses após a celebração do contrato promessa, ou seja, em 8 de Outubro de 2004, nem todas as condições previstas na cláusula terceira se tinham verificado, o que a requerente omite. E nem mesmo 6 meses depois do termo do prazo inicial, ou seja, em 8 de Abril de 2005, prazo limite de 6 prorrogações mensais se tinham verificado as condições, o que também a requerente omite, ou seja, naquela data a requerente ainda não havia obtido a autorização de instalação do estabelecimento comercial, sendo que desde a data da celebração do contrato-promessa a 2ª requerida prestou-lhe toda a colaboração necessária para a verificação das condições que dela dependiam. Demonstrativo desse facto é o facto do processo nº 11772004 requerido pela C... relativo aos projectos de arquitectura de um estabelecimento comercial ter sido deferido em 23 de Setembro de 2004. Depois de decorrido o prazo inicial de 12 meses foi proposta pela C... à requerente a outorga da escritura do contrato definitivo, independentemente da verificação das condições. Perante esta proposta a requerente comunicou à C... que só aceitaria outorgar a escritura se o preço acordado fosse reduzido em 100.000 euros, o que não aceitou. Em Dezembro de 2004, a C... foi contactada pelo H... que lhe manifestou interesse na aquisição de uma parcela de terreno no prédio sito em Aleixa ou Quinta da Cerca, o que levou a que iniciasse negociações tendo em vista a alienação de uma parte com a área de 10.000 m2, de um imóvel com a área total de 186.774 m2. Em 27 de Janeiro de 2005 a C... remeteu à H... uma carta de intenções, para que esta pudesse dar início ao processo de autorização de instalação do estabelecimento comercial. Decorridos 7 dias sobre o termo máximo do prazo de 18 meses – 15 de Abril de 2005 – a requerente enviou à C... um aditamento ao contrato promessa celebrado em Outubro de 2003, através do qual alterava os nºs 1, 2 e 3 da cláusula terceira, concretamente os prazos previstos para a verificação das condições, o que não foi aceite pela C... que, em 24 de Abril de 2005, enviou à requerente uma carta comunicando-lhe a rescisão do contrato-promessa celebrado entre ambas, rescisão que a requerente não aceitou como ilustra a carta, datada de 31 de Maio de 2005, que enviou para a C.... Em 31 de Maio de 2005 quando a requerente comunicou à C... a marcação da escritura para o dia 16 de Junho do mesmo ano, ainda não tinha autorização de instalação de estabelecimento comercial nem era previsível que a obtivesse até aquela data. A C... por carta datada de 3 de Junho de 2005 informou a requerente que, pelas razões constantes da carta datada de 24 de Maio de 2005, não compareceria à escritura. Perante a resolução do contrato iniciou negociações com a H... e em simultâneo desenvolveu negociações com a requerente, nas quais foram consideradas diversas soluções, desde a restituição do sinal à conclusão imediata do negócio. Estas negociações permitiram que no início de Julho de 2005 se alcançasse um consenso: a C... vendia à requerente a parcela por 1.000.000 de euros e a respectiva escritura teria que ser de imediato outorgada sem depender de quaisquer condições. Foi neste enquadramento que a C..., depois de suspender as negociações com a H..., apresentou, por solicitação da requerente, na DRE do Centro, o requerimento datado de 8 de Julho de 2005. No dia 13 de Julho de 2005, dois dias antes da data prevista para a escritura, a C... foi confrontada com a imposição pela requerente de três novas condições cumulativas para a outorga da escritura: a escritura seria outorgada por outra sociedade do grupo – D...; a C... teria que assinar um acordo de revogação do contrato promessa celebrado entre as partes em 8 de Outubro de 2003; e a C... teria que declarar na escritura que as partes não tinham celebrado qualquer contrato promessa. Nesse mesmo dia, a C... comunicou à requerente que não aceitava as condições impostas e que a escritura deveria ser outorgada nos termos acordados, o que a requerente não aceitou. A C... enviou para a requerente um fax datado de 18 de Julho de 2005, pondo por escrito a sua posição de não-aceitação dos termos por si propostos para a outorga da escritura. Frustradas as negociações em 13 de Julho de 2005 e tendo a H..., através da B..., mantido o interesse na aquisição da parcela do terreno em causa, comunicando à C... o seu interesse na outorga da escritura por já ter a aprovação da Câmara para a localização do estabelecimento comercial, veio a mesma a ser outorgada em 18 de Julho de 2005. De seguida a C... suscitou a ineptidão do requerimento inicial e a sua falta de interesse em agir, invocando, para tanto, que nos termos do Decreto-lei nº 555/99, de 16.12, a C... não tem legitimidade para desistir ou cancelar o processo de licenciamento, sendo irrelevante para o efeito a transmissão do processo de obras referido na escritura pública. Decorre linearmente da causa de pedir da presente providência que o pedido dirigido contra a C... é inútil e que está em contradição com o respectivo fundamento. Alegou, ainda, a não verificação dos requisitos de deferimento da providência cautelar, na medida em que é impossível concluir pela probabilidade da existência do direito em que a requerente funda o pedido
Concluiu pela procedência da nulidade principal de ineptidão do requerimento inicial na parte relativa ao pedido que lhe foi dirigido; subsidiariamente deve a C... ser julgada parte ilegítima; e caso assim se não entenda deve a providência ser julgada improcedente.
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Por despacho de folhas 428 designou-se dia e hora para a inquirição das testemunhas.
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Como ilustra a acta da audiência de discussão e julgamento, os ilustres mandatários das partes deram nota dos factos que consideravam provados e que se encontram transcritos a folhas 666 a 676, prosseguindo a audiência para apuramento da restante matéria vertida nos articulados (despacho de folhas 676).
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Finda a produção da prova – folhas 740 – foram os autos conclusos à Exma. Juiz que proferiu decisão a julgar a providência cautelar não especificada, improcedente por não provado e condenou a requerente como litigante de má fé em multa que fixou em 10 Ucs.
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Inconformada com o teor da sentença, a requerente interpôs recurso que foi recebido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (folhas 805).
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A agravante atravessou nos autos a suas alegações e concluiu-as do seguinte modo:
(…………)
Concluiu pelo provimento do recurso, revogando-se a sentença recorrida que deve ser substituída por outra que:
a. Altere a matéria de facto dada como provados nos termos acima referidos.
b. Decrete a providência cautelar
c. Dê sem efeito a condenação da requerente como litigante de má fé.
