Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/09.9T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
COMPROPRIETÁRIO
Data do Acordão: 11/24/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – TRIBUNAL DE ALBERGARIA-A-VELHA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1353º E 1354º DO C. CIV..
Sumário: I – A fim de definir a extensão objectiva do direito de propriedade, designadamente os seus limites materiais, estabelece o artº 1353º C. Civ. que “o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrer para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles”.

II – A demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois préduos.

III - Na acção de demarcação, se existem dúvidas sobre a linha divisória dos prédios, pode acontecer que o próprio direito de propriedade seja afectado (artº 1354º, nºs 2 e 3, do C. Civ.) - neste caso, está-se perante um acto de disposição por contender com o alcance e dimensão do direito de propriedade sobre os terrenos contíguos e a definir pela fixação da linha de divisão que os irá diferenciar.

IV – Havendo divergência sobre a linha de estremas, a acção será real e o comproprietário será parte ilegítima se actuar isoladamente, visto discutir um problema de domínio que afecta todos os consortes - para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal é necessária a intervenção de todos os interessados, isto é, de todos os comproprietários.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO


A..., casado, residente na ..., intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra B..., viúva, residente ..., C..., casado, residente ...., e D..., divorciada, residente ...., pedindo a sua condenação a reconhecerem que a linha divisória entre o prédio deles e o de que o autor é comproprietário é definida pelo meio da servidão comum perpendicular à Estrada Nacional 1 com a qual os prédios confinam por nascente e, em consequência, compelidos a concorrer com o autor para a demarcação da respectiva estrema.

Regularmente citados, os réus não contestaram.

Conclusos os autos, foi proferido despacho convidando o autor, nos termos do art. 508º do CPC, a suprir a excepção de ilegitimidade activa, fazendo intervir na acção todos os comproprietários.

Veio, então, o autor juntar aos autos um termo de transacção, e solicitou a aclaração do despacho - convite no sentido de esclarecer se o nele ordenado estava ou não prejudicado em face da transacção.

Por sentença foi homologada a transacção celebrada entre as partes, antecedida de decisão advertindo que a demarcação efectuada nessa transacção não seria oponível aos restantes comproprietários por não terem tido intervenção nos autos.

Inconformado com esta decisão, apelou o autor que das suas alegações tira as seguintes conclusões:

[…]

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


ª

Tendo em conta que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas (arts. 684º nº3 e 685º-A, nº 1º do Cod. Proc. Civil) consubstanciam as mesmas uma única questão: Se a acção de demarcação pode ser intentada por um só comproprietário desacompanhado dos demais.

      ª


II-FUNDAMENTAÇÃO


DE FACTO

Os factos a ter em conta são os acima descritos no relatório.

        ª



 DE DIREITO

A questão posta no presente recurso é, como acima se disse, a de saber se a acção de demarcação pode ser intentada por um só comproprietário desacompanhado dos demais.

A fim de definir a extensão objectiva do direito de propriedade, designadamente os seus limites materiais, estabelece-se no art. 1353º do Código Civil que “o proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles”, e logo de seguida disciplina-se o modo de proceder à demarcação.

Como escreveram os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela “ À acção de demarcação, que teve até 1966 também o nome de tombamento, correspondem em algumas legislações duas acções distintas: uma, que tem por finalidade a simples colocação de marcos nos extremos, sendo os limites certos e indiscutíveis (cfr. Cód. Italiano, art. 951º; Cód. Alemão, § 919º; Cód. Brasileiro, art. 569º); outra, a actio finium regundorum, a fixação das estremas de cada prédio, que se destina à regulamentação dos confins, ou seja, à determinação das estremas dos prédios confinantes, quando haja dúvidas acerca dos limites dos prédios. Esta última acção, ao contrário da primeira, tem natureza real…”[1].

Logo a seguir esclarecem que o Código Civil vigente, com aquele art. 1353º, apenas conservou a segunda das mencionadas acções.

Refere o apelante que o que se pretende com este tipo de acções não é solucionar a indefinição quanto à propriedade de certa faixa ou de parte de certa faixa de terreno, mas sim conseguir que os proprietários de prédios confinantes colaborem no sentido de demarcarem as respectivas estremas.

Concordamos plenamente, estando tal asserção na linha do entendimento que, a uma voz, vem sendo perfilhado pela doutrina e jurisprudência. A demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a estado de incerteza sobre o traçado da linha divisória entre dois prédios.

Mas, convém atentar, e não é despiciendo como se verá, que no âmbito desta acção dois tipos de situações podem ocorrer: estarem os proprietários dos prédios contíguos de acordo quanto à estrema a demarcar, ou haver dissídio quanto a essa linha divisória.

Assim, quando a linha limite é conhecida, o direito de propriedade dos terrenos confinantes é intocável no seu alcance e dimensão, por isso o acto de demarcação é puramente conservatório, não dispositivo, cabendo dentro dos poderes de administração do comproprietário (arts. 1405º, nº 1, 1407º, nº 1 e 985º, nº 1 do Código Civil).

