Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1743/09.9TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: INSOLVÊNCIA
PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Legislação Nacional: ARTS. 3º, 20º, 2º 3 E 27º DO CIRE, 234º-A Nº1, 498º Nº4 E 508º Nº3 DO CPC
Sumário: I – Na insolvência por apresentação deve indeferir-se liminarmente a petição inicial quando seja manifesta a improcedência da pretensão ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatória insupríveis de conhecimento oficioso.

II - Não se verifica manifesta improcedência da pretensão passível de fundamentar indeferimento liminar da petição de apresentação à insolvência quando os autores não alegam na petição inicial factos com a pormenorização necessária para se poder formar um juízo seguro de procedência ou improcedência da pretensão que formulam.

III – Verificando-se deficiência na alegação dos factos integradores da pretensão dos autores, o tribunal tem o poder-dever de proferir despacho de aperfeiçoamento, convidando os autores a supri-la.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 16 de Outubro de 2009, no Tribunal Judicial da Marinha Grande, A (…) e B (…) vieram requerer que sejam declarados insolventes, comprometendo-se a apresentar plano de insolvência no prazo de trinta dias e, para a hipótese de o plano de insolvência que vão apresentar não merecer a aprovação por parte dos seus credores, desde logo declararam que pretendem beneficiar da exoneração do passivo restante, instruindo a petição inicial com prova documental.

            Os requerentes fundamentam as suas pretensões na alegação, em síntese, de que pagam as despesas mensais do filho de ambos, nomeadamente o seguro do veículo deste, outras despesas que o mesmo tem no seu dia-a-dia, sendo, além disso, fiadores nos créditos concedidos ao filho, que são devedores de diversas coimas fiscais, incidindo penhora sobre a pensão de reforma do requerente, no montante mensal de € 251,14 e para pagamento da quantia de € 6.065,63, sendo devedores do montante global de € 249.628,10, auferindo o requerente uma pensão de reforma no montante mensal de € 1.506,84, enquanto a requerente aufere um vencimento no montante de € 456,58, tendo ambos apenas a titularidade de dois veículos automóveis, com reserva de propriedade.

            A 20 de Outubro de 2009 foi proferido despacho de indeferimento liminar com fundamento na manifesta improcedência da pretensão dos requerentes, por não resultar da factualidade alegada na petição inicial que os requerentes estão impossibilitados de satisfazer pontualmente as suas obrigações.

            A 09 de Novembro de 2009, A (…) e B (…), inconformados com o indeferimento liminar da pretensão de insolvência que formularam, interpuseram recurso de apelação contra tal decisão, concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

            “I. Os Recorrentes iniciaram, desde logo, a sua petição inicial por confessar que se encontram numa condição de insolvência pelo facto de se encontrarem numa situação de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante e pelas circunstâncias do incumprimento, revela a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (v.g. al. b) do nº 1 do artigo 20º do CIRE).

            II. Foram os próprios Recorrentes que, ao se apresentarem à insolvência, declarando que não possuem capacidade financeira para fazer face a todas as obrigações que presentemente têm junto da generalidade dos seus credores, reconheceram que se encontram em situação de insolvência.

            III. Os Recorrentes tomaram consciência que esgotaram a sua capacidade de liquidar a generalidade das suas obrigações, tendo, na sua petição inicial, indicado a proveniência das suas dívidas, tendo pormenorizadamente indicado a causa da sua dívida para com a administração fiscal, dívida esta que é avultada e que ultrapassa os € 6.000,00 (seis mil euros) tendo, igualmente junto com a sua petição o documento a que alude a a) do nº 1, do artigo 24º, do CIRE.

            IV. Supondo que não existiam quaisquer outras dívidas – que existem diga-se e são bastantes avultadas – temos para nós que a dívida existente junto da administração fiscal é só por si reveladora da débil situação económico-financeira dos Recorrentes.

            V. Determina o artigo 3º, nº 1, do CIRE, que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”, sendo a própria lei que incentiva a apresentação das pessoas singulares à insolvência, assim que estas se apercebam da sua impossibilidade de atempadamente cumprir as suas obrigações.