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A B... apresentou as suas contra-alegações e formulou as seguintes conclusões:

(……..)
Conclui pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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A C... contra alegou e formulou as seguintes conclusões:
(………………………..)
Conclui pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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1. Delimitação do objecto do recurso
As questões a decidir no presente agravo e em função das quais se fixa o objecto do recurso sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do artigo 660º e artigos 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil, são as seguintes:
a. Impugnação da matéria de facto.
§ Factos dados como provados que devem ser eliminados ou alterados.
§ Factos que devem ser aditados
b. Contrato promessa.
§ Ilicitude da rescisão.
§ Responsabilidade solidária da C... e da B...
§ Reconstituição natural.
§ Oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito.
§ Do abuso de direito.
§ Da inoponibilidade à recorrente do direito de propriedade da B....
§ Da execução específica do contrato promessa de compra e venda.
§ Da lesão grave e de difícil reparação.
§ Verificação de todos os requisitos da providência cautelar.
c. Da litigância de má fé
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2 Factos dados como provados pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós

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(…………………………………)
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4. Providência cautelar não especificada
4. 1 Breves considerações
Fixada a matéria de facto com as alterações e aditamentos explicitados nas diversas alíneas do ponto 3, é tempo de nos debruçarmos sobre as questões de direito suscitadas pela agravante, impondo-se, no entanto, que passemos a delinear, embora de forma necessariamente sintética os pressupostos de que depende a verificação de uma providência cautelar requerida.
Determina o artigo 381º do CPC:
1. Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado.
2. O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor.
3. (…)
4. (…)
Para que se decrete uma providência cautelar não especificada, impõe-se a conjugação dos seguintes requisitos:
Ø A probabilidade séria da existência do direito invocado.
Ø Que muito provavelmente esse direito – o invocado – exista ou que venha a surgir em acção constitutiva já proposta ou a propor.
Ø Do fundado receio de que outrem, antes da acção ser proposta ou na sua pendência, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
A probabilidade séria da existência do direito invocado basta-se com um mero juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária; outro tanto não acontece com a apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”, em que se deve usar um critério mais rigoroso. Quanto a este aspecto, e em relação aos factos integradores do “periculum in mora”, o requerente tem que provar – não bastando um mero juízo de verosimilhança – os danos que visa acautelar, sendo certo, importa não esquecer, que se exige a prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do “status quo”. O que significa que apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis[ 1].
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4.2 – Contrato promessa – ilicitude da rescisão
Expressa-se na sentença recorrida que «o direito que a requerente diz ameaçado é o direito de lançar mão do mecanismo da execução específica do contrato promessa que celebrou com a 2ª requerida, caso a 1ª requerida venda a parcela de terreno a terceiros ou inicie a construção da unidade comercial e da inutilização do processo nº 117/2004 que corre os seus termos na Câmara Municipal da Batalha» por considerar que a sanção adequada para a lesão dos seus direitos não pode deixar de ser a reconstituição natural da situação natural que existiria se não se tivesse verificado o incumprimento do contrato promessa.
Insurge-se a agravante contra a tese plasmada na sentença recorrida na qual, após aturada análise quer dos factos provados quer dos preceitos que a balizam, concluiu que a requerente não logrou preencher o primeiro dos requisitos enunciados em 4.1: a probabilidade séria da existência do direito que a mesma pretende acautelar.
Cumpre, então, apreciar a justeza da decisão que a agravante coloca em causa.
Resulta da matéria de facto provada que no dia 8 de Outubro de 2003, a sociedade C... prometeu vender à A... uma parcela de terreno com a área de 9.600 m2 a destacar do prédio descrito na alínea A) dos Considerandos – facto 1 – expressando a cláusula primeira desse mesmo contrato promessa que (…) a promitente compradora promete comprá-lo, sujeito à verificação previamente ou na data da escritura de compra e venda, das condições suspensivas previstas na cláusula terceira.
Por sua vez, a cláusula terceira condiciona a obrigação da promitente compradora em adquirir o prédio à verificação, previamente à data da outorga da escritura de compra e venda, mas em prazo não superior a 12 (doze) meses a contar da data da assinatura do contrato-promessa, das condições enunciadas nas alíneas a) a h) do nº 1, para o nº 2 dessa mesma cláusula permitir a prorrogação daquele prazo, por sucessivos períodos de 1 mês até ao máximo de 6, a menos que ocorra denúncia do contrato por parte da promitente compradora nos termos previstos no nº 3 desta mesma cláusula.
Sabemos que a promitente vendedora com os fundamentos expressos na carta datada de 24.5.2005 e que aqui se transcrevem - ultrapassados que estão todos os prazos, sem que V. Exas. tenham cumprido as obrigações decorrentes do contrato, somos pela presente a rescindi-lo com efeitos imediatos – rescindiu o contrato.
Parece-nos que indevidamente.
Nos termos do disposto no artigo 405º do CC dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, mas uma vez concluídos – artigo 232º do CC – devem ser pontualmente cumpridos e só podem modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos por lei (nº 1 do artigo 406º do CC). A cessação dos efeitos negociais pode ocorrer por resolução fundada na lei ou em convenção – artigo 432º do CC – mas ainda que fundada em convenção não fica afastado o controle judicial da resolução que se apoie em perturbações contratuais pouco graves ou violadoras do princípio da boa fé[ 2]. Os artigos 798º - responsabilidade do devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação – 801º - impossibilidade da prestação por causa imputável ao devedor – 804º - mora do devedor – e 808º - perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento – são aplicáveis aos contratos em geral, mas devem igualmente serem observados quanto ao contrato promessa. Também as duas situações previstas no artigo 808º (não cumprimento da obrigação em prazo razoável e perda do interesse do credor na prestação em consequência da mora) são aplicáveis ao contrato promessa.
Ao lermos a cláusula terceira do contrato promessa constatamos que a outorga da escritura de compra e venda ficara condicionada à verificação de um conjunto de condições – alíneas a) a h) – no prazo de 12 meses, mas se neste prazo as tais condições não se confirmassem, aquele prazo considerava-se prorrogado por sucessivos períodos de 1 mês até ao máximo de 6 meses. Quanto à outorga da escritura de compra e venda do prédio, seria outorgada no prazo de 1 mês após o preenchimento de todas as condições previstas na cláusula terceira, devendo a promitente compradora notificar com, pelo menos, 8 dias de antecedência, a promitente vendedora, com a obrigação desta fornecer àquela todos os elementos de identificação necessários à outorga da escritura notarial (cláusulas 3ª e 4º do contrato promessa – facto 1).
