Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2042/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: TÁVORA VITOR
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
NULIDADE
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
USUFRUTO
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 714.º, N.º 3; 219.º; 220.º; 410.º; 373.º; 374.º;DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. O contrato-promessa de partilha dos bens do casal é válido na medida em que não altera de momento a situação patrimonial dos cônjuges; projecta-se apenas no futuro e subordinado à condição suspensiva de se efectivar na prática o direito potestativo de que depende a sua eficácia, o divórcio.
2. Mau grado seja nulo o contrato-promessa em que a assinatura de um dos promitentes é omitida, essa nulidade não poderá ser arguida pelo omitente que tenha dado origem à mesma, ou que tenha criado na contraparte a ideia de que não arguiria o vício; maxime se houver elementos no processo que permitam concluir que a contraparte não assinante pretendeu efectivamente o seu conteúdo, sendo certo que tal poderá inferir-se de um comportamento concludente da parte daquele.

3. Ainda que os factos indiciadores do comportamento concludente não cubram a totalidade do termos do contrato-promessa, suprindo-o na íntegra, certo é que excepcionados determinados casos em que se exige uma total e palpável congruência entre os factos concludentes e um comportamento tipificado, basta um comportamento indiciador de uma concludência altamente provável.

4. O contrato-promessa de partilha dos bens do casal subordinado a condição suspensiva do decretamento do divórcio entre os promitentes é susceptível de execução específica.

Decisão Texto Integral: 1. RELATÓRIO.

Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra.
A..., residente na Rua dos Maceiros, São João do Campo, Coimbra, veio intentar contra B..., residente na Rua Bernardo Santareno, 201, r/ch esq., Santa Apolónia, Coimbra, a presente acção com processo ordinário, pedindo que se profira sentença destinada a substituir a declaração negocial da Ré, considerando-se transferida por esta para o Autor, o direito ao usufruto vitalício sobre o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 935º da freguesia de São João do Campo, Coimbra.
Alega, em súmula, que está divorciado da Ré, por sentença de 20.9.99. Tinha celebrado com aquela um contrato-promessa de partilha, segundo o qual seria constituído a seu favor o usufruto vitalício do prédio referido.
A Ré contesta, excepcionando a nulidade do contrato-promessa de partilha e aduzindo que não assinou o contrato em causa, com ele se não obrigou e, por isso, não pode haver lugar à execução específica.
Nos demais articulados as partes mantêm as mesmas posições.
Dispensada a audiência preliminar, é proferido despacho saneador-sentença que declarou a nulidade do contrato. Interposto recurso, veio a ser revogado com a determinação do prosseguimento dos autos. Fixados os factos assentes e organizada a base instrutória, com reclamação não atendida, teve lugar a audiência de julgamento e o tribunal respondeu à matéria de facto controvertida nos moldes exarados a fls. 340 a 342, sem reclamação.
Foi proferida de novo sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Daí o presente recurso de apelação interposto pelo Autor o qual no termo da sua alegação pediu que se revogue a sentença apelada, reconhecendo-se o peticionado direito do Autor declarando-o constituído.
Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

1) Autor e Ré, nos preliminares do seu divórcio, negociaram e acordaram quanto à partilha do seu casal, tendo sido reduzido a escrito o concernente contrato-promessa pela mandatária e irmã desta;
2) Também de comum acordo, em perfeita correspondência com o exarado neste contrato, celebraram escritura de partilha, que ambos outorgaram, da parte correspondente à meação da Ré;
3) A Ré recusou-se a celebrar a escritura destinada à constituição do usufruto, a favor do Autor, tendo por objecto a casa de S. João do Campo, o qual ficaria a preencher a sua meação nos precisos termos do estabelecido no contrato.
4) A Ré veio opor-se à execução específica deste contrato, deduzida nesta acção, tendo vindo afirmar, por um lado, que não assinou o contrato, e arguiu por isso a sua nulidade e, por outro lado, ao ser instada a apresentá-lo, para prova deste facto por ela alegado, veio dizer que não o tinha para apresentar, por lhe ter perdido o rasto o ter inutilizado.