            VI. Em consonância com o exposto veja-se a anotação 3., ao artigo 3º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, de Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Volume I, página 69, que dispõe que “Pensamos que a menção legal à impossibilidade de cumprir obrigações vencidas – e, logo, exigíveis – é suficiente para justificar a necessidade da pontualidade na actuação do devedor”, acrescentando a anotação 5., ao artigo em causa que “…não deixa de ser significativo o modo como a nova lei enquadra o dever de apresentação, exactamente em conexão com o conhecimento da situação de insolvência e não, necessariamente, com o efectivo incumprimento de obrigações vencidas, diferentemente do que era visto suceder com o artº 6º do CPEREF.”

            VII. Continuam ainda os identificados autores, na anotação 6. ao artigo 3º, que “O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.”

            VIII. É inequívoco que o que está em causa é a consciencialização por parte do devedor da sua incapacidade para liquidar os seus créditos, incentivando o CIRE o recurso ao processo de insolvência, para além de esta apresentação constituir mesmo um dever para as pessoas singulares, caso pretendam beneficiar da exoneração do passivo restante, nos moldes descritos nos artigos 235º e seguintes do CIRE.

            IX. Os Recorrentes perante o seu actual passivo que atinge um valor avultado e tendo entrado em incumprimento junto da generalidade dos seus credores, nada mais fizeram do que se apresentar à insolvência, conforme determina o CIRE, preenchendo a petição inicial todos os requisitos exigidos pelos artigos 23º, do CIRE, até porque se tratou de apresentação à insolvência, tendo sido igualmente juntos aos autos todos os documentos exigidos e descritos no artigo 24º, do mesmo diploma legal, com excepção do documento previsto na b), do nº 1, do artigo 24º, facto que foi devidamente justificado.

            X. Tendo a apresentação à insolvência partido da iniciativa dos Recorrentes, e conforme determina o artigo 28º, do CIRE que prescreve que “a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, até ao respectivo suprimento.”, deveria ter sido proferida sentença de insolvência.

            XI. A Sentença recorrida dá um especial relevo ao facto de os Recorrentes se encontrarem a trabalhar, recebendo ambos vencimento mensal, e de possuírem alguns bens, sendo esse um facto que revela a sua capacidade de liquidar os seus créditos” … em prestações disseminadas pelos meses do ano”.

            XII. Resulta da petição inicial apresentada que os seus vencimentos mensais auferidos pelos Recorrentes revelam-se exíguos para assegurar o pagamento de todas as prestações mensais que se vêm obrigados a liquidar, para além de incidir sobre a pensão de reforma auferida pelo Recorrente marido uma penhora, fruto da dívida fiscal que os Recorrentes têm.

            XIII. Não é garante de solvabilidade a existência de bens, quando esses mesmos bens não garantem o pagamento integral de todas as dívidas dos Recorrentes.

            XIV. Caso o Meritíssimo Juiz “a quo” não estivesse satisfeito com a descrição efectuada pelos Recorrentes quanto à sua situação financeira, entendendo que se mostrava relevante a junção dos documentos comprovativos das dividas existentes, sempre poderia – e deveria, diga-se – ter mandado corrigir os vícios que entendia que a petição inicial padecia, devendo ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do disposto no artigo 27º, nº 2, b), do CIRE, o que não sucedeu.

            XV. Neste sentido já se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra, no processo nº 760/06.5TBVNO.C1, proferido em 17.10.2006, in www.dgsi.pt, que determinou que “Tendo o Requerente da insolvência sido genérico e pouco preciso na alegação da impossibilidade real do requerido satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, aduzindo apenas factos vagos e conclusivos, dever-se-á, nos termos do artº 27º, nº 1, al. b), do CIRE, ser concedido prazo para o requerente corrigir os vícios da petição.”

            XVI. Veja-se a anotação 4., ao artigo 27º, na obra já supra citada, Volume I, página 160, que dispõe que “São duas as hipóteses em que, de acordo com o texto da al. a) do nº 1, há lugar a indeferimento liminar. Uma, é a da sua manifesta improcedência; a outra, a da verificação de excepções dilatórias insupríveis, de que o tribunal deva conhecer oficiosamente. Em qualquer caso, porém, sempre que o vício ostentado seja insuprível mas sanável pelo requerente, então o juiz, em obediência ao estatuído na al. b), deve proferir despacho de aperfeiçoamento, concedendo-lhe o prazo de cinco dias para proceder à correcção.”