Ensina Alberto dos Reis que nesta circunstância “se o tribunal julgar que não há incerteza sobre as extremas dos prédios, porque elas já foram fixadas ou são bem conhecidas, é claro que o processo finda; a acção improcede”[2].

Se, porém, existem dúvidas sobre a linha divisória dos prédios pode acontecer que o próprio direito de propriedade seja afectado, nomeadamente quando a demarcação se fizer distribuindo o terreno em litígio por partes iguais, ou se os títulos indicarem um espaço maior do que o abrangido pelos terrenos caso em que a demarcação será feita atribuindo a falta encontrada proporcionalmente aos terrenos contíguos (artº 1.354º, nºs 2 e 3, do Código Civil).

Neste caso, estamos inequivocamente perante um acto de disposição por contender com o alcance e dimensão do direito de propriedade sobre os terrenos contíguos e a definir pela fixação da linha de divisão que os irá diferenciar.

Como no Acórdão do STJ de 14/11/72, publicado no BMJ nº 221, pág. 159, se sustentou: “Nas acções de demarcação há duas subespécies: a das que se propõem a simples oposição de marcos ou sinais visíveis numa linha conhecida e indiscutida e a das que em primeiro lugar se destinam a fixar essa linha, determinando as estremas.

II - Quando existem entre as partes divergências sobre a linha de estremas a acção é dispositiva.

III - Na acção de demarcação para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal é necessária a intervenção de todos os interessados, isto é, de todos os comproprietários.

IV - E se não forem todos os comproprietários a demandarem, os que estão em juízo são partes ilegítimas, visto discutir-se um problema de domínio que afecta todos os consortes [3][4].

Portanto, havendo divergência sobre a linha de estremas a acção será real[5] e o comproprietário será parte ilegítima se actuar isoladamente, “visto discutir-se um problema de domínio que afecta todos os consortes[6].

Um problema deriva, porém, deste entendimento: qual seja então o critério diferenciador de uma acção de demarcação da de reivindicação.

O critério a seguir será o de atender se se está perante um conflito acerca do título ou um conflito entre prédios.

Se as partes discutem o título de aquisição, se o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre uma parcela de terreno porque a adquiriu por usucapião, sucessão, compra ou doação, isto é, se estiver em discussão a qualidade relativa à determinação de quem adquiriu validamente a parcela de terreno em litígio, a acção é de reivindicação; se se não discute o título mas antes se aprecia a sua importância relativamente ao prédio, como por exemplo, se o autor discute em que termos deve ser feita a sua medição, se em metros ou varas, ou a extensão do prédio que possui, se o que está em discussão é um aspecto puramente quantitativo que tem que ver com a determinação da área correspondente aos prédios entre os quais aquela incerteza se verifica, então a acção é de demarcação[7].

É, assim, a presente acção uma verdadeira acção de demarcação ("actio finium regundorum"), o que, aliás, nunca foi questionado pelo recorrente que, ao invés, o afirma.

 Mas, no caso vertente, a causa de pedir é a confinidade entre o prédio do autor e o dos réus e a divergência sobre a linha de estrema destes mesmos prédios, e o pedido formulado traduz-se na demarcação entre eles. Isto é,  envolve um acto de disposição, transcende o plano de mera administração, e, por isso, nos termos do disposto no artº 28º, nº 1, do C. P. Civil, deveria ter sido proposta por todos os comproprietários.

Simultaneamente, “é um dos casos nítidos em que a própria natureza da relação jurídica impõe a intervenção de todos os interessados, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”[8] (nº 2 do art. 28º). Também o Prof. Antunes Varela na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, págs. 380 e segs., num trabalho de clarificação dos contornos do litisconsórcio voluntário e do necessário preconiza que “Se a lei alude ao efeito útil normal da decisão, é manifestamente por ter entendido que o campo de aplicação do litisconsórcio necessário deve ser ampliado de modo a abranger também as acções em que a falta de algum ou alguns interessados não obsta a que a decisão produza definitivamente algum ou alguns efeitos úteis, mas impede que ela produza, em carácter definitivo, o seu efeito útil corrente, regular, normal.”.

Portanto, o litisconsórcio necessário deve abarcar aquelas situações em que só a intervenção de todos produzirá não apenas algum efeito útil, mas ainda o considerado normal, definindo a situação concreta entre as partes, de tal modo que não possa vir a ser inutilizada por outros interessados a quem a decisão não seja oponível, ou seja, de modo definitivo.

Na demarcação, os comproprietários estão unidos pela identidade de interesses, há uma só questão, com a mesma intensidade, e com base na mesma relação jurídica, o que exige ao juiz uma decisão igual para todos.

Ora, não tendo os outros consortes intervido, não lhes podendo ser oposta a sentença proferida, nada obsta que venham a surgir novas acções subvertendo esta com o risco de alterar o que nela se decidiu, o que demonstra que a situação suscitada pelo autor não fica definitivamente regulada.