5) A Ré concordou com o contrato, e tanto assim é que, em perfeita sintonia com o seu conteúdo, aceitou dar-lhe execução, e daí o normal seria que o tivesse efectivamente assinado e não o contrário;
6) Aliás, não logrou a Ré provar nem convencer que o não assinou, razão por que, esta pretensa omissão, impeditiva do direito do Autor, não pode relevar em seu favor, antes pelo contrário, na dúvida, deve o facto ser considerado como constitutivo do direito, - artº 342º nº 3 do Código Civil;
7) O documento (contrato-promessa), destinado a provar o direito do Autor, que confessadamente se encontrava em poder da Ré, esta, ao ser notificada nestes autos para o apresentar, veio dizer que não o tinha para apresentar e, assim, no mínimo culposamente, tornou impossível ao Autor a prova desta controvertida questão, por ela suscitada da falta da sua assinatura. (sic).
8) Nestas circunstâncias, em abono da verdade material, era imperioso que fosse a Ré a provar o que alegou, com todas as consequências, sob pena de se cometer grave como irreparável injustiça, traduzida em ter revertido a dúvida a favor da parte faltosa e, deste modo, ter sido beneficiada a infractora;
9) Impunha-se, por isso, inverter o ónus da prova, por forma a ser a Ré a ter de provar o vício que apontou ao contrato, como até apresentar o documento que o titula, mas tendo-se eximido a estes deveres que sobre ela impendiam, nada permite concluir que o elaborado contrato não esteja por ela assinado, - ex vi do disposto no Artº 530º nº 2 do C. P. Civil e 344º nº 2 do C6digo Civil;
10) Acresce que, a Ré, como se alcança da factualidade apurada, concordou com o contrato e dispôs-se a dar-lhe execução, ao ponto de, por uma das prometidas escrituras, que foi por ela outorgada e pelo Autor, logo ter recebido a sua meação composta por um bem imóvel e assumiu, além do mais, a obrigação do pagamento de um passivo à Caixa Geral de Depósitos;
11) O Autor confiou, obviamente, ao outorgar aquela escritura em proveito da Ré, que também esta, conforme o prometido, outorgaria em seu favor a escritura relativa ao usufruto da casa de S. João do Campo, para preenchimento do seu quinhão;
12) A Ré, por intermédio da sua mandatária, marcou e desmarcou esta escritura, que visava, no essencial, a constituição deste usufruto a favor do Autor, mas recusou-se depois a celebrar esta escritura e, ao arrepio de tudo o acordado e concretizado requereu um inventário;
13) Ao dar este lesto passo em frente, dando o dito por não dito, enveredou por aventureiro trajecto, ao afirmar que não concordou com o contrato e que não o assinou, culminando com a expedita afirmação de que não o tinha para apresentar, tudo isto, como se provou, em chocante contradição com o concreto comportamento que assumiu, acompanhado pela sua mandatária;
14) Esta comprovada conduta da Ré é eticamente deplorável, desde logo ao invocar a falta da sua assinatura, quando esta falta só a ela se deve; ao arguir este pretenso vício do contrato e obstar ao mesmo tempo à sua apresentação, impossibilitando esta prova; ao recusar-se a cumprir o contrato depois de ter arrecadado o direito à sua meação, sem que, então, a falta da sua assinatura tivesse sido por ela invocada;
15) É, pois, manifesto como chocante o "abuso do direito" exercido pela Ré, ao arguir, nestes termos, um tal vício formal do contrato, que mais não é do que "venire contra factum proprium", como é doutamente salientado no parecer junto e pela Jurisprudência que o abona;
16) Deste modo, deverá considerar-se como válido e eficaz o contrato, ainda que porventura, não tivesse sido assinado pela Ré, por lhe estar vedado in casu, arguir a sua nulidade, sendo a sua pretensão ilegítima, por abusiva;
17) Ao não entender assim, a sentença recorrida violou as regras dos artsº 530º nº 2 do C. P. Civil e 344º nº 2 e 334º nº 2 do Código Civil.
O Apelante juntou aos autos douto Parecer do Prof. Calvão da Silva.
Contra-alegou a apelada pugnando pela confirmação da sentença.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. O Autor e a Ré acordaram no divórcio, por mútuo consentimento, tendo o casamento sido dissolvido por decisão proferida a 20 de Setembro de 1999 pela Conservatória do Registo Civil de Coimbra, com trânsito em julgado (doc. fls. 13 a 22) (a).
2.1.2. Foi este processo de divórcio instruído com os acordos relativos ao destino da casa de morada de família e uma relação de bens comuns do casal, documentos subscritos pelo Autor e pela Ré bem como pela Drª Celeste Dias Cardoso, advogada, na qualidade de mandatária da Ré e sua irmã, que elaborou e organizou este processo (doc. fls. 13 a 22) (b).