Os prazos fixados para a celebração do contrato prometido tanto podem ser absolutos como relativos. Tratando-se de um prazo absoluto decorrido o mesmo o contrato caduca, já sendo um prazo relativo decorrido o prazo de cumprimento e verificando-se que o incumprimento não pode ser imputado a nenhuma das partes, sendo ainda possível o cumprimento, então, qualquer um dos contraentes pode notificar o outro para o cumprir em prazo razoável a fixar. Este prazo suplementar admonitório será peremptório, pelo que o contrato se considera definitivamente incumprido.
A cláusula 3ª do contrato promessa estabelece um prazo máximo – 18 meses – para que a promitente compradora satisfizesse todas as condições vertidas nas alíneas a) a h), conferindo, ainda, a possibilidade de denunciar o contrato promessa naquele prazo – nºs 2 e 3 da cláusula 3ª – facto 1 – ficando a promitente vendedora obrigada a reembolsá-la da totalidade das importâncias pagas nos termos do contrato. O contrato promessa foi outorgado em 8 de Outubro de 2003, pelo que o prazo se completava em 8 de Abril de 2004. A matéria de facto provada dá nota que em 8 de Abril de 2005, a requerente ainda não tinha obtido a necessária autorização para a instalação do estabelecimento comercial (facto 14), propondo em 15 de Abril de 2005 à 2ª requerida um aditamento ao contrato promessa celebrado em Outubro e por referência aos nºs 1, 2 e 3 da cláusula terceira, passando o prazo inicial de 12 para 14 meses, projectando o termo final do prazo para 8 de Junho de 2005, o que não foi aceite pela 2ª requerida (factos 15 a 17). É, justamente, nesta sequência de factos que a 2ª requerida resolve o contrato promessa (facto 18).
A resolução pode fazer-se judicialmente ou por declaração à outra parte – artigo 436º do CC – e sendo um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento para ser legítimo – nº 1 do artigo 432º do CC – torna-se necessário que a declaração tenha a sustentá-la um fundamento legal ou convencional, pelo que não existindo fundamento estamos perante uma recusa de cumprimento[ 3 ]. Diferente do incumprimento definitivo é a situação de mora em que se considera constituído o devedor quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (nº 2 do artigo 804º do CC). Mas o não cumprimento, presumidamente culposo – artigo 799º do CC – já confere ao credor o direito a ser indemnizado e a resolver o contrato – artigo 801º, nº 2 do CC – enquanto que a simples mora apenas constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (nº 1 do artigo 804º do CC).
O artigo 808º, nº 1 do CC equipara ao incumprimento definitivo à perda do interesse do credor que seja subsequente à mora e à não realização da prestação no prazo que razoavelmente foi concedido ao devedor para cumprir a obrigação.
Não existem dúvidas quanto ao facto de a promitente compradora não ter conseguido, no prazo que foi contratualmente estipulado, reunir todas as condições que permitissem proceder à notificação da promitente vendedora com vista à outorga da respectiva escritura. Confrontada com tal impossibilidade, a promitente compradora podia ter percorrido um de dois caminhos: denunciar o contrato nos termos previstos na cláusula terceira ou propor à promitente vendedora a prorrogação do prazo. Escolhida esta última possibilidade, a promitente compradora viu esbarrá-la na intransigência da promitente vendedora.
Em face desta factualidade e porque naturalmente a promitente vendedora não podia estar vinculada a um contrato promessa até que a promitente compradora lograsse preencher as condições a que se obrigou, podia ter percorrido um de dois caminhos: ou invocava factos capazes de sustentar que, na sequência da mora, havia perdido o interesse que tinha na prestação – perda de interesse a apreciar objectivamente – ou conferia à devedora um prazo razoável para que pudesse realizar a prestação. Escreve o Sr. Prof. M. Januário da C. Gomes: «a perda de interesse do credor na prestação é superveniente, uma vez que a manutenção do interesse do credor constitui requisito para que a não realização da prestação no tempo devido determine a constituição em mora e não a inexecução definitiva. Esta perda de interesses pode derivar de várias causas apenas relevando para efeitos de conversão da mora em incumprimento definitivo a perda do interesse objectivamente apreciada – artigo 808º, nº 2. Perdido o interesse na prestação, o incumprimento definitivo só se verifica após declaração nesse sentido pelo credor, declaração que de acordo com o princípio da boa fé, deve ser feita assim que ocorra a perda de interesse. Incumprida a obrigação inserta em contrato sinalagmático, ao credor compete escolher entre resolver e executar»[ 4]
É certo que a promitente compradora ao não celebrar o contrato no prazo acordado, por via da falta de preenchimento das condições a que se obrigou incorreu, efectivamente, em mora mas não em incumprimento definitivo. Pretendendo a promitente vendedora resolver o contrato promessa impunha-se que transformasse a mora em incumprimento definitivo, o que podia fazer através de um dos mecanismos enunciados no artigo 808º do CC. Assim ou conferia prazo razoável à promitente compradora para cumprir as condições referidas na cláusula 3ª e marcava prazo para a realização da escritura – interpelação admonitória - ou então invocava a perda de interesse na prestação. Ao não percorrer nenhum destes caminhos, a promitente vendedora resolveu ilicitamente o contrato promessa, pelo que o mesmo continua válido, sem necessidade de recurso ao instituto da nulidade – artigos 286º e 289º do CC – como defende a agravante. Aliás, a lei não sanciona com a nulidade o incumprimento do contrato promessa, mas antes o sanciona nos termos expressos no artigo 442º, nºs 2 e 3 do CC.
Concluindo por via da indevida rescisão, o contrato promessa mantém-se válido continuando as partes vinculadas aos seus termos.
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4.3 – Da responsabilidade solidária da C... e B...
Invocando que a B... não podia ignorar o contrato promessa de compra e venda, como não podia ignorar a ilicitude da sua rescisão, ambas agiram com dolo ao celebrarem a escritura e daí a sua responsabilidade solidária.