            XVII. Na esteira do exposto vai a anotação 6. ao mesmo artigo 27º que dispõe que “Assim, ao encontro do que também sucede no processo comum, a al. b) do nº 1 do artigo em anotação aponta inequivocamente no sentido de o juiz dever sempre privilegiar o aperfeiçoamento da petição ao indeferimento, visto que o objectivo geral é o de aplicar o remédio adequado à situação de penúria que realmente se verifique e não o de, por razões que poderão ser de índole predominantemente ou exclusivamente formal, retardar simplesmente as soluções que se impõem, com isso agravando a situação dos envolvidos.”

            XVIII. O CIRE prevê, no seu artigo 3º, nº 4, a situação de insolvência iminente, sendo esta equiparada à insolvência actual quando se esteja perante um caso se apresentação pelo devedor à insolvência.

            XIX. Sendo mesmo entendimento da melhor Doutrina, que nas situações de insolvência iminente, o devedor tem o dever de se apresentar, nos termos do artigo 18º do CIRE, já se tendo pronunciado neste sentido os Autores referidos na obra supra citada, na anotação 4. ao artigo 3º, do CIRE.

            XX. Desta forma e face à possibilidade de pelo menos estarem os Recorrentes numa situação de insolvência iminente, deveria ter sido proferida sentença de declaração de insolvência.

            XXI. Os Recorrentes pretendem, uma vez que requerem tal na sua petição inicial, socorrer-se do benefício da exoneração do passivo restante e não estando obrigados a se apresentar à insolvência, não se podiam ter abstido de tal apresentação, nos seis meses seguintes à verificação da sua situação de insolvência, sob pena de não lhes ser concedido tal benefício, na hipótese de existir prejuízo para os credores e sabendo ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, conforme determina a alínea d), do nº 1, do artigo 238º, do CIRE.

            XXII. Para que os Recorrentes não corressem tal risco, impende sobre si o ónus de se apresentarem à insolvência, conforme o fizeram.

            XXIII. O Meritíssimo Juiz “a quo” fez uma errada interpretação e aplicação dos preceitos contidos nos artigos 3º, 20º, 23º, 24º, 27º, nº 1, b) e 28º, todos do CIRE”.

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Considerando a natureza urgente destes autos, a fase vestibular em que os mesmos se encontram, a relativa simplicidade das questões a resolver, com o acordo dos Excelentíssimos juízes-adjuntos, foram dispensados os vistos e inexistindo qualquer obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora decidir.

            2. Questões a decidir

            As questões a decidir são a identificação e qualificação do eventual vício de que enferma a petição inicial e a determinação da terapêutica adequada ao vício eventualmente identificado.

            3. Fundamentos de facto resultantes do desenvolvimento processual dos autos e dos documentos juntos aos mesmos de folhas 11 a 26


3.1

            A 16 de Outubro de 2009, no Tribunal Judicial da Marinha Grande, A (…) e B (…) vieram requerer que sejam declarados insolventes, comprometendo-se a apresentar plano de insolvência no prazo de trinta dias e, para a hipótese de o plano de insolvência que vão apresentar não merecer a aprovação por parte dos seus credores, desde logo declararam que pretendem beneficiar da exoneração do passivo restante, instruindo a petição inicial com prova documental.


3.2

            Os requerentes fundamentam as suas pretensões na alegação, em síntese, que pagam as despesas mensais do filho de ambos, nomeadamente o seguro do veículo deste, outras despesas que o mesmo tem no seu dia-a-dia, sendo além disso fiadores nos créditos concedidos ao filho, que são devedores de IRS e diversas coimas fiscais, incidindo penhora sobre a pensão de reforma do requerente, no montante mensal de € 251,14 e para pagamento da quantia de € 6.065,63, sendo devedores do montante global de € 249.628,10, sendo que o requerente aufere uma pensão de reforma no montante mensal de € 1.506,84, enquanto a requerente aufere um vencimento no montante de € 456,58, sendo ambos apenas titulares de dois veículos automóveis com reserva de propriedade.      

3.3

            B (…) nasceu a 19 de Junho de 1953 e casou a 16 de Abril de 1977 com A (…), nascido a 21 de Fevereiro de 1948.

3.4

            A (…) e B (…) contraíram diversos créditos para consumo junto de variadas entidades financeiras, assumiram obrigações como fiadores e são devedores de dívida de IRS ao fisco e de coimas à mesma entidade, sendo o montante global das obrigações contraídas por ambos de € 249.628,10.