2.1.3. No dia 20.12.00, no Primeiro Cartório Notarial de Coimbra, o Autor e a Ré celebraram escritura em que declararam proceder à partilha da fracção autónoma “B”, correspondente ao Rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Quinta de Santa Apolónia, freguesia de Eiras, concelho de Coimbra, inscrito na matriz sob o artigo 1525º, à qual atribuíram o valor de esc. 10 500 000$00, sendo adjudicado o imóvel à Ré. Mais declararam que ficava a cargo da Ré o pagamento da dívida proveniente de um empréstimo concedido pela CGD para a aquisição desse imóvel (doc. fls. 33 a 36) (c).
2.1.4. No dia 22 de Abril de 2002, a Ré requereu inventário para separação de meações, processo que corre termos sob o nº 220/02, do 2º Juízo do Tribunal de Família e Menores de Coimbra (d).
2.1.5. Com data de 10 de Maio de 1999, a Mandatária da Ré elaborou, no seu papel de escrita e encimado com o seu timbre, o documento correspondente a fls. 23 e 24 (e).
2.1.6. Nos preliminares da acção de divórcio, o Autor e a Ré encetaram negociações para a partilha do património do casal nos moldes expressos no documento de fls. 23 e 24 (1º).
2.1.7. O Autor subscreveu um documento, datado de 10 de Maio de 1999, em que ele e a Ré declaram que se comprometem a efectuar a partilha dos bens comuns da forma seguinte: os bens imóveis inscritos nos artigos matriciais rústicos 859, 1516 e 1515 da freguesia de S. João do Campo e urbano n° 935 da freguesia de S. João do Campo serão doados ao único filho do casal, Luís Miguel Dias Gandarez (2º e 3º).
2.1.8. Nesse documento, subscrito pelo Autor, ele e a Ré declaram que se comprometem a constituir usufruto vitalício a favor do Autor relativamente ao prédio urbano inscrito sob o artigo matricial n° 935, correspondente a casa composta de Rés-do-chão, primeiro andar e sótão (4º).
2.1.9. Nesse documento, subscrito pelo Autor, ele a Ré declaram que se comprometem a celebrar a escritura no prazo de 90 dias após o trânsito em julgado da sentença que decrete o divórcio, ou logo que seja possível efectuá-la, obtida da Câmara Municipal, a respectiva licença de habitabilidade e o registo do imóvel (5º).
2.1.10. Nesse documento, subscrito pelo Autor, ele e a Ré declaram que se comprometem a adjudicar à Ré o prédio composto por casa de habitação com três divisões, cozinha, quarto de banho e marquise, inscrito sob o artigo matricial n° 1525 da freguesia de Eiras, fracção "B-161” (6º).
2.1.11. Nesse documento, o Autor e a Ré declaram que se comprometem a que, a partir do mês de Maio de 1999, a Ré dará pagamento à Caixa Geral de Depósitos das mensalidades do empréstimo que ela e o Autor contraíram para aquisição do imóvel identificado em 6º, no valor de esc. 13 000 000$00 (treze milhões de escudos) (7º).
2.1.12. Nesse documento, o Autor e a Ré declaram que se comprometem a que os bens móveis ficarão a pertencer ao filho único do casal, Luís Miguel Dias Gandarez, que tomará posse efectiva dos mesmos após óbito dos pais (8º).
2.1.13. Este (o Autor) obteve da Câmara Municipal a licença de habitabilidade do prédio referido em 6º, a qual mandou entregar, por intermédio do seu filho, à mandatária da Ré, que a recebeu (10º).
2.1.14. Esta mandatária procedeu à marcação da escritura de doação com reserva de usufruto para o dia 10 de Janeiro de 2001 (11º).
2.1.15. Veio a desmarcá-la e prometeu voltar a marcá-la depois do registo do prédio inscrito na matriz sob o artigo 1515º (12º).
2.1.16. A Ré recusa-se a celebrar a escritura de doação com reserva de usufruto a favor do Autor, referida no documento de fls. 23 e 24; que este e a Ré celebraram a escritura aludida em c), que em 25 de Maio de 2000 a Ré comunicou à CGD que as prestações inerentes ao empréstimo para aquisição do prédio identificado nesta escritura são pagas por si e solicitou documento indicador do montante da dívida para efeitos de transição da hipoteca para seu nome, invocando o acordo efectuado com o Autor na acção de divórcio (13º e 14º). (Sic.)