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Cumpre decidir
A tese defendida pela agravante não mereceu acolhimento em sede de matéria de facto, daí que se não possa falar em responsabilidade solidária (artigo 497º do CC). Aliás e por referência à 1ª requerida, a matéria de facto evidencia uma actuação cuidadosa, nada na lei a impedia de ter contactado a 2ª requerida manifestando-lhe o seu interesse na aquisição da parcela de terreno (facto 23)[ 5]. Por via da incapacidade manifestada pela requerente quanto à satisfação das condições previstas no contrato[6] e frustrada a tentativa de execução imediata da mesma proposta, a 2ª requerida iniciou negociações com a H..., através da 1ª requerida com vista a alienação de parte do imóvel (facto 24). Por não ser despiciendo, recorde-se que quando a 2ª requerida iniciou negociações com a 2ª requerida, já haviam decorrido 15 meses após a assinatura do contrato promessa. Na sequência do interesse manifestado, a 1ª requerida começou a tratar de todo o processo administrativo com vista ao licenciamento, sendo certo que desconhecia a existência do contrato promessa celebrado entre a requerente e 2ª requerida, como não era exigível que o conhecesse, aquando do início das negociações – factos 30 a 34 – e que apesar de ter sido aprovada a localização para instalação de um estabelecimento de comércio só depois de 3 de Junho de 2005, a 1ª requerida retomou as negociações com a 2ª requerida, agora sim, tendo em vista a mesma parcela de terreno, tendo-lhe sido, facultado nesta data, cópia da carta de rescisão (factos 38 e 39). Não se pode exigir a quem não conhece os termos do contrato promessa que saiba que a rescisão é ilícita e que tenha agido com dolo aquando da celebração da escritura.
Diz e bem a agravante que os nºs 1 e 5 do artigo 20º da Constituição da República asseguram a todos os cidadãos a garantia efectiva dos seus direitos – sem fazer distinções – e procedimentos judiciais “de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra as ameaças ou violações desses direitos”, todavia, não vislumbramos onde e como a actuação da 1ª requerida violou os seus direitos. A 2ª requerida, essa sim, ao vender a terceiro uma parcela de terreno que havia prometido vender à requerente através de contrato promessa válido no momento em que celebrou a escritura com um terceiro é que tem de responder nos termos do disposto nos artigos 483º e 798º do Código Civil. Aliás, por referência aos pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar (a acção; a ilicitude, a culpa e o prejuízo sofrido pelo credor e o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo) a matéria de facto provada não permite dá-los por verificados relativamente à 1ª requerida. Outorgar uma escritura não tem nada de ilícito, mesmo que incida sobre um terreno pretendido por uma outra empresa do mesmo ramo de negócio e desde que a sua actuação tenha respeitado os limites impostos pela boa-fé e as leis da concorrência. Se há alguém responsável não é seguramente a 1ª requerida, daí que não sufraguemos a tese da responsabilidade solidária por falta de elementos de facto capazes de integrarem os requisitos de que depende a obrigação de indemnizar.
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4.4 – Da reconstituição natural
No seguimento da explanação anterior – responsabilidade solidária das requeridas – a agravante sustenta a reconstituição natural como a sanção adequada para a reparação do dano a cargo das responsáveis que a ela deram causa. Na mesma linha o artigo 817º do CC prevê a possibilidade de execução do património do devedor quando a reconstituição natural não seja possível.
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Cumpre decidir
Não existem dúvidas quanto ao carácter subsidiário da indemnização em dinheiro, desde que a reconstituição natural se mostre possível (artigo 566º do CC). Ao defender a reconstituição natural, a agravante está a considerar a responsabilidade solidária das requeridas que, segundo alega, conluiaram-se para a prejudicar. A tese do conluio não foi acolhida e daí que não vislumbremos como e em que termos pode a 1ª requerida ser chamada a responder nos termos pretendidos pela requerente, ao ponto de ter que devolver uma parcela de terreno que comprou e que registou em seu nome na Conservatória respectiva. Por outro lado, a 2ª requerida deixou de ser a proprietária da parcela de terreno que prometeu vender à requerente e também aqui não encontramos fundamento para que a indemnização devida não seja fixada em dinheiro, na medida em que objectiva e claramente a reconstituição natural é, por via do instituto da responsabilidade civil, impossível de concretizar no caso em apreço. Quanto aos nºs 1 e 5 do artigo 20º da Constituição renovamos o que acima escrevemos, sendo certo que o sistema jurídico português coloca ao dispor da requerente um conjunto de mecanismos que visam acautelar os seus direitos.
Defende ainda a agravante que o Tribunal deve declarar nulo o acto violador dos seus direitos e por esta via lograr-se a reconstituição natural. Renovando os respeitos devidos, a lei não sanciona com a nulidade a resolução ilícita de um contrato promessa, antes continua a conferir-lhe – ao contrato promessa - plena validade; se a agravante está a referir-se ao contrato de compra venda da parcela de terreno que lhe fora prometida vender, não encontramos na matéria de facto elementos que permitam configurá-lo como nulo e pela via da declaração da nulidade aplicar-se o disposto no nº 1 do artigo 289º do CC.
Quanto ao artigo 817º e por referência à responsabilidade que recai sobre a 2ª requerida pelo incumprimento do contrato promessa, não se suscitam dúvidas sobre a possibilidade legal do credor executar o património do devedor, com vista à satisfação dos seus créditos.
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4.5 – Da oponibilidade a terceiros dos direitos de crédito. Abuso de direito
Chamando à colação doutrina e jurisprudência autorizada, a agravante defende que os direitos de crédito são pessoais e protegidos pelo «dever universal de respeito» e tão oponíveis como os direitos reais. Para aqueles que permanecem no equívoco da eficácia relativa das obrigações, recorda-se que o Código Civil – artigo 610º e seguintes – atribui ao credor o poder de actuar directamente contra a terceiros de má fé que tenham adquirido bens do devedor em seu detrimento.