3.5

            A (…) aufere uma pensão de reforma no montante global de € 1.506,84, incidindo sobre esta pensão uma penhora no montante mensal de € 251,14, a favor da Fazenda Nacional.

3.6

            B (…)  aufere o vencimento mensal de € 458,58.

3.7

            A (…)  é titular de certificado de matrícula relativo a um veículo automóvel de marca Ford, modelo Focus, com reserva de propriedade a favor de C.....

3.8

            A (…) e B (…)  não responderam criminalmente.

            4. Fundamentos de direito

            O artigo 28º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1] prescreve que “a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento.”

            O reconhecimento da situação de insolvência inerente à apresentação à insolvência constitui uma confissão de um complexo factual que permite firmar essa conclusão. E porque se trata de uma prova, pressupõe a existência de factualidade probanda por meio de tal reconhecimento.

Por isso, mesmo na apresentação à insolvência, não obstante este reconhecimento da situação da insolvência decorrente da simples apresentação, deve o apresentante à insolvência alegar factos concretos que se subsumam a algumas das previsões legais que alicerçam a declaração de insolvência.

Nos termos do disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

O artigo 20º, nº1 do CIRE prevê que “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se alguns dos seguintes factos:

            a) Suspensão generalizada do pagamento de obrigações vencidas;

            b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;

            c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;

            d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;

            e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;

            f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigo 218º;

            g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:

            i) Tributárias;

            ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;

            iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;

            iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;

            h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no nº 2 do artigo 3º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.”

            Na petição escrita que consubstancia a apresentação à insolvência devem ser expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida, formulando-se o correspondente pedido (artigo 23º, nº 1, do CIRE).

            Além disso, o apresentante à insolvência deve indicar se a situação de insolvência é actual ou iminente e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, identificar os seus cinco maiores credores, identificar o seu cônjuge e o regime de bens do casamento e juntar certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que esteja sujeito (artigo 23º, nº 2, do CIRE), tendo também o ónus de oferecer a documentação prevista no artigo 24º do CIRE ou justificar a sua não apresentação, podendo logo acompanhar a petição de um plano de insolvência, sem prejuízo da sua apresentação em momento posterior.

            “No próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3º dia útil subsequente, o juiz:

a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente;

b) Concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instruí-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada” (artigo 27º, nº 1, do CIRE).

As previsões legais que se acabam de citar são aplicáveis à insolvência por apresentação, como resulta de forma inequívoca do disposto no nº 2, do artigo 27º do CIRE que respeita à publicitação do indeferimento liminar da insolvência por apresentação que não se baseie, total ou parcialmente, na falta de junção dos documentos exigidos pela alínea a) do nº 2 do artigo 24º do mesmo diploma legal.

O que precede permite-nos concluir que na insolvência por apresentação deve indeferir-se liminarmente a petição inicial quando seja manifesta a improcedência da pretensão, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que se deva conhecer oficiosamente, fundamentos que coincidem com os previstos no artigo 234º-A, nº1, do Código de Processo Civil.

Na decisão sob censura decidiu-se indeferir liminarmente a petição inicial por se entender que era manifestamente improcedente.

A manifesta improcedência da pretensão está actualmente prevista no nº 1, do artigo 234º-A, do Código de Processo Civil e corresponde à evidente inviabilidade da pretensão que estava prevista no artigo 481º, 3º, do Código de Processo Civil de 1939[2]. Por isso, conservam actualidade os ensinamentos do Professor Alberto dos Reis no sentido de integrar esta previsão legal.

Ensinava o Professor Alberto dos Reis que “pretensão viável é a que apresenta condições de sucesso, de êxito, de triunfo; pretensão inviável é a que não apresenta tais condições, a que está destinada a malogro, a insucesso, a naufrágio[3]. Acrescentava o mesmo Professor que tal previsão visava a hipótese de o mérito da causa se apresentar seriamente comprometido[4].

Para se chegar à conclusão de verificação de uma situação de manifesta improcedência escreveu-se no despacho sob censura que “a existência de dívidas, que nem tão pouco são documentadas, mas tão só alegadas, atentos os seus montantes, não impossibilitam o seu pagamento, desde logo pela amortização do capital e juros dos empréstimos alegadamente concedidos são contratados e pagos em prestações disseminadas pelos meses do ano”, queem face da evidência de que não é qualquer incumprimento de obrigações que se subsume às situações contempladas na lei, não revelam os requerentes estar impossibilitados de satisfazer pontualmente as suas obrigações” e ainda que se assim fosse, “a maioria dos agregados familiares, estaria em situação de insolvência.