+
2.2. O Direito.

Nos termos do precei-tuado nos artsº 660º nº 2, 684º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Pro-cesso Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso deli-mitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformi-dade e conside-rando também a natureza jurídica da maté-ria versada, cumpre focar os seguintes pontos:
- É admissível a realização de um contrato promessa de partilha de bens na pendência do casamento?
- A nulidade do contrato-promessa subscrito apenas por um dos promitentes outorgantes é arguível por quem lhe deu causa? Abuso do Direito.
- Execução específica do contrato.

2.2.1. É admissível a realização de um contrato- promessa de partilha de bens na pendência do casamento?

O Autor A... intentou acção contra B... pedindo que se profira sentença destinada a substituir a declaração negocial de Ré e assim se declare transferida por esta para o Autor o direito ao usufruto vitalício sobre o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 935 da freguesia de S. João do Campo em Coimbra.
Trata-se de dar execução específica a um alegado contrato-promessa de partilha de bens outorgado antes do divórcio dos RR. cuja sentença tem a data de 20 de Setembro de 1999.
Mau grado não haver unanimidade na Jurisprudência quanto à validade de um contrato promessa nestas condições, a corrente maioritária propende nitidamente para a sua aceitação. Este entendimento que conta aliás com abalizadas achegas Doutrinais (embora com fundamentos nem sempre coincidentes) regista também a nosso acolhimento Cfr. Ac. do S.T.J. de 13-03-2001 (P. 433/01) in Col. de Jur., 2001, 1, 161; de 09-12-1999 (P. 809/99) in Bol. do Min. da Just., 492, 445; de 9-12-1999 (P. 809/99) in Col. de Jur., 1999, 3, 132. Desta Relação de 19-10-1993 (R. 633) in Col. de Jur., 1993, 4, 66; de 19-10-1993 (R. 633/93) in Bol. do Min. da Just., 430, 525. Esta posição Jurisprudencial é corroborada igualmente de forma ampla a nível da Doutrina, destacando-se a Anotação de Guilherme de Oliveira ao Ac desta Relação de 19-10-1993 supracitado in RLJ Ano 129, pags. 279 ss e Rita Lobo Xavier "Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges", Almedina, Teses, 2000 pags. 264 ss. . Como obstáculo principal colocado à validade de um contrato promessa com esta configuração, argumentam os defensores da tese oposta com o teor do artigo 1 714º nº 1 do Código Civil - Diploma ao qual pertencerão doravante as restantes disposições citadas sem menção de origem – ao estabelecer como regime-regra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e regime de bens nele se lendo que " Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados". Visa-se dessa forma evitar que após o casamento venham a entrar na comunhão bens que eram próprios, ou a subtrair dela bens comuns. Esta situação poderia ser viabilizada pelo ascendente que um dos cônjuges poderia assumir sobre o outro, levando-o a praticar actos que reverteriam em seu interesse, prejudicando o outro. Adiante-se também que a imutabilidade das convenções antenupciais perfila-se ainda como uma garantia para terceiros que tenham contratado com o casal com base no crédito que lhes merecia o respectivo acervo patrimonial. A possibilidade de alteração do regime abriria a porta a situações que não haviam estado subjacentes na ponderação dos acordos negociais realizados com terceiros, dificultando ou mesmo frustrando o cumprimento das obrigações assumidas A título de exemplo, referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira in "Curso de Direito de Família" I, 2ª Edição pags. 495; "suponhamos que o marido contraía uma dívida sem outorga da mulher; casados os cônjuges no regime da separação por essa dívida respondiam todos os bens do marido; mas se posteriormente os cônjuges adoptassem com efeitos retroactivos o regime da comunhão geral, os bens do marido tornar-se-iam comuns e só a sua meação nesses bens responderia pela dívida (artigo 1 696º nº 1)". No mesmo sentido Antunes Varela "Direito da Família", Petrony, Lisboa, 5ª Edição 1999, pags. 432 ss..
Por último saliente-se que às convenções antenupciais anda ligada e bem a ideia que as mesmas traduzem verdadeiros "pactos de família" que têm na sua base um leque de opções ponderadas que não é lícito alterar mais tarde.