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Cumpre decidir
A obrigação que designa o lado passivo de qualquer relação jurídica é definida no artigo 397º do CC como o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação. A prestação a que se encontra adstrito o devedor destina-se a satisfazer o interesse do credor, o qual deve ser digno de protecção legal (artigos 398º, nº 2 e 443º, nº 1 do CC). Credor e devedor devem proceder com boa fé, «princípio fundamental da ordem jurídica, com especial relevância no campo das relações civis. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-sociais da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma jurisdicidade social e materialmente fundada (…). A boa fé reporta-se a um estado subjectivo, tem em vista a situação de quem julga actuar em conformidade com o direito, por desconhecer ou ignorar, qualquer vício ou circunstância anterior (…). Aplicados aos contratos, o princípio da boa fé em sentido objectivo constitui uma regra de conduta segundo a qual os contraentes devem agir de modo honesto, correcto e leal, não só impedindo assim comportamentos desleais como impondo deveres de colaboração entre eles[ 7]» (artigos 227º, nº 1, 239º, 334º, 437º, nº 1 e 762º, nº 2).
Ensina o Sr. Prof. Inocêncio Galvão Teles que «nos direitos reais, além do elemento interno consistente no poder sobre a coisa, há o elemento externo, consistente no dever, para as outras pessoas, de respeitar o exercício desse poder. Segundo certa orientação, também nas obrigações, ao elemento interno –o direito contra o devedor – acresce um elemento externo – o dever, imposto a todos, de respeitar o direito do credor, não impedindo o cumprimento nem colaborando no incumprimento. Enquanto o devedor incorre em responsabilidade civil, o terceiro incorreria em responsabilidade extra obrigacional. Não repugna aceitar esta orientação, de harmonia com o princípio geral expresso no artigo 483º do CC, mas há quem a conteste, só admitindo, quando muito, a responsabilidade de terceiros em caso de abuso de direito. (…) A lei permite a atribuição de eficácia real a certos contratos, normalmente constitutivos de simples direitos de crédito – artigos 413º e 421º do CC – mas verdadeiramente aí existe, a par da obrigação, um direito real de aquisição, ou seja, o direito, oponível a terceiros de adquirir determinada coisa»[8].
O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa refere-se à doutrina do efeito externo, que se traduz no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do credor, ou seja, de não impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação (…), podendo os terceiros serem chamados a responderem para com o credor, dando como exemplo que A realiza com B um contrato promessa de venda do prédio X e aliena-o depois a C[ 9], enquanto este fosse culposamente responsável pelo inadimplemento do devedor. De seguida, este Mestre toma posição, indicando que a posição dominante entre nós e que tem como exacta, não admite, em princípio, o efeito externo das obrigações[10], apesar de admitir como «válvula de segurança» o abuso de direito[ 11].
Já o Sr. Prof. António Menezes Cordeiro defende que os direitos de crédito, porque direitos, se impõem, juridicamente a todas as pessoas, devem ser respeitados por cada um e produzindo nessa medida efeitos erga omnes, admitindo, todavia, a possibilidade do credor pedir contas a terceiros por força das regras do abuso de direito e das cláusulas gerais[12 ].
Posição completamente distinta é defendida pelo Sr. Prof. Menezes Leitão ao escrever: a obrigação tem como característica a relatividade estrutural e o regime da responsabilidade patrimonial implica a admissibilidade de constituir direitos de crédito incompatíveis entre si, não tendo o direito de crédito anterior prevalência sobre o posterior. Em certos casos, porém, a constituição do segundo direito de crédito pode ser vista como abusiva, para efeitos do artigo 334º, caso em que o terceiro poderá ser responsabilizado[13].
No plano da jurisprudência identificámos um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no processo nº 009822, datado de 26 de Junho de 1997, que defende que a lei portuguesa não reconhece uma eficácia externa das obrigações de forma a co-responsabilizar terceiro cúmplice pela indemnização devida pela sua violação ilícita, pelo que só ao devedor por ser exigida tal violação[14]. Um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 9830815, datado de 21 de Novembro de 1997 onde se afirma que a nossa ordem jurídica não acolhe a chamada eficácia externa das obrigações apenas podendo aceitar que um terceiro responda em caso de abuso de direito[15]. O Supremo Tribunal de Justiça sufraga posição idêntica considerando que terceiro não pode ser responsabilizado com base na doutrina externa das obrigações, salvo se tiver agido com abuso de poder[ 16].
Aderindo-se à tese que sustenta que a co-responsabilização de terceiro cúmplice pela indemnização só é devida desde que este invada os terrenos interditos do abuso de direito (artigo 406º, nº 2 e 334º do CC), vejamos se a matéria de facto provada permite concluir que a 1ª requerida invadiu tais domínios.
A propósito do abuso de direito, ensinava o Sr. Prof. Antunes Varela que «na sua aparente simplicidade, o artigo 334º do novo Código – o tal que define o abuso do direito – constitui, na verdade, um manancial inesgotável de soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos"[17]
Prescreve o artigo 334º do Código Civil
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
No dizer do Sr. Prof. Manuel de Andrade, estamos em presença de um direito «exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça»[ 18].
Percorrendo a matéria de facto provada, verificamos que a requerente e 2ª requerida assinaram, em 8 de Outubro de 2003, um contrato promessa sobre uma determinada parcela de terreno, contrato que a requerente de algum modo blindou ao fazer depender a eficácia de tal contrato de um conjunto de condições a que se obrigava observar no prazo máximo de 18 meses (12+6), convencionando o direito de denunciar tal contrato caso não preenchesse as condições, obrigando-se, neste caso, a promitente vendedora – aqui 2ª requerida – a devolver o que houvesse recebido nos termos do contrato (facto 1). Decorridos 12 meses ainda não se tinham verificado as condições previstas na cláusula 3ª, mas a 2ª requerida propôs à requerente a outorga da escritura definitiva (factos 9 e 10). A requerente aceitava a proposta desde que o preço reduzisse em 100.000,00 euros, o que foi rejeitado pela 2ª requerida em virtude de terem decorrido 12 meses sobre a outorga do contrato (factos 11 e 12). Em Dezembro de 2004, a 1ª requerida contactou a 2ª requerida manifestando-lhe interesse na aquisição de uma parcela de terreno do prédio sito em Aleixa ou Quinta da Cerca (factos 23 e 24)[19 ]. Aquando deste contacto, a 1ª requerida desconhecia a existência de qualquer vínculo ou declaração negocial e necessariamente não conhecia o contrato promessa e as suas cláusulas (factos 30 a 34). No desenvolvimento do processo administrativo de licenciamento a Câmara Municipal da Batalha por deliberação de 24 de Março de 2005 aprovou a localização da instalação de um estabelecimento de comércio de produtos alimentares “Pingo Doce” (facto 37). Por contrapartida, a requerente em 8 de Abril de 2005, ou seja, 18 meses depois da assinatura do contrato promessa ainda não tinha conseguido dar por verificadas as condições constantes do contrato (facto 13), tal como ainda não tinha obtido a autorização necessária para a instalação do estabelecimento comercial (facto 14). Entre o dia 24 de Março de 2005 e finais de Maio de 2005, a matéria de facto não evidencia quaisquer contactos entre requeridas. Em 24 de Maio de 2005, a 2ª requerida «rescinde» o contrato promessa que havia outorgado com a requerente (facto 18) e foi contactada pela 1ª requerida em finais desse mês de Maio a quem informou da resolução do contrato (facto38), retomando negociações, agora sobre a parcela prometida vender à requerente (facto 39) continuando a desconhecer nesta data o conteúdo do contrato promessa (factos 47 e 48) e só avançou para a concretização do negócio após ter conhecimento da resolução do contrato. Apesar de ter resolvido o contrato, a 2ª requerida ainda encetou negociações com a requerente (facto 53), acordando na realização da escritura para o dia 15 de Julho de 2005 (facto 55), mas a 2ª requerida foi confrontada, dois dias antes, com as exigências referidas em 57, o que a levou a contactar a requerente e a dizer-lhe que não aceitava as condições (facto 58 a 60). Frustradas as negociações, a 1ª requerida manifestou interesse na outorga da escritura o que veio a suceder em 18 de Julho de 2005 (facto 64), pagando à 2ª requerida um valor superior ao acordado com a requerente, no montante de 100.000,00.