Ou, por outro lado, se a linha de estremas for uma para o autor mas for outra para os demais comproprietários que não estão na acção, qualquer destes pode praticar actos de posse na área que consideram da compropriedade.

Afigura-se-nos incontroverso que a ausência dos restantes comproprietários determina a ilegitimidade do autor, como bem se ponderou no despacho de fls. 26 que o convidou a fazer intervir todos os comproprietários[9].

Intervenção que não teve lugar, vindo autor e réus a acordar pôr termo ao litígio nos termos da transacção junta a fls. 32 e 33. Com efeito a demarcação pode ser feita por acto entre as partes, caso em que constituirá os termos de um contrato a que elas deverão considerar-se ligadas[10].

Então, têm de se trazer à colação os limites pessoais e objectivos do caso julgado (art. 498º). Por regra, a decisão a proferir não pode prejudicar eventuais direitos de quem não esteve na causa.

Assim, não tendo intervido neste processo os outros consortes, o caso julgado nesta acção não terá relevância quanto a eles.

ª

Resta sumariar dando cumprimento ao disposto no art. 713º, nº 7, do CPC.

1. Na acção de demarcação, se existem dúvidas sobre a linha divisória dos prédios pode acontecer que o próprio direito de propriedade seja afectado. Neste caso, está-se perante um acto de disposição por contender com o alcance e dimensão do direito de propriedade sobre os terrenos contíguos e a definir pela fixação da linha de divisão que os irá diferenciar.

2. Havendo divergência sobre a linha de estremas a acção será real e o comproprietário será parte ilegítima se actuar isoladamente, visto discutir-se um problema de domínio que afecta todos os consortes. Para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal é necessária a intervenção de todos os interessados, isto é, de todos os comproprietários.


III – DECISÃO

Na sequência do que ficou dito, acorda-se em julgar improcedente a apelação.

            Custas do recurso pelo apelante.


[1] In Código Civil Anotado, vol. III, pág. 197, 2ª ed..
[2] Processos Especiais, vol. II, pág. 37.
[3] O sublinhado é nosso.
[4] No corpo das suas alegações (fls. 2 e 3 que correspondem às fls. 47 e 48 dos autos), o recorrente apresenta, como exemplo jurisprudencial a abonar a sua tese, a transcrição do que diz ser o sumário deste acórdão.
Nada mais inexacto, porquanto o sumário é o acima transcrito e de sentido precisamente contrário ao por si esgrimido.
     Com efeito, o recorrente recortou cirurgicamente do relatório deste Acórdão do STJ as conclusões dos aí agravantes, na linha do seu entendimento, e inseriu-as no corpo das alegações deste recurso, depois reflectidas no nº 4 das conclusões, escamoteando a fundamentação, a decisão, e o verdadeiro sumário de sentido totalmente opostos à sua pretensão.
     Não sabemos como interpretar esta constatação, mas não vamos crer que o recorrente tenha intencionalmente adoptado uma conduta violadora do dever de honeste procedere, de agir de boa-fé usando uma conduta processual correcta, regra consagrada em letra de forma na lei adjectiva (art. 266º-A do CPC).
      Seguramente que quando o recorrente citou o aludido acórdão e fez essa transcrição não estaria convicto que o tribunal omitisse a sua análise integral. Por isso, vamos considerar que se tratou tão só de um lamentável equívoco.
[5] A jurisprudência sobre esta matéria encontra-se, aparentemente, dividida. Considera grande parte da mesma a acção de demarcação como acção pessoal no pressuposto de que nela não se põe em dúvida ou afecta qualquer direito real (v.g., entre outros, os Acórdãos da RE, de 28/04/05, Proc. 245/05-2, e da RG de 01/06/2005, Proc. 980/05-2, no ITIJ, nos quais se mencionam mais jurisprudência e doutrina,), mas como acima evidenciamos nem sempre assim é, podendo acontecer que o próprio direito de propriedade seja afectado.
[6] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 198, que discordam de Cunha Gonçalves quando se pronuncia no sentido de que qualquer comproprietário ou enfiteuta poderá requerer a demarcação, por isso constituir um acto de administração (in Tratado de Direito Civil, vol. XII, pág. nº 1811).
[7] Neste sentido, ainda Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., pág. 199, e José Alberto Gonzalez, Direitos Reais (parte geral) e Direito Registral Imobiliário, 2ª ed., 2002, pág. 233.
[8] Alberto dos Reis, loc. cit., nota 1.
[9] Para além da jurisprudência e doutrina já acima citada, perfilhando este mesmo entendimento conhecem-se os acórdãos da RE de 18/12/87, na CJ de 1987-5-275, da RP de 13/01/97, na CJ de 1997-I-203. Em sentido contrário é conhecido o sumário do acórdão desta Relação de 18/12/90, no BMJ 402º-677, indicado também pelo recorrente, desconhecendo-se, todavia, sobre que realidade factual foi tirado.
[10] Rodrigues Bastos, Direito das Coisas, 1975, pág. 35).