A tudo isto poderá ainda acrescentar-se que a partilha dos bens iria posicionar-se em oposição frontal com o estatuído no artigo nos artigos 1 668º e 1 669º que determinam o momento em que cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, a dissolução, declaração de nulidade ou anulação do casamento Cfr. Guilherme de Oliveira, Ob. Cit, pags. 281..
No entanto as razões que estão na base da proibição da partilha na constância do matrimónio perdem a sua razão de ser quando ainda se está perante um simples projecto, embora dotado de alguma protecção jurídica, o "contrato-promessa de partilha". Na verdade o mesmo não altera de momento a situação patrimonial dos cônjuges; o contrato projecta-se apenas no futuro, subordinado à condição suspensiva de se efectivar na prática o direito potestativo de que depende a sua eficácia, o divórcio Como bem se refere no douto Parecer junto - cfr. fls. 204, não têm aplicação na vigência do matrimónio e por via do contrato-promessa, nomeadamente normas de eficácia translativa. No mesmo sentido cfr. Calvão da Silva "Sinal e Contrato-Promessa", Almedina, Coimbra, 8ª Edição, 2001, pags. 28 s.. Nesta conformidade o contrato-promessa poderá ser anulado mas nos termos gerais de direito, verificando-se qualquer dos vícios da vontade, nomeadamente erro, dolo ou coacção e também na hipótese de ab initio se verificar um ensaio de partilha que colida com o estatuído nos artigos 1 714º ou 1 730º do Código Civil; (Imutabilidade das convenções antenupciais e alteração das regras de participação dos cônjuges no património comum).
Por outro lado o contrato promessa de partilha salvaguarda interesses dignos de tutela jurídica. Os cônjuges acautelam de antemão como virá a ser preenchida a sua meação dentro dos limites legais respeitando a integridade do seu direito.
Nesta conformidade entende-se que em tese geral o contrato promessa para partilha de bens nos termos expostos é válido.
+
2.2.2. A nulidade do contrato-promessa subscrito apenas por um dos promitentes outorgantes, é arguível por quem lhe deu causa? Abuso do Direito.

Admitida em tese geral a validade de um contrato-promessa para partilha de bens após o divórcio, resta agora indagar da viabilidade de concretização de tal entendimento no caso concreto, considerando as peculiaridades que apresenta.
Somos confrontados perante um documento (cfr. fls. 23 e 24) que o Autor apresenta como Doc. 5, corporizando declarações de ambos os cônjuges com vista à partilha dos bens comuns do casal e assinado só pelo mesmo, referindo contudo que a Ré possui o original assinado por ambos.
A Ré contrapõe que o documento junto – e outro não existe nos autos - correspondeu a um mero projecto de negociação de partilha que não logrou qualquer acordo que culminasse com a respectiva subscrição por parte da Ré.
Vejamos:
A moderna evolução dos contratos tem vindo de um modo geral, a dispensar progressivamente as formalidades especiais para a sua validade. Estatui a este respeito o artigo 219º que "A validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir". No entanto já o artigo 220º comina com a nulidade a declaração que careça de forma legalmente prescrita, a menos que outra seja a consequência ditada por lei". É o que se passa com o contrato-promessa. Lê-se a esse propósito no artigo 410º nº 1 que "À conven-ção pela qual alguém se obriga a celebrar certo con-trato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2. Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autên-tico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, con-soante o contrato-promessa seja unilateral ou bilate-ral".
3. (…)".
Estão aqui em causa formalidades ad substantiam, condição essencial à existência do contrato e não apenas à respectiva prova. Sucede todavia – e entramos num dos pontos fulcrais deste caso – que como refere Galvão Telles "os documentos substanciais também fazem prova da existência e conteúdo dos documentos (…). Pode acontecer que o documento seja destruído ou desapareça. Se se tratar de um documento probatório a sua função pode ser substituída por confissão expressa Cfr. A citado "Manual dos Contratos em Geral" Coimbra Editora 2002, pags. 145 ss. .
Analisado o teor do documento nada nos permite concluir pela vinculação da Ré, a qual só poderia inferir-se com a assinatura daquela – artigos 373º, 374º e 376º do Código Civil.
A falta de uma das assinaturas no documento considerado como uma unidade material, poderia ser colmatada, como bem se refere na douta sentença apelada, pela existência da firma da Ré aposta numa outra cópia desse documento; na verdade mau grado a duplicação de suportes materiais, deles emergiria apenas uma realidade jurídica, corporizando um contrato promessa.