Com o respeito devido, a requerente só dela se pode queixar. Por diversas vezes teve o pássaro na mão e por diversas vezes o deixou fugir, conduzindo o negócio, seguramente, em zona de risco constante quer pela não concretização das condições em prazo, quer pela não utilização da denúncia, quer pela não outorga da escritura independentemente da verificação das condições, quer pela imposição de novas condições. Teve todas as possibilidades para fechar o negócio, mesmo depois de uma resolução do contrato. O que fez de censurável a 1ª requerida. Nada. Só avançou para a concretização do negócio depois de ter sabido da resolução do contrato e só avançou para a escritura depois de se terem frustrado as negociações entre a 2ª requerida e a requerente. O alegado conluio, atenta a matéria de facto provada, não faz qualquer sentido, como não faz sentido defender-se que o mesmo se verifica em virtude da 1ª requerida ter pago mais 100.000,00 pelo terreno. Em nossa modesta opinião, a 1ª requerida identificou com precisão os seus objectivos, não os fez depender de factos acessórios à concretização do negócio e até ofereceu mais 100.000,00 para conseguir fechar o negócio. Mas tudo isto sem o mais leve atropelo dos direitos da requerente que só não é hoje proprietária do terreno pelas razões expressamente claras na matéria de facto.
Em conclusão, estamos bastante longe de factos que consubstanciem um eventual abuso de direito por parte da 1ª requerida nas negociações que manteve com a 2ª requerida, daí que se lhe não possam ser assacadas responsabilidades através da figura da eficácia externa das obrigações.
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4.6 - Da inoponibilidade à recorrente do direito de propriedade da B...
Considera a requerente que a compra do terreno efectuada pela 1ª requerida é nula, mas ainda que assim se não entendesse a inoponibilidade sempre resultaria dos artigos 334º e 562º e 566º do CC.
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Cumpre decidir
Afastada a eficácia externa da obrigação como forma de co-responsabilizar a 1ª requerida pela indemnização devida pela violação ilícita do contrato promessa por parte da requerente, então não podemos deixar de concluir que a esta e só a esta é que a requerente pode vir a exigir a reparação da lesão. No ponto anterior afastámos a possibilidade de dar como verificada a figura do abuso de direito, pelo que, também, por aqui está afastada a possibilidade de se invocar a eficácia externa da obrigação e assim co-responsabilizar a 2ª requerida pelos eventuais prejuízos sofridos pela requerente.
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4.7 – Da execução específica do contrato
A execução específica do contrato está expressamente consignada na cláusula 5ª e como o contrato promessa se mantém válido e eficaz basta declarar nulo ou simplesmente inoponível à requerente o contrato de compra e venda celebrado em 18 de Julho de 2005, dada a sua ilicitude, proferindo-se sentença que substitua a declaração de vontade do promitente vendedor a favor da requerente.
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Cumpre decidir
O raciocínio plasmado pela requerente assenta em dois pressupostos que só funcionam desde que ambos se verifiquem. O primeiro está demonstrado e que se prende com a validade e eficácia do contrato promessa celebrado em Outubro de 2003. O segundo é que, em nosso modesto ver, não se verifica. Já tivemos oportunidade de afirmar que não encontramos fundamento jurídico que permita declarar nulo o contrato de compra e venda ou torná-lo inoponível à requerente. Por outro lado sé é verdade que as partes acordaram na possibilidade de recurso à execução específica – artigo 830º do CC – não é menos verdade que não atribuíram ao contrato promessa eficácia real e que a parcela de terreno prometida vender foi, entretanto, comprada pela 1ª requerida por escritura lavrada em 18 de Julho de 2005, daí que a Exma. Juiz e bem, recorrendo à jurisprudência fixada pelo acórdão de 4/98 do STJ tenha considerado que «a execução específica do contrato promessa sem eficácia real – artigo 830º do CC – não é admissível no caso de impossibilidade de cumprimento por o promitente vendedor haver transmitido o seu direito real sobre a coisa objecto do contrato prometido antes de registada a acção». Como a situação em apreço é em tudo integrável na doutrina deste acórdão, não encontramos fundamento que permita à requerente o recurso à figura da execução específica.
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4.8 -Verificação de todos os requisitos da providência cautelar.