Que dizer desta fundamentação para enquadrar o caso na figura da manifesta improcedência?

Em primeiro lugar, saliente-se alguma incoerência quando se alude à falta de documentação das dívidas alegadas. De facto, nesta situação, verificando-se, como se verifica efectivamente, a falta de junção de documentos comprovativos dos encargos alegadamente suportados, considerando-se necessária a produção dessa prova, impunha-se a prolação de despacho a convidar os recorrentes a oferecerem tal prova documental.

Em segundo lugar, afirma-se que atendendo aos montantes das dívidas em causa, não há impossibilidade do seu pagamento, desde logo pela amortização do capital e juros dos empréstimos alegadamente concedidos, os quais são contratados e pagos em prestações disseminadas pelos meses do ano. Tal proposição é incoerente com a afirmação da indocumentação das dívidas efectivamente existente e não tem qualquer base factual, na medida em que se desconhece que prestações são pagas pelos requerentes, com que periodicidade, em que montantes.

E tal desconhecimento deriva de não serem alegados na petição inicial factos concretos referentes a essas circunstâncias.

As únicas alegações concretas dos requerentes na petição inicial para caracterizar a sua situação financeira respeitam ao valor global do seu passivo, ao montante global em dívida ao fisco, aos valores da pensão de reforma do requerente e do vencimento da requerente e ao montante mensalmente penhorado na reforma do requerente. 

Porém, este défice de alegação não se reconduz a uma falta de causa de pedir (veja-se o artigo 498º, nº 4, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável ao CIRE, ex vi artigo 17º do CIRE), na medida em que o tribunal não tem quaisquer dúvidas sobre o facto jurídico concreto que os recorrentes invocam para estribar as suas pretensões.

Esse facto jurídico concreto, como resulta exuberantemente da petição inicial, e como foi bem interpretado na decisão sob censura, é uma alegada impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, tendo os requerentes alegado alguns factos que permitem um começo de caracterização da sua situação financeira.

No entanto, o “retrato” que os requerentes nos transmitem na petição inicial é de pouca qualidade, na medida em que não se apresenta com a pormenorização necessária para se poder formar um juízo seguro de procedência ou improcedência da pretensão que formularam.

Neste momento importa qualificar o vício de que padece a petição inicial.

Vimos já que apesar dos defeitos de que enferma, não se verifica uma situação de ineptidão da petição inicial, porquanto dúvidas não existem sobre o facto jurídico concreto que fundamenta a pretensão dos requerentes de declaração da sua própria insolvência.

Será um caso de manifesta improcedência da pretensão como se entendeu na decisão sob censura?

É patente, face ao direito material aplicável, que o mérito da pretensão dos requerentes se apresenta seriamente comprometido?

Na nossa perspectiva, só concluirá desse modo quem olvide o poder-dever[5] que o tribunal tem de convidar as partes a suprirem as deficiências nas alegações de facto, deficiências que não sendo supridas determinam a improcedência da acção ou da excepção, não porque se conclua pela falta de razão de quem acciona ou deduz excepção, mas apenas porque nem sequer foram alegados os factos necessários para que se possa apreciar se as pretensões deduzidas são fundadas ou infundadas.

Assim, para a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante será relevante precisar quando foram contraídos os créditos pessoais e com que finalidades concretas, pois tal poderá permitir conclusões quanto ao sentido de responsabilidade dos recorrentes na contracção de tais responsabilidades e quanto à correcção da sua conduta financeira (artigo 238º, nº 1, alínea e), do CIRE).

Por outro lado, a circunstância dos recorrentes terem afiançado o cumprimento de obrigações não os constitui imediatamente na obrigação de cumprirem as obrigações afiançadas, pelo que importará alegar factos que permitam concluir pela verificação de incumprimento das obrigações garantidas.

Pelo exposto, no caso em apreço, o vício de que enferma a petição inicial é o da insuficiência de factos, insuficiência esta que não sendo suprida determina uma decisão de improcedência.