Restaria assim declarar a nulidade de tal contrato, tendo sido esse o entendimento da sentença que ora se reaprecia.
No entanto e salvo o devido respeito entendemos que é possível in casu ir mais longe. Mau grado seja nulo o contrato-promessa em que a assinatura de um dos promitentes é omitida – artigo 220º - essa nulidade não poderá ser arguida pelo omitente que tenha dado origem à mesma, ou que tenha criado na contraparte a ideia de que não arguiria o vício; maxime se houver elementos no processo que permitam concluir que a contraparte não assinante pretendeu efectivamente o seu conteúdo, sendo certo que tal poderá inferir-se de um "comportamento concludente" da parte daquele Cfr. Ac. do S.T.J. de 29-4-1986 (p. 73 707) in Bol. do Min. da Just., 356, 358 e de 28-11-2000 (P. 3189/2000) in Bol. do Min. da Just., 501, 292. Cfr. ainda a resenha que é feita na recente 4ª edição da "Teoria Geral do Direito Civil" de Carlos Mota Pinto, Coimbra Editora, pags. 433 ss; ainda Carneiro da Frada "Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil", Almedina, Coimbra, Teses, 2004, pags. 710 ss. . O comportamento concludente constitui assim "o elemento objectivo da declaração tácita" e na sua avaliação é fundamental o momento interpretativo com vista a indagar o sentido finalista da declaração do emitente patenteada em elementos significativos palpáveis Cfr. para mais desenvolvimentos Paulo Mota Pinto "Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico", Almedina, Coimbra 1995, pags. 746 ss; Pedro Pais de Vasconcelos "Teoria Geral do Direito Civil" Almedina, 2003, 2ª edição, pags. 298 ss. Carlos Ferreira de Almeida "Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico", Teses, Almedina, Coimbra, 1993, II, pags. 717 ss. .
Tudo está pois em saber se há na realidade nos autos elementos que permitam concluir inequivocamente pela aceitação do contrato-promessa da parte da Ré.
Com relevo para a conclusão positiva há a considerar o seguinte:
- Mostra-se cumprida em benefício da Ré a cláusula 3ª do contrato-promessa concretizada por escritura pública de 20/12/2000, segundo a qual a casa de Sta. Apolónia ficou para a Ré.
- Consta de fls. 40 uma carta da Sra. Advogada, irmã da Ré, datada de 8/1/2001, na qual a mesma se refere à impossibilidade de passar os três prédios rústicos para o nome do filho do casal. Esta carta reporta-se de modo inequívoco à cláusula 1ª A) do contrato-promessa. Coerentemente com o contrato promessa também se alude na carta em análise à marcação da escritura do usufruto a favor do Autor.
- Encontra-se junta a fls. 335 e 336, correspondência constante de documentos dirigidos pela Ré à Caixa Geral de Depósitos em que se solicita àquela entidade que o pagamento da hipoteca passe a ser feito por outra conta bancária e bem assim a transição daquela garantia para o seu nome. Tal facto indicia claramente o cumprimento do acordado no § único da cláusula 3ª do Contrato-promessa. Anote-se a data a partir da qual tais factos teriam efeito – Maio de 1999 - o que coincide, também nesta parte com o teor do documento dito "contrato-promessa"
Trata-se de factos suficientemente indiciadores, em nossa óptica do cumprimento por parte do Autor do contrato-promessa que a Ré sabia ter assumido e cujos efeitos que lhe eram favoráveis aceitou, ao mesmo tempo que afastava o cumprimento das obrigações emergentes do mesmo que sobre ela impendiam. Dir-se-á que os factos surpreendidos nos autos que implicam o comportamento concludente, não cobrem a totalidade do termos do contrato-promessa, suprindo-o na íntegra… mas como se tem entendido e a nosso ver bem, excepcionados determinados casos em que se exige uma total e palpável congruência entre os factos concludentes e um comportamento tipificado, basta um comportamento indiciador de uma concludência altamente provável Cremos ser aliás este o entendimento de Paulo Mota Pinto, cfr. Obra citada, pags, 776 que "a inferência na declaração tácita não tem de ser realizada de acordo com critérios estritamente lógicos, mas antes práticos, nos quais assume especial relevância o ponto de vista da incompatibilidade do comportamento com os significados contrários à declaração. Por outro lado a ilação não tem normalmente de ser necessária e absolutamente inequívoca (…) o importante é aqui um elevado grau de probabilidade de uma dada declaração obtido a partir de uma inferência segundo uma lógica de interacção de acordo com as regras ou usos da vida". No mesmo sentido Cfr. Ferreira de Almeida Ob. Cit. II pags. 725 ss. Cfr. ainda Carvalho Fernandes "Teoria Geral do Direito Civil" II, 3ª Edição Universidade Católica Portuguesa" pags. 224 ss. Pedro Pais de Vasconcelos "Teoria Geral do Direito Civil", Almedina, Coimbra 3ª Edição 2003, pags. 301 ss..
Perante o que vem referido, antolha-se-nos que a declaração de nulidade do contrato-promessa implicaria
sempre sacrificar no altar das formalidades a verdadeira justiça material a cujo serviço as primeiras devem ser colocadas, só se justificando na medida em que são elementos da consecução de uma solução justa do caso concreto; e cabe à jurisprudência cível esse trabalho que não se quedando na rigidez de um esquema lógico-subsuntivo formal, terá no desenrolar do iter decisório que fazer opções valorativas onde entram factores de natureza social, cultural e económica. A hermenêutica jurídica que engloba o uso de todos estes meios está pois no cerne da ciência jurídica moderna. No domínio das formalidades, mesmo ad substantiam, surgem na vida real hipóteses em que o fim que as mesmas visavam, perdeu a sua razão de ser e a sua observância tornou-se num instrumento negação do escopo que intentavam servir Sobre o funcionamento em concreto do instituto do "abuso do direito e seus desenvolvimentos mais recentes Cfr. Menezes Cordeiro Tratado de Direito Civil Português", Almedina, Coimbra, 2005 Parte Geral, I, Tomo IV, pags. 366 ss.. Obstar a estes efeitos perversos é tarefa das "válvulas de escape do sistema" Ventilbegriffe, entre as quais se conta o princípio do abuso do direito – artigo 334º - nas várias modalidades doutrinárias que congrega. Entre estas conta-se a proibição de venire contra factum proprium. Traduz-se numa manifestação da tutela da confiança Cfr. Baptista Machado "Tutela da Confiança e venire contra factum proprium" in Obra Dispersa Scientia Ivridica, Braga, 1991, I, pags. 345 ss. ; visa sancionar o comportamento de alguém que tendo procedido de modo a criar na outra parte a legítima convicção de que certo direito não seria exercido ou que determinado comportamento não seria adoptado, vem posteriormente a agir ao arrepio de tal atitude. Não há dúvida que o "contrato-promessa" redigido pela Irmã da Ré, a ilustre Causídica que também a patrocina nos presentes autos, criou no Autor a convicção de que aquele seria cumprido; a prová-lo os factos apontados, não esquecendo ainda o cumprimento da parte do Autor dos deveres que à luz do documento que analisamos impendiam sobre ele; Aliás tratando-se de um acordo de partilhas é de presumir que o Autor não o faria, caso não acreditasse na concretização da contrapartida sinalagmática da Ré.
Saliente-se ainda em reforço da confiança gerada, o facto de a escritura de doação dos prédios ao filho do casal com reserva de usufruto ter estado marcada para o dia 10 de Janeiro (quesito 11º) sendo desmarcada por falta de um registo (quesito 12º), tendo sido prometido ao Autor nova marcação para depois da efectivação daquele. Todos estes factos, sintomáticos de uma vinculação, foram naturalmente criando no Autor a convicção de que não seria levantado qualquer óbice de natureza formal ao integral cumprimento do acordado. Por outro lado, tendo ficado o original do contrato na posse da Ré não pode a mesma, face à prova produzida, defender-se validamente argumentando ter perdido aquela minuta que aliás referiu não haver assinado No sentido de que a parte que deu causa à nulidade não se pode fazer valer da mesma, Cfr. Calvão da Silva RLJ Ano 132, pags. 266 ss. A este propósito escreve Ana Prata in "O Contrato-promessa e o seu Regime Civil" Coimbra, Almedina, 1999, pags. 526 ss "quem conhecendo a nulidade do contrato-promessa inicia o seu cumprimento e aceita o cumprimento da contraparte, pode ver afastado o seu direito de invocar a invalidade por abuso do direito, dado ter criado uma fundada convicção na contraparte de que o contrato, embora nulo estava destinado ao cumprimento". Cfr. ainda as considerações tecidas no douto Ac. STJ de 28 de Novembro de 2000 in BMJ 501, 202 apenas disponível in www.gddc.pt. . Com efeito e em face de todo o enquadramento da situação, sempre a Ré teria que provar não ter assinado o aludido contrato, verificando-se assim uma inversão do ónus da prova – artigo 344º Cfr. Rita Lynce de Faria "A Inversão do ónus da Prova no Direito Português" Lex, Lisboa pags. 50 ss maxime 52. Freitas Rangel "O Ónus da Prova no Processo Civil", Almedina, Coimbra, 2000, pags. 182 ss. .
+
2.2.3. Execução específica do contrato.

Concluindo pela improcedência da arguição da nulidade do contrato, importa indagar da possibilidade de execução específica do mesmo.
Estatui a tal respeito o artigo 830º nº 1 do Código Civil que "1. Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.
2. Entende-se haver convenção em contrário, se existir sinal ou tiver sido fixada uma pena para o caso de não cumprimento da promessa.
3. (…)
4. (…)
5. (…)"

Não se verificando a existência de qualquer convenção que obste à execução específica do contrato, nem tendo sido fixada qualquer pena para o caso de não cumprimento da promessa, entende-se nada obstar à aludida execução específica, de imediato Cfr. ainda o Ac. do S.T.J. de 13-03-2001 (P. 433/01) in Col. de Jur., 2001, 1, 161.
, sendo certo que in casu o casamento foi dissolvido por decisão proferida a 20 de Setembro de 1999 pela Conservatória do Registo Civil de Coimbra, com trânsito em julgado (doc. fls. 13 a 22)
Haverá pois que declarar válido o contrato-promessa e assim na procedência da acção, decidir que a Ré B... se encontra obrigada a cumprir a sua parte no aludido contrato pelo que suprindo-se a declaração negocial da mesma, declarar-se transferida pela aludida Ré e para o Autor com vista ao preenchimento do quinhão que a este cabe nos bens do seus dissolvido casal, o direito de usufruto sobre o prédio urbano composto de rés-do-chão andar e sótão, a confrontar do norte com estrada, sul, nascente e poente com o próprio, com a superfície coberta de 30 m2, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 935º.

Poderá pois concluir-se o seguinte:

1) O contrato-promessa de partilha dos bens do casal é válido na medida em que não altera de momento a situação patrimonial dos cônjuges; projecta-se apenas no futuro e subordinado à condição suspensiva de se efectivar na prática o direito potestativo de que depende a sua eficácia, o divórcio.
2) Mau grado seja nulo o contrato-promessa em que a assinatura de um dos promitentes é omitida, essa nulidade não poderá ser arguida pelo omitente que tenha dado origem à mesma, ou que tenha criado na contraparte a ideia de que não arguiria o vício; maxime se houver elementos no processo que permitam concluir que a contraparte não assinante pretendeu efectivamente o seu conteúdo, sendo certo que tal poderá inferir-se de um comportamento concludente da parte daquele.
3) Ainda que os factos indiciadores do comportamento concludente não cubram a totalidade do termos do contrato-promessa, suprindo-o na íntegra, certo é que excepcionados determinados casos em que se exige uma total e palpável congruência entre os factos concludentes e um comportamento tipificado, basta um comportamento indiciador de uma concludência altamente provável.
4) O contrato-promessa de partilha dos bens do casal subordinado a condição suspensiva do decretamento do divórcio entre os promitentes é susceptível de execução específica.
+
3. DECISÃO.

Pelo exposto julga-se a apelação procedente e assim revoga-se a sentença apelada.
Nesta conformidade declara-se válido o contrato-promessa celebrado a fls. 23 e 24 e assim na procedência da acção decidimos que a Ré B... se encontra obrigada a cumprir a sua parte no aludido contrato suprindo-se a declaração negocial da mesma e declarando-se transferida pela aludida Ré e para o Autor com vista ao preenchimento do quinhão que a este cabe nos bens do seus dissolvido casal, o direito de usufruto sobre o prédio urbano composto de rés-do-chão andar e sótão, a confrontar do norte com estrada, sul, nascente e poente com o próprio, com a superfície coberta de 30 m2, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 935º.
Custas pela Ré.