Regressando ao ponto 4 deste acórdão onde se explanaram os requisitos de que depende o deferimento da pretensão da requerente, não podemos deixar de concluir, à semelhança do defendido na sentença recorrida, que não se encontra preenchido desde logo o primeiro dos requisitos exigidos pelo artigo 381º do CC: a probabilidade séria da existência do direito invocado, por referência à 1ª requerida B.... Já quanto à requerida C... temos que considerar verificado o 1º requisito – probabilidade séria do direito invocado – uma vez que estamos em presença de uma resolução ilícita do contrato promessa outorgado entre a requerente e a 2ª requerida. No entanto, ao percorrermos a matéria de facto verificamos que não emerge da mesma qualquer factualidade que possibilite dar por provado o segundo requisito, ou seja, a lesão grave e dificilmente reparável de tal direito. Com efeito, nada resulta da factualidade provada que permita constatar a impossibilidade da 2ª requerida satisfazer o direito à indemnização devido à requerente, como não existe qualquer indício que permita concluir que a mesma se encontra à beira de um processo de insolvência ou que ande a fugir ao cumprimento das suas obrigações perante credores. Assim e embora com fundamentação diversa damos por não verificados os requisitos que de depende a procedência da providência cautelar requerida.
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5. Litigância de má fé
Embora em termos que não partilhamos, a requerente insurge-se contra a condenação sofrida a título de litigância de má fé, sustentando a necessidade de se demonstrar que tivesse actuado com dolo ou negligência grave, o que no seu entender não se verificou.
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Cumpre decidir
Determina o artigo 456º do Código de Processo Civil
1. Tendo litigado de má fé, a parte será condenado em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2. Diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé.
O dever de litigar de boa-fé – com respeito pela verdade – emerge como um dos corolários dos princípios enunciados no artigo 266º do CPC, expressando mesmo o artigo 266ºA do CPC que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior, ou seja, o princípio da cooperação, tendo em vista a obtenção com a brevidade possível da justa composição do litígio. Associado ao princípio da cooperação, está o dever de probidade e a probidade[20] processual.
Ao lermos o requerimento inicial damos conta que a requerente constrói a sua tese em redor das seguintes realidades: uma resolução ilegal; uma actividade conluiada entre 1ª e 2ª requerida, violadora dos princípios da boa fé e em manifesto abuso de direito; um direito de crédito com eficácia erga omnes e por isso extensível à 1ª requerida; a inoponibilidade do contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª e 2ª requerida, quer por ser nulo quer por estar em oposição aos princípios da boa fé. A sua estratégia processual passou por carrear para os autos a factualidade capaz de integrar a solução jurídica por si preconizada e deixou de fora um conjunto de realidades que foram trazidas ao conhecimento do Tribunal pelas requeridas, v. g. aditamento ao contrato recusado pela 2ª requerida; rescisão por si não aceite; imposição de novas condições dias antes da celebração da escritura.
Embora sejamos muitas vezes críticos quer quanto à forma como se alega quer quanto ao conteúdo de cada alegação, somos, todavia, sensíveis ao facto de, hoje em dia, cada acção obedecer a tácticas e estratégias que, segundo os ilustres advogados, são as que melhor servem os interesses de cada um dos seus clientes. Se formos comparar a factualidade alegada e o resultado final em matéria de facto controvertida, apercebemo-nos da razão de ser de determinada estratégia e apontamos com precisão os elementos de prova que não conseguiram corporizar e fundamentar o desenho factual por si concebido. Sem exagero, tal como hoje se fala em engenharia financeira não é despiciendo, antes pelo contrário, falar-se em engenharia jurídica, ou seja, onde muitas vezes os seus autores balizam o direito e só depois lhe encaixam os factos que lhes foram trazidos pelas partes, sem prejuízo da sua imaginação retocar aqui e acolá um determinado facto de forma a encaixar-se com perfeição na tal engenharia jurídica por eles idealizada.
Verificamos sem qualquer esforço a importância que pode ter uma parcela de terreno num dado concelho do país, em sede de desenvolvimento estratégico e de domínio do mercado para uma determinada empresa. Daí que a requerente lance mão dos meios que o sistema jurídico coloca ao seu dispor para fazer valer os seus interesses, não lhe sendo exigível que alegue factos para além daqueles que corporizam o seu direito – artigo 264º, nº 1 do CPC. Por isso é que há contraditório. Naturalmente se levado ao limite o princípio da cooperação – que bom seria – traria evidentes benefícios na celeridade processual e na auto e extrajudicial composição dos litígios com benefícios seguros para as partes, quer em termos de financeiros quer em termos de rapidez de solução.
Posto isto, diremos que com a alteração introduzida pelo artigo 1º do DL nº 180/96, de 25.9, ampliou-se o dever de boa fé processual alargando-se a tipo de comportamentos que possam integrar má fé processual quer substancial quer instrumental, passando a abarcar comportamentos dolosos e gravemente negligentes. O Supremo Tribunal de Justiça tem manifestado grandes cautelas relativamente à condenação de um interveniente processual como litigante de má fé sustentando que “a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em provas, como a testemunhal, cuja fiabilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Também a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual. Há pois que ser muito prudente no juízo de má fé processual”[21].
Não negamos que nos revemos nos ensinamentos plasmados neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e por isso, somos muito exigentes na condenação de qualquer interveniente processual em matéria de litigância de má fé. Aceitamos que os factos alegados pela requerente têm omissões que foram colmatadas em sede de oposição pelas requeridas, todavia, levamos essa posição em conta com uma linha estratégica que o ilustre advogado desenhou como sendo a que melhor defendia os interesses da sua cliente e não como omissões pensadas para ludibriar o tribunal, para retardar o processo ou para conseguir uma decisão jurídica contrária à verdade. Quantas vezes, as posições assumidas pelas partes são contraditórias quanto aos factos, sem que por isso tenham sido condenadas como litigantes de má fé? Quantas omissões e até imprecisões são contempladas nos articulados sem que conduzam à condenação como litigantes de má fé? Recorde-se que a jurisprudência até tem admitido condutas processuais temerárias como justificativas para a não condenação como litigante de má fé de um determinado interveniente processual. Com o respeito devido, aqui não vislumbramos sequer temeridade, mas antes um balizamento factual que omitiu determinados factos que, para o efeito, assumiam um valor relativo se tomarmos em consideração a tese subscrita pela requerente. Finalmente recorde-se que em nossa opinião até tinha razões para lutar pela ilegalidade da rescisão e até tem doutrina que sufraga a sua posição em matéria da co-responsabilidade de terceiros quando estão em causa direitos de crédito.
Aqui não podemos deixar de partilhar as razões invocadas pela agravante e nesta parte revogar a decisão recorrida.
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Nesta conformidade, o Tribunal profere a seguinte decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em dar parcial provimento ao recurso e consequentemente:
1. O facto 6 que passará a ter a seguinte redacção: O pedido de autorização da A... para instalação de uma loja alimentar “D...” fez-se acompanhar de um documento - ofício DOP – 325, de 2005-01-11 do Município da Batalha dirigido à entidade requerente A... dando como deferida a fase de arquitectura para um estabelecimento de comércio alimentar, propriedade de C... - com o qual justificou a não apresentação da documentação a que se refere o Anexo II da Lei nº 12/2004.

2. O facto 33 da matéria de facto provada que passa a ter a seguinte redacção: Em 23 de Setembro de 2004, foi licenciado, em nome da 2.ª requerida, o processo referentes a obras de edificação (comércio) de um supermercado (padaria, cafetaria e 6 lojas).

3. O facto 52 passa a ter a seguinte redacção: Na sequência do envio da carta referida em 18[22], a 2ª requerida facultou cópia da mesma à 1ª requerida.

4. Passa a integrar a matéria de facto não provada[23] – A 2ª requerida retomou as negociações com a 1ª requerida, agora concretamente sobre a mesma parcela de terreno.

5. O facto 41 passa a ter a seguinte redacção: A 1ª requerida contactou, então, a 2ª requerida que lhe facultou cópia da missiva que havia enviado à requerente em 24 de Maio de 2005.

6. Passa para a matéria de facto não provada – Tendo, esta, informado que o contrato promessa celebrado com a requerente tinha sido resolvido.

7. Adita-se o facto 72 com a seguinte redacção: A A... é uma sociedade integrada no chamado «D...» detida a 99% pela E...

8. Adita-se o facto 73 com a seguinte redacção: A B... é uma sociedade que se insere no G..., no qual se insere o H....

9. Revoga-se a decisão recorrida em matéria de condenação da agravante como litigante de má fé.

10. No mais mantêm-se a decisão recorrida
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Notifique.
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Custas pela agravante, já que no aspecto central se manteve a decisão recorrida (artigo 446º do CPC).
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[1] Ac. RC, datado de 22 de Novembro de 2005, processo nº 3025/05, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[2] Ac. STJ, datado de 31.10.2006, proferido no âmbito do processo nº 06A3225, relatado pelo Exmo. Cons. Afonso Correia, publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt
[3] Ac. STJ24.10.2006, proferido no âmbito do processo 06A2341 relatado pelo Exmo. Cons. Ribeiro de Almeida e publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt
[4] Tema de Contrato-promessa – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – 1990 – pág. 10 e 11.
[5] O negócio alimentar é, como todos sabem, bastante agressivo e servido por empresas de prospecção que no âmbito do território português procuram os melhores locais de instalação, de acordo com critérios pré-definidos. Objectivamente, a Batalha é um dos locais com interesse comercial no domínio alimentar não só pelas suas capacidades intrínsecas – é visitada por milhares de pessoas por ano/ número de habitantes/rendimento per capita – como se situa a poucos quilómetros do Santuário de Fátima, importante interposto de turismo religioso.
[6] Uma leitura atenta da cláusula3ª do contrato promessa permite verificar que todo aquele clausulado favorecia a requerente, impendendo sobre a promitente vendedora a obrigação de devolução de tudo o que recebeu caso a promitente compradora não conseguisse preencher todos os requisitos.
[7] Sr. Prof. C. A. Da Mota Pinto – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, págs. 125 a 127.
[8] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 16 e 17.
[9] Pressupondo, naturalmente, que as partes não atribuíram eficácia real ao contrato promessa.
[10] Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 73. Na nota 2 indica profusa doutrina e jurisprudência. O Sr. Prof. M. J. de Almeida Costa escreveu um artigo doutrinal na RLJ Ano 135º, pág. 132, sobre o tema «Eficácia Externa das Obrigações. Entendimento da Doutrina Clássica, onde continua a defender, juntamente com a doutrina predominante, em princípio a não eficácia externa das obrigações. Neste artigo indica profusa jurisprudência que faz depender a responsabilidade de «terceiro cúmplice» do abuso de direito.
[11] Esta posição é igualmente defendida pelos Srs. Profs. Manuel de Andrade – Teoria Geral das Obrigações, pág. 52; Mota Pinto – Direito das Obrigações, pág. 156 e segs.
[12] Direito das Obrigações, Reimpressão – 1986 – págs. 280 e 282. Apesar da defesa do direito de crédito como direito absoluto – oponível erga omnes – não deixa de ter algum significado o exemplo que dá como forma de não responsabilização do terceiro. Diz o seguinte – todos concordam que se Caio comprar a Carlos uma coisa, ignorando, de boa fé, que este se havia obrigado a vendê-la a Catarino, não se torna, de forma alguma, responsável pela violação do crédito deste último. Obra citada, pág. 280.
[13] Direito das Obrigações, I, 3ª edição, pág. 101.
[14] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[15] Publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[16] Acórdão datado 19 de Março de 2002, Col. Jur. (Acs. STJ) Ano X, tomo I, pág. 141 e 142. Também o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 16 de Maio de 2006, proferido no âmbito do processo nº 3834/2006-7 defende que a invocação da violação dos princípios da boa fé e do fim social e económico do direito de propriedade, que se reconduzam à figura do abuso de direito, legitima invocar-se a eficácia externa. No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo 659/2006-6, datado de 9 de Março de 2006, no qual se apela à figura do abuso de direito como causa justificativa do recurso à eficácia externa.
[17] Código Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 92 e 93.
[18] Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., pág. 297.
[19] Como tivemos oportunidade de expressar aquando da impugnação da matéria de facto, a prova não permitiu dar como assente que se tratava da mesma parcela prometida vender, tanto mais que o facto 39 que mereceu a concordância da requerente afastava tal cenário.
[20] Rectidão, honradez, pundonor, brio.
[21] Ac. STJ, datado de 11.12.2003, proferido no processo nº 03B3893 publicado no endereço electrónico www.dgsi.pt.
[22] A Exma. Juiz, necessariamente por lapso fez constar no facto 52 o facto 17 quando queria escrever facto 18.
[23] Consideramos não existir qualquer contradição entre um facto provado com determinado conteúdo factual mas reportado a um momento cronológico específico – após envio das cartas de 24.5.2005 e 3.6.2005
e um facto não provado de igual conteúdo mas sem indicação cronológica da sua verificação.