O legislador desde há muito privilegia as soluções de fundo em detrimento das soluções de mera forma prevendo para o efeito a prolação de despacho de aperfeiçoamento quando a petição enferme de deficiência na alegação factual[6].

Na verdade, pouco interessa aos cidadãos, ao serviço de quem a administração da justiça deve estar, que se profiram decisões que nada resolvem, no sentido de que efectivamente não entram a apreciar se as pretensões são ou não fundadas face ao direito material aplicável.

O artigo 27º, nº 1, alínea b), do CIRE prevê a prolação de despacho de aperfeiçoamento da petição inicial quando ocorram vícios sanáveis da petição, enumerando, de forma exemplificativa diversas situações. A enumeração exemplificativa desta previsão legal constitui arrimo seguro para fundamentar a prolação de despacho de aperfeiçoamento no caso de insuficiência de factos. E se porventura assim não sucedesse, por efeito da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, a igual solução se chegaria (artigos 17º do CIRE e 508º, nº 3, do Código de Processo Civil).

É neste momento patente que a decisão de indeferimento liminar não se pode manter e que deve ser substituída por outra que convide os recorrentes a oferecerem nova petição inicial na qual aleguem:

- quais os montantes das despesas do filho que alegadamente suportam mensalmente e por que razão, já que parece não subsistir a situação de desemprego que terá levado os autores a suportar o pagamento do crédito referente à habitação e de despesas mensais correntes do filho de ambos (veja-se o artigo 5º da petição inicial);

- qual o montante do prémio de seguro do veículo usado pelo filho que alegam suportar e a periodicidade do seu pagamento;

- em que datas e por que montantes foram contraídos os créditos pessoais que os recorrentes indicam no documento junto a folhas 17 destes autos, quais as prestações que suportam relativamente a cada um deles e a periodicidade dessas prestações, justificando por que razão foram contraídos tantos créditos pessoais;

- factos concretos que permitam concluir pela verificação de incumprimento das obrigações garantidas por fiança;

- se efectivamente são titulares de dois veículos ou se são locatários financeiros de um deles, sendo titulares de outro, com reserva de propriedade a favor de entidade financiadora, juntando aos autos documentos legíveis comprovativos dessa alegada titularidade;

- as suas despesas pessoais, nomeadamente com habitação que afirmam não possuir, não aludindo a quaisquer gastos com rendas (será que vivem na casa adquirida pelo filho, quiçá com taxa de juro bonificada?).

Mais devem os recorrentes ser convidados a juntar aos autos assento de casamento referente a ambos, assento de nascimento relativo ao filho de ambos e todos os documentos comprovativos dos empréstimos e obrigações contraídos, bem como das prestações suportadas e sua periodicidade.

5. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso de apelação interposto nestes autos por A (…) e B (…) e, em consequência, em revogar o despacho de indeferimento liminar da petição inicial proferido nestes autos a 20 de Outubro de 2009, ordenando-se que seja substituído por outro que convide os autores a aperfeiçoarem a petição inicial e a instruí-la com prova documental suplementar, no prazo de cinco dias, sob pena de indeferimento e para os efeitos indicados nos fundamentos que antecedem; custas pelos recorrentes porquanto obtiveram vencimento, não há vencido e tiram proveito do decidido, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam (artigo 446º, nº 1, do Código de Processo Civil).  


[1] Doravante citado abreviadamente como CIRE.
[2] Neste sentido veja-se, Código de Processo Civil Anotado, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Volume 1ª, 2ª edição, Coimbra Editora 2008, página 426.
[3] Citação extraída do Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora 1981, 3ª edição – reimpressão, página 378.
[4] Veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora 1981, 3ª edição – reimpressão, página 379.
[5] A afirmação da existência de um poder-dever de prolação de decisão de aperfeiçoamento funda-se na necessária igualdade das partes na aplicação do direito que decorre das exigências constitucionais de um processo justo e equitativo (artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa), não podendo a concreta situação jurídica das partes depender do arbítrio do julgador. Neste sentido, quanto à qualificação do referido “poder” veja-se, Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume (2ª ed. revista e ampliada), Almedina 1999, António Santos Abrantes Geraldes, páginas 76 a 84.
[6] Vejam-se os artigos 482º do Código de Processo Civil de 1939, o artigo 477º, nº 1, do Código de Processo Civil de 1961 e o artigo 508º